quinta-feira, 2 de fevereiro de 2006

A Verdadeira India

Tendo percorrido muitos países, quero voltar a falar um pouco sobre a India. 1. Antes de ir, suspeitava que a India tinha sérios problemas de superpopulação, infraestrutura etc. Mas nada me preparou para o que vi. Em todo lugar, em cada rua, em qualquer direção que olhasse, milhares de mendigos, maltrapilhos, correndo de um lado para o outro, ou simplesmente parados, provendo o nada. Casas, lojas, escritórios e oficinas formam uma continuidade apavorante de escombros, carcomidos pela indiferença. Não há um centro da cidade e uma periferia: é tudo cinza e corroído, desgastado, de algum modo corrompido. Da mesma maneira os bancos, repartições públicas, escolas. Nada se salva na India real, exceto, talvez, as ruínas de civilizações pretéritas, com templos e monumentos que tentam desmentir a realidade com uma suntuosidade ilícita. Nada é moderno, nem clássico, nem ousado nem grandioso; nem mesmo kitsch: tudo é lixo, escombro e degredo, numa escalada insuportável, que cassa a alegria. 2. O homem. Nada é mais catastrófico, na India, que seu elemento humano. Não estamos falando de pobreza, apenas. Trata-se de um oceano de pessoas uniformemente baixas, e magras. Uma magreza de fome e ausência de proteínas. Pedem esmolas, cobram gorjetas, vendem porcarias, negam o contrato que acabaram de firmar: nenhuma indignidade lhes é estranha. Andam dependuradas em ônibus, ou dentro de carros, riquixás, de bicicleta ou à pé: transformam cada rua num pesadelo, que suplanta e destrói a India das paisagens e monumentos. No fog de Déli, ou qualquer outra cidade, milhões correm fantasmagoricamente atrás de alguma esmola, uma propina. Descrevem um lúgubre espetáculo de fome e miséria, sem apelo. Aos poucos, vê-se que as pessoas formam uma continuidade com as ruínas e escombros; unem-se num lastimável rio de nojo e desespero. "Esta miséria", pensei, "é tão horrível que sua mera existência e perduração, embora no seio do subcontinente indiano, contamina o passado e o futuro e, de algum modo, compromete os astros. Enquanto perdurar, ninguém no mundo poderá ser valoroso ou feliz". A paráfrase remete a Borges. Peço perdão por mais esta apropriação indébita. Gerson Noronha Mota

Chocolates

Isso de chocolate japonês, pode ser perigoso. Ontem, por exemplo, eu estava degustando um chocolate Meiji (nada a ver com a Restauração Meiji, que sempre associo, sem qualquer embasamento histórico, a uma revolta dos samurais) quando a restauração do meu dente não agüentou e ruiu. O da frente. Embargado o sorriso, a proibição de piadinhas, blagues e outras jocosidades não produziu senão sua feroz multiplicação. E no karaokê que visitamos à noite, o japonês da portaria foi logo cobrando, enquanto batia as mãozinhas: "cadê o sorrizão do papai?"
Felizmente, uma relutante ida ao dentista me trouxe a serenidade que Bilac não teve na velhice.
A barra de Meiji, pela metade, ficou de presente para o Júlio, que presenteou a zeladora do hotel, uma senhora muito distinta e afortunadamente banguela.
Parei com chocolates, por ora.
Tóquio, 2 de fevereiro de 2006.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2006

Tóquio

São os insuspeitados canais, a baía, as ruas. Tóquio é delicada, triunfante, educada. Preciso de Tóquio, para minha viagem. Para as memórias e passeios e compras. Ainda não fui ao Palácio Imperial. Não conheço qualquer de seus jardins e já os sei belos e aprazíveis. Tóquio fica ali, na esquina do coração, pulsando. É reunião pacífica de milhões. Um caos de organização obstinada. Nenhum lixo na rua, nenhum chiclete, nenhum barulho indevido, nenhum mendigo ou criança abandonada. Se chove, quem não tem guarda-chuva logo arranja um e, feliz, vai visitar essa arquitetura que carece de adjetivos. Me faz bem, Tóquio. Faz sonhar com um país que, possível, não está disponível para os brasileiros (eis o que é triste). Gerson Noronha Mota

domingo, 29 de janeiro de 2006

Beijing

Palácio de Verão. As pessoas caminhavam sobre as águas congeladas de seu grande lago, enquanto, ao fundo, o sol fazia o possível para sustentar a definhante autoridade do dia. Errei por esse palácio, de sólidos riachos e níveas pedras. Talvez ele seja mais amigo no verão. Não acredito que mais belo. Pequim (Beijing) é cidade de muitos impérios. Está bastante claro que seus construtores ignoravam restrições e estafas. Pareciam devotos da harmonia. Modernamente brotam torres de aço e concreto, sem qualquer menção à grandiosidade da arquitetura imperial. Hão de encontrar seu lugar, numa cidade já povoada de grandiosidades e delicadezas. 29.01.2006.