terça-feira, 5 de junho de 2012

Monarquia

Hélio faz uma intervenção primorosa a respeito da monarquia. Como pode alguém chamar de "rei" um presunçoso que não aceitaria ter como amigo?

Terminam hoje as celebrações do jubileu adamantino da rainha Elizabeth 2ª. Os britânicos e os súditos das outras 15 nações das quais ela é o chefe de Estado já são bem grandinhos para decidir se querem ou não mantê-la no posto. E, ao menos no caso dos ingleses, tudo indica que querem.


A pergunta que não quer calar é: de onde vem tanto fascínio com a realeza? A resposta passa pelo essencialismo, a irresistível tendência dos seres humanos de enxergar uma natureza secreta por trás das coisas.


Monarcas souberam explorar isso bem, proclamando que se sentavam no trono por direito divino. Depois do Altíssimo, eram eles que mandavam. Para reforçar a obediência, desde Homero reis reservaram para si os melhores papéis ficcionais. Todos os heróis da "Ilíada" são soberanos ou herdeiros. O mesmo vale para Gilgamesh, os reis Saul, Davi e Salomão, o ciclo arturiano, Beowulf e até as histórias infantis, povoadas por príncipes e princesas. Não é exagero afirmar que, em nossas cabeças, as noções de herói e rei se misturam.

Após 3.000 anos de doutrinação política e literária, seria uma surpresa se não víssemos a realeza favoravelmente. O problema é que, com o progresso da civilização, o princípio mesmo da monarquia se tornou moralmente injustificável. Como defender que um ser humano tenha privilégios em virtude não de seu esforço (ou, se admitirmos o direito de herança, do de seus pais), mas apenas de seu nascimento? É difícil imaginar ideia mais antidemocrática que essa.

O mais incrível é que, em tempos nos quais apenas sugerir que possa haver diferenças naturais entre raças, gêneros e grupos sociais já aciona a patrulha do politicamente correto, milhões de pessoas ainda se encantem com a mais absurda das dicotomias jamais criadas pelo homem: a divisão do mundo em soberanos e súditos. Daí que, mesmo sendo inexpressivo, o movimento republicano inglês tem toda a minha simpatia.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

J. R. Guzzo

Nunca entendi isso de publicidade oficial. Lembro que, nos jogos de futebol, aparecia publicidade da polícia militar! Será que os torcedores e organizadores estariam inclinados a contratar, por exemplo, a polícia boliviana para fazer a segurança do Maracanã?


País rico é país sem pobreza, lembram? Eu sempre soube que era o contrário: um país rico deve ser cheio de pobres, e sua indefectível pobreza. Se não, não seria rico, oras bolas! E lá se vão centenas de milhões de reais nessa excrescência... Podemos concluir, dessa propagandinha, que país pobre é país sem riqueza? Ou que é país com pobreza? Bem, que o digam os pobres de espírito.

Guzzo:


"Só no Brasil" — eis aí três palavras que todo brasileiro costuma ouvir, 365 dias por ano, a respeito de coisas que só acontecem por aqui, geralmente muito ruins, e que são desconhecidas no resto do mundo. Em geral começam como uma discreta trapaça no uso do dinheiro público, depois se transformam num hábito nacional e, no fim, acabam virando um maciço conto do vigário aplicado o tempo todo pelos governos — que, como viciados em drogas, não conseguem mais viver sem ele. É o que acontece, entre tantos outros pecados exóticos, com a "publicidade oficial". Qualquer cidadão sabe muito bem do que se trata — são esses anúncios que governantes de todos os níveis, da alta administração federal a remotas prefeituras do interior, pagam (com dinheiro do orçamento, é claro) para publicar em jornais e revistas, no rádio e na televisão. Dizem, ali, quanto são bondosos, eficazes e trabalhadores — e mostram as obras de seus governos, reais ou imaginárias, como se estivessem fazendo um imenso favor à população que pagou por elas.

A maioria dessa publicidade, para não dizer toda, trata o contribuinte como um perfeito bobo alegre, pronto a acreditar em qualquer coisa que lhe dizem. Ainda recentemente, em São Paulo, o cidadão podia ver na TV, pago com o seu dinheiro, um anúncio do governo do estado que começava com a imagem de uma vaca, filmada de ré; a câmera se deslocava, então, para mostrar o que deveria ser uma rija lavradora, entregue à sua labuta de tirar, às 5 da manhã, o leite nosso de todo dia. Mas o que aparece é uma graça de garota, com umas botas de cano alto que poderiam ter saído de uma loja Hermes, jeans de grife e sob a luz do meio-dia, com as mãos a distância segurando as tetas do bicho. Ela diz, aí, que sua grande alegria na vida é saber que o leite tirado com o seu trabalho é distribuído pelo governo para crianças pobres etc. A única coisa real, no anúncio todo, é a vaca. Não há inocente aqui; todos os políticos, sem nenhuma exceção, fazem o mesmo quando estão no governo. Nesse assunto, ninguém critica ninguém, no conforto geral de saber que delitos coletivos nunca são realmente condenados. É assim que permanece viva, cada vez mais, a publicidade oficial — uma aberração só vista no Brasil. Dá para imaginar o governo da Itália, por exemplo, gastando fortunas na mídia para dizer "Itália — um país para todos"? Ou algo assim: "Prefeitura de Londres — antes não tinha, agora tem"? Não dá. O funcionário que sugerisse uma coisa dessas seria provavelmente encaminhado a uma instituição psiquiátrica.

Neste momento, com a campanha eleitoral, a coisa pega fogo. No ano passado, só o governo federal gastou mais de 3 bilhões de reais em "comunicação", entre publicidade e patrocínios. Juntando a isso estados e prefeituras, o volume de gastos entra em mares nunca dantes navegados. Os políticos alegam que é pouco, diante do total de quase 90 bilhões aplicados no mercado publicitário brasileiro em 2011. Pode ser, mas o dinheiro não é deles — é do cidadão, e está sendo jogado no lixo para pagar os elogios que fazem a si próprios. Sua desculpa é que os governantes têm o dever de "informar a população" e "prestar contas" de como estão aplicando o orçamento. É uma piada. Não informam coisa nenhuma, e, na hora de prestar contas de verdade, fazem justamente o contrário: desligam a chave geral para deixar tudo o mais escuro possível.

Os órgãos de comunicação, sem dúvida, se beneficiam da publicidade oficial; nenhum deles é uma santa casa de misericórdia, e todos têm de pagar suas despesas. Mas a imprensa de verdade vive do apoio do seu público e dos anúncios privados que ele atrai, e não de verbas publicitárias do governo. Seu único mandamento, nessa história toda, é manter a própria independência. E os que não mantiverem? Problema deles. Veículos que, em troca de anúncios, só publicam o que interessa ao governo, e escondem tudo o que não interessa, têm de resolver isso com os seus leitores, ouvintes e espectadores; se eles desconfiarem que estão sendo enganados, podem ir embora. O certo, no fim de todas as contas, é que o governo não deveria pagar um único tostão para a mídia publicar sua propaganda. Eis aí mais uma coisa que nos separa, por exemplo, de um país como a Alemanha, onde publicidade oficial não existe. É que a Alemanha, coitada, é apenas a Alemanha. Já o Brasil é o Brasil — aqui há dinheiro de sobra para o governo jogar pela janela. Somos um país onde a população é riquíssima.