sábado, 28 de novembro de 2009

Blackbird, o supremo espião


Passei a adolescência cultivando a amizade de aeronaves militares. Muitas linhagens civis também me cativavam. Um apego a jatos militares, caças, modelos aeronavais: um mundo apolítico, repleto de armas voadoras. Perdoe o leitor o aborrecimento dessas memórias, e a descrição de algumas dessas máquinas. O texto é baseado na revista Aviões de Guerra, editada pela Nova Cultural na década de 1980. 

A força aérea americana, de longe a mais importante do mundo, designa seus aviões de superioridade aérea (caças), pelo prefixo F, seguido de um número. O supercaça F-15 Eagle foi o mais importante avião de guerra do mundo durante mais de 25 anos. Era o único capaz de iniciar uma corrida supersônica na vertical; perfeito em qualquer quesito, ainda está em serviço, mas começa a ceder o lugar para o impressionante F-22 Raptor. Ao lado dos caças, temos os bombardeiros: dentre eles, o B-1B Lancer, monstro do ataque nuclear, ainda em serviço, e o Mirage IVP, gigante francês da dissuasão nuclear, já aposentado. 

A mais espetacular aeronave já construída, o SR-71 Blackbird, servia à espionagem. Inspecionei-a no convés de vôo do porta-aviões Intrepid, lasso vaso de guerra estacionado no rio Hudson, em Manhattan. Mesmo ali, despido da mística de hangares secretos, impregnou-me a vertigem de seus vôos de espionagem sobre territórios inimigos, nunca admitidos; acometeu-me um tremor, próprio de quem presenciou a sinistra ascensão desse monstro negro de 85 toneladas. À guisa de propulsores, dotou-lhe a Lockheed de duas explosões estelares, que emitiam fúrias de fogo. O avião sintetiza o gênio militar aplicado à engenharia aeronáutica. Eu me deliciava com os detalhes de sua construção e características, e com os relatos de sua operação, um minucioso roteiro de delírios. 

A ninguém que o tenha visto operar num dia chuvoso deixou de ocorrer que o monstro, tirante a raia, tem predicados que o situam entre o tubarão mais senhoril e a cobra mais ameaçadora. Daí, talvez, seu apelido, Habu, agressiva cobra da ilha de Okinawa. Ele voava a 3.500 km/h, a mais de 25.000 metros de altura, ou 85.000 pés. Especula-se que podia superar mach 3,5, e chegar a 30.000 metros de altura. Esses dados sugerem o esforço de engenharia envolvido em sua construção: Uma vez que fica sujeito a temperaturas de 500°C em velocidade de cruzeiro, o avião é construído com resistentes ligas de titânio. Mesmo assim, para fazer face à expansão do material, o revestimento das asas é corrugado: em vôo, as ondulações “alisam”, e os interstícios se fecham; frio, no solo, o Blackbird deixa vazar grande quantidade de combustível. O regime de altas temperaturas também exige o emprego de outros materiais exóticos e caros, que vão desde o revestimento de prata nos pneus até o fluido hidráulico sintético que praticamente solidifica abaixo de 30°C. 

A aeronave, uma raia malvada que jurou os céus, consiste na união de uma fuselagem achatada a uma asa-delta, subordinada a dois enormes reatores Pratt Whitney, que geravam 15 toneladas de empuxo, em pós-combustão plena. Únicos no mundo, esses motores mudavam de ciclo a 3.220 km/h, quando os compressores se tornavam desnecessários, e o aparelho seguia em ramjet, sempre furioso. Paradoxalmente, nessa velocidade ele requeria apenas 1/10 do empuxo total, trabalhando próximo do conceito de estatojato, em que compressor e turbina são dispensados. O combustível, a 316°C e sob violenta pressão, simplesmente aspergia a ultradensa coluna de ar e explodia, gerando a tremenda força necessária para todas as injúrias do monstro. 

Os preparativos para uma missão tomavam quase um dia inteiro. Enquanto a tripulação vestia trajes espaciais e respirava oxigênio puro, para eliminar o nitrogênio do corpo, a equipe de terra aquecia o fluido hidráulico. O embarque ocorria uns trinta minutos antes da decolagem, com os motores já ligados pelo pessoal de terra. Tinha início um longo processo de checagem, que terminava com a aceleração de cada motor até o máximo de sua força, sem a pós-combustão. Na decolagem, um comboio de veículos de observação fazia uma última inspeção, e um diria tratar-se de um desfile. 

O Blackbird era vigiado, nos pousos e decolagens, por um helicóptero, apelidado “Pedro” (em referência ao apóstolo). A corrida era rápida: em afterburn, os brutais motores faziam o monstro negro e trovejante avançar sobre a pista, enquanto as janelas da base estremeciam e um leve tremor tomava conta da terra. Após toda sorte de ignorâncias ele despegava, a 740 km/h, e subia sem dar confiança a seus pajens, insultando a base com poderosas línguas de fogo e um intolerável trovejar. Desaparecia rapidamente do campo visual da multidão de curiosos, que provocava grandes engarrafamentos na autopista vizinha, em Okinawa, destacamento de onde partia para vigiar os clientes preferenciais: Coréia do Norte, China, Vietnã. Subia quase verticalmente, até 25.000 pés, para se encontrar com um avião-tanque, já que o perdulário consumia todo o combustível no esforço da decolagem. Após o lanche (45.000 litros), o Blackbird subia até 33.000 pés e, num insensato mergulho de 3.000 pés, quebrava a barreira do som, retomando, então, a longa marcha até a altitude de serviço. Na subida final, nada podia fazer o SR-71 parar. 

A missão. Alcançada a altitude operacional (18.000 metros), a tripulação desligava os instrumentos de rastreamento de solo, e as comunicações eram desviadas para freqüências confidenciais. O avião se orientava por um sistema astro-inercial de precisão extrema, que trabalhava rastreando as cinqüenta estrelas de seu catálogo. As missões eram feitas em curvas suaves sobre a área de interesse, já que o raio de giro mínimo do aparelho era de 260 a 290 km, a mach 3. Nas altitude e velocidade de cruzeiro o avião ficava instável, e o piloto automático comandava quase totalmente. Mesmo em vôo “manual”, um sistema de aumento de estabilidade de oito canais corrigia as oscilações do aparelho. Era necessário, ainda, que um mecanismo selecionasse os coeficientes e as deflexões dos elevons, internos e externos. O avião padecia de instabilidade inerente quando ganhava ou perdia altitude e simultaneamente dava guinadas; a centragem não podia ser obtida senão bombeando combustível para frente ou para trás do negro corpo. Não chegava a ser como o impensável vetor nuclear B-2 Spirit, a asa voadora, comandado por uma junta de computadores, quadruplamente redundantes, que vota a cada microssegundo a atitude de vôo. Misteriosas, as missões duravam de duas horas e meia a cinco horas, e podia incluir cinco reabastecimentos em vôo. 

O SR-71 era ideal para trabalho fotográfico, e cobria um país, em pouco tempo (suas câmeras fotográficas oblíquas focalizavam 113 km de cada lado; ele podia varrer 259.000 km² por hora). Bem adaptado para Elint (espionagem eletrônica) e obtenção de imagens por radiação infravermelha ou por radar, não era muito bom em Comint (espionagem de comunicação), porque simplesmente não permanecia tempo suficiente no mesmo lugar para ouvir uma conversação inteira. Diferia radicalmente do U-2, o rei da Comint, utilizado pela CIA, capaz de vadiar durante horas ao redor de uma área, assuntando a conversa alheia. Pintado de cinza escuro fosco, em velocidade de cruzeiro o supremo espião tornava-se azul, talvez pelo acúmulo de iras, e não podia ser visto acima de 12.000 metros. Incontáveis mísseis se perdiam, desolados, no espaço onde um SR-71 tinha acabado de passar. Deslocando-se a aproximadamente 50 km/min ele simplesmente era mais rápido que os mísseis que deveriam interceptá-lo. Teria sido inteligente fazer uma barragem de mísseis à sua frente, provocando um choque, mas a estratégia nunca foi tentada. 

Frente a mim, apesar de seus bordos de ataque, descomunais cutelos que ardiam a quase 500°C em velocidade de cruzeiro; apesar de sua alma furtiva e inclinada a sigilos, o monstro estava dócil, e cabia um carinho. No frio intenso do inverno novaiorquino, escaparam homenagens ao feroz pássaro negro, síndico-geral dos céus durante tanto tempo. Nas alturas em que operava o céu é escuro, e vigem estrelas abandonadas. Rendi sofridas homenagens a esse senhor dos céus, namorador de estrelas, vetor de todas as espionagens e de vastas insolências. Campo Grande, 27 de novembro de 2005.

Queenstown

Descendo para o Shotover, arredores de Queenstown.

Nova Zelândia

Abel Tasman Park

Abel Tasman, no dia seguinte ao tsunami.

Floripa