sexta-feira, 23 de dezembro de 2005

Inverno em Praga

Praha, capital da Tchecoslováquia, agora República Tcheca, é uma cidade do Leste Europeu cheia de encantos. Sua arquitetura medieval, rica em torres, capitéis e campanários, evoca talvez Florença, a sermos amigos de comparações.


A catedral Tyn, o torreão isolado no meio da rua, o Castelo de Praga: há um toque naturalmente sinistro nessas massas arquitetônicas que, se não vem de Kafka, o evocam ou, no mínimo, não o refutam.

Tampouco o que sobrou dos guetos negam o profundo escritor, autor de O Processo, A Colônia Penal e A Metamorfose, artífice dos mais sombrios pesadelos que já deram expediente no espírito humano.

A família do escritor foi assassinada nos campos de concentração, na década de 1940. Kafka morreu de tuberculose, aos 42 anos, apos intuir metaforicamente todos os terrores do Século XX, chefiá-lo literariamente e debelar nossas últimas ilusões. Foi o esteta superior daquele século, de uma desumanidade manifesta.

Praga está tomada de gratificados turistas. E cheia de música.

Volto agora das Quatro Estações, de Vivaldi.

Amanhã, o ossário de Sedlic e, quem sabe, jazz, à noite. 

Praga, 22 de dezembro de 2005.

Os mosquitos e outros incidentes

O amigo Júlio contou, num desses despachos, sobre uma noite com insetos em São Paulo. Não seria ético de minha parte lançar dúvida sobre a veracidade do relato. Eu jamais pensaria em desautorizar um amigo que, afinal de contas, divide o mundo comigo. Gostaria, no entanto, se não for excessivo, de divulgar minha versão dos fatos. Tudo ia bem naquela noite, uma noite comum, se me permitem a observação. Tínhamos comprado horrores numa loja de montanhismo (principalmente coisas de que jamais precisaremos), visitado o Iguatemy e resolvêramos descansar para o dia seguinte, o da partida. Lá pelas tantas, noto que o Júlio saiu do quarto, em direçãoo à sala contígua (era um apartamento grande). Voltou com alguma coisa, que ligou na tomada. De imediato, senti a empolgação das muriçocas, até ali invisíveis ou, pelo menos, inertes: começaram os zumbidos e as picadas. Mais tarde, o mesmo Júlio sai do quarto, visivelmente determinado, e volta logo depois, com mais equipamentos. Notei a alegria dos pernilongos, que o seguiam, e entraram a extrair quotas cada vez mais exageradas do pouco sangue que nos restava. Indiferente a esses sucessos, uma terceira vez sai o Júlio, agora com cara de matador. Pluga freneticamente equipamentos por todo o quarto, alguns com leds, outros emitindo risíveis sonoridades. Resultado: uma rave de muriçocas, uma animadíssima festa alimentada com nosso sangue. II. Nas ruas de Praga a temperatura media é de 2 ou 3 Celsius positivos. Daí as mochilas, cheias de acessórios. Júlio saiu com a sua, uma mochila digna de um jardim da infância. Alertei-o para que não passasse por um albergue, por exemplo. Os mochileiros prontamente o espancariam, com grande alegria, à vista do evidente insulto. O gesto, bem pouco viril, de usar casaco e bota de montanhismo para ir ao teatro foi outra de minhas observações, sem sucesso. Lá estava ele, armado até os dentes para um frio da Sibéria, assistindo As Quatro Estações numa sala tão quente que as crianças tiraram seus agasalhos. Felizmente, tudo vai bem na viagem, tirando os incidentes acima. Praga, 23 de dezembro de 2005.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2005

Bonito

Última viagem a trabalho: Bonito. Acabo de vir do Abismo Anhumas. Espeleotemas submersos, luz do sol na água e arqueitetura de catedral, trabalhada até a vertigem. Na flutuação, o azul incansável flertando com profundidades proibidas. A volta não dispensa 76 metros de árdua subida no rapel. Na Boca da Onça, 866 degraus e uma cachoeira de 160 metros. Beleza leve. Caminhada na sombra e mergulho numas 12 cachoeiras. Depois, almoço junto ao fogão de lenha. A madeira em brasa perfuma suavemente a comida, e abre o sertão para o paladar. Cumpro minha peregrinação anual a Bonito. Estou feliz, quanto alguém pode estar. Após os degraus, e o rapel, absolvo-me de exercícios físicos por uma semana.

domingo, 4 de dezembro de 2005

A semana

Queda de Josef Dirceu, difíceis votos no Supremo e entrevista de seu presidente queixando-se das críticas recebidas. As decisões do STF são irrecorríveis, mas não encontrei no Texto que ele diz guardar vedação a críticas a suas decisões. E elas vão se tornar acerbas, a não se corrigir certo viés político. O julgamento de Josef foi político, exatamente como toda decisão do Parlamento; precisamente como manda a Constituição. Ora, agora teremos a aplicação do CPP ao pé da letra, vírgula por vírgula, num julgamento político? Porventura o Supremo devolveu o mandato de Collor, quando o considerou inocente? Então fica assim: o Parlamento sendo obrigado, mediante decisões políticas, a proferir julgamentos técnico-jurídicos. Ora ora... Jobim demonstrou lucidez quando propôs aquela votação final, que definiu a essência da decisão, e afastou a ingerência no Parlamento, aduzindo que um novo relatório era desnecessário. Nessa semana, no Rio, o ônibus 350, Irajá-Passeio, ardeu com cinco a bordo. Todos incinerados. Todos seres humanos. Uma criança. Se existisse República, se existisse solidariedade, se existisse Nação, estaríamos todos de luto. E prontos para a ação. Mas estamos todos embotados com essas notinhas de jornal, com esses achaques da PM "tudo será apurado com rigor", com essas guerras do tráfico. Burilo um texto sobre Danton, Robespierre, Barras e outros. O Terror daqueles dias consentia utopias libertárias e de justiça social. O Terror do Rio não admite comentários.

domingo, 27 de novembro de 2005

Blackbird

Passei a adolescência cultivando a amizade de aeronaves militares. Muitas linhagens civis também me cativavam. Um apego a jatos militares, caças, modelos aeronavais: um mundo apolítico, repleto de armas voadoras. Perdoe o leitor o aborrecimento dessas memórias, e a descrição de algumas dessas máquinas. O texto é baseado na revista Aviões de Guerra, editada pela Nova Cultural na década de 1980. A força aérea americana, de longe a mais importante do mundo, designa seus aviões de superioridade aérea (caças), pelo prefixo F, seguido de um número. O supercaça F-15 Eagle foi o mais importante avião de guerra do mundo durante mais de 25 anos. Era o único capaz de iniciar uma corrida supersônica na vertical; perfeito em qualquer quesito, ainda está em serviço, mas começa a ceder o lugar para o impressionante F-22 Raptor. Ao lado dos caças, temos os bombardeiros: dentre eles, o B-1B Lancer, monstro do ataque nuclear, ainda em serviço, e o Mirage IVP, gigante francês da dissuasão nuclear, recentemente tirado de serviço. A mais espetacular aeronave já construída, o SR-71 Blackbird, servia à espionagem. Inspecionei-a no convés de vôo do porta-aviões Intrepid, lasso vaso de guerra estacionado no rio Hudson, em Manhattan. Mesmo ali, despido da mística de hangares secretos, impregnou-me a vertigem de seus vôos de espionagem sobre territórios inimigos, nunca admitidos; acometeu-me um tremor, próprio de quem presenciou a sinistra ascensão desse monstro negro de 85 toneladas. À guisa de propulsores, dotou-lhe a Lockheed de duas explosões estelares, que emitiam fúrias de fogo. O avião sintetiza o gênio militar aplicado à engenharia aeronáutica. Eu me deliciava com os detalhes de sua construção e características, e com os relatos de sua operação, um minucioso roteiro de delírios. A ninguém que o tenha visto operar num dia chuvoso deixou de ocorrer que o monstro, tirante a raia, tem predicados que o situam entre o tubarão mais senhoril e a cobra mais ameaçadora. Daí, talvez, seu apelido, Habu, agressiva cobra da ilha de Okinawa. Ele voava a 3.500 km/h, a mais de 25.000 metros de altura, ou 85.000 pés. Especula-se que podia superar mach 3,5, e chegar a 30.000 metros de altura. Esses dados sugerem o esforço de engenharia envolvido em sua construção: Uma vez que fica sujeito a temperaturas de 500°C em velocidade de cruzeiro, o avião é construído com resistentes ligas de titânio. Mesmo assim, para fazer face à expansão do material, o revestimento das asas é corrugado: em vôo, as ondulações “alisam”, e os interstícios se fecham; frio, no solo, o Blackbird deixa vazar grande quantidade de combustível. O regime de altas temperaturas também exige o emprego de outros materiais exóticos e caros, que vão desde o revestimento de prata nos pneus até o fluido hidráulico sintético que praticamente solidifica abaixo de 30°C. A aeronave, uma raia malvada que jurou os céus, consiste na união de uma fuselagem achatada a uma asa-delta, subordinada a dois enormes reatores Pratt Whitney, que geravam 15 toneladas de empuxo, em pós-combustão plena. Únicos no mundo, esses motores mudavam de ciclo a 3.220 km/h, quando os compressores se tornavam desnecessários, e o aparelho seguia em ramjet, sempre furioso. Paradoxalmente, nessa velocidade ele requeria apenas 1/10 do empuxo total, trabalhando próximo do conceito de estatojato, em que compressor e turbina são dispensados. O combustível, a 316°C e sob violenta pressão, simplesmente aspergia a ultradensa coluna de ar e explodia, gerando a tremenda força necessária para todas as injúrias do monstro. Os preparativos para uma missão tomavam quase um dia inteiro. Enquanto a tripulação vestia trajes espaciais e respirava oxigênio puro, para eliminar o nitrogênio do corpo, a equipe de terra aquecia o fluido hidráulico. O embarque ocorria uns trinta minutos antes da decolagem, com os motores já ligados pelo pessoal de terra. Tinha início um longo processo de checagem, que terminava com a aceleração de cada motor até o máximo de sua força, sem a pós-combustão. Na decolagem, um comboio de veículos de observação fazia uma última inspeção, e um diria tratar-se de um desfile. O Blackbird era vigiado, nos pousos e decolagens, por um helicóptero, apelidado “Pedro” (em referência ao apóstolo). A corrida era rápida: em plena combustão, os brutais motores faziam o monstro negro e trovejante avançar sobre a pista, enquanto as janelas da base estremeciam e um leve tremor tomava conta da terra. Após toda sorte de ignorâncias ele despegava, a 740 km/h, e subia sem dar confiança a seus pajens, insultando a base com poderosas línguas de fogo e um intolerável trovejar. Desaparecia rapidamente do campo visual da multidão de curiosos, que provocava grandes engarrafamentos na autopista vizinha, em Okinawa, destacamento de onde partia para vigiar os clientes preferenciais: Coréia do Norte, China, Vietnã. Subia quase verticalmente, até 25.000 pés, para se encontrar com um avião-tanque, já que o perdulário consumia todo o combustível no esforço da decolagem. Após o lanche (45.000 litros), o Blackbird subia até 33.000 pés e, num insensato mergulho de 3.000 pés, quebrava a barreira do som, retomando, então, a longa marcha até a altitude de serviço. Na subida final, nada podia fazer o SR-71 parar. A missão. Alcançada a altitude operacional (18.000 metros), a tripulação desligava os instrumentos de rastreamento de solo, e as comunicações eram desviadas para freqüências confidenciais. O avião se orientava por um sistema astro-inercial de precisão extrema, que trabalhava rastreando as cinqüenta estrelas de seu catálogo. As missões eram feitas em curvas suaves sobre a área de interesse, já que o raio de giro mínimo do aparelho era de 260 a 290 km, a mach 3. Nas altitude e velocidade de cruzeiro o avião ficava instável, e o piloto automático comandava quase totalmente. Mesmo em vôo “manual”, um sistema de aumento de estabilidade de oito canais corrigia as oscilações do aparelho. Era necessário, ainda, que um mecanismo selecionasse os coeficientes e as deflexões dos elevons, internos e externos. O avião padecia de instabilidade inerente quando ganhava ou perdia altitude e simultaneamente dava guinadas; a centragem não podia ser obtida senão bombeando combustível para frente ou para trás do negro corpo. Não chegava a ser como o impensável vetor nuclear B-2 Spirit, a asa voadora, comandado por uma junta de computadores, quadruplamente redundantes, que vota a cada microssegundo a atitude de vôo. Misteriosas, as missões duravam de duas horas e meia a cinco horas, e podia incluir cinco reabastecimentos em vôo. O SR-71 era ideal para trabalho fotográfico, e cobria um país, em pouco tempo (suas câmeras fotográficas oblíquas focalizavam 113 km de cada lado; ele podia varrer 259.000 km² por hora). Bem adaptado para Elint (espionagem eletrônica) e obtenção de imagens por radiação infravermelha ou por radar, não era muito bom em Comint (espionagem de comunicação), porque simplesmente não permanecia tempo suficiente no mesmo lugar para ouvir uma conversação inteira. Diferia radicalmente do U-2, o rei da Comint, utilizado pela CIA, capaz de vadear durante horas ao redor de uma área, assuntando a conversa alheia. Pintado de cinza escuro fosco, em velocidade de cruzeiro o supremo espião tornava-se azul, talvez pelo acúmulo de iras, e não podia ser visto acima de 12.000 metros. Incontáveis mísseis se perdiam, desolados, no espaço onde um SR-71 tinha acabado de passar. Deslocando-se a aproximadamente 50 km/min ele simplesmente era mais rápido que os mísseis que deveriam interceptá-lo. Teria sido inteligente fazer uma barragem de mísseis à sua frente, provocando um choque, mas a estratégia nunca foi tentada. Em frente a mim, apesar de seus bordos de ataque, descomunais cutelos que ardiam a quase 500°C em velocidade de cruzeiro; apesar de sua alma furtiva e inclinada a sigilos, o monstro estava dócil, e cabia um carinho. No frio intenso do inverno novaiorquino, escaparam homenagens ao feroz pássaro negro, síndico-geral dos céus durante tanto tempo. Nas alturas em que operava o céu é escuro, e vigem estrelas abandonadas. Rendi sofridas homenagens a esse senhor dos céus, namorador de estrelas, vetor de todas as espionagens e de vastas insolências. Campo Grande, 27 de novembro de 2005.

sábado, 26 de novembro de 2005

Sábado

Termino agora a leitura do jornal. Marcelo Rubens Paiva, criticando o sensacionalismo da imprensa com as supostas revoluções da medicina, e particularmente a Veja, nos brinda com a seguinte manchete de uma revista:

Síndrome do intestino instável, sons e movimentos estranhos podem ser sinais desta doença.

E a pergunta: "Por que você está rindo?"

Ele ainda se lembra (e eu também) de quando Cid Moreira (sim, o Cid) anunciava, a intervalos previsíveis, a cura do câncer. Depois essas curas passaram a ser feitas com plantas da amazônia. Não é bacana, leitor?

Marcelo reclama, ainda, do inefável Dr. Fritz. Putz! Não suporto quem fala mal do Fritz.

Em suas reiteradas encarnações, Fritz cura muita gente, que costuma retribuir com a ingratidão de algumas facadas. Até aquele sotaque, tirante a novela da Globo, me encantava. Wanessa Camargo foi curada numa dessas "cirurgias espirituais", alardeia outro magazine, o que mais e mais prova que os céticos são mesmo uns chatos mal-informados.

Dizia eu, em algum despacho (foi o Josias que inventou essa de despacho. De onde ele tirou essa maluquice?) que acredito em mula-sem-cabeça. É verdade.

Em realidade as mulas, da espécie sem cabeça, são uma forte presença em nossa ricamente ilustrada nação. E não passa um dia sem que eu me convença, cada vez com mais fervor, da inocência do Dirceu.

Espero que tanta inocência sirva de reflexão para o STF.

domingo, 20 de novembro de 2005

O presidente e o vidente

Esta é uma história de um presidente (qualquer um, o leitor escolhe). Ele acredita em videntes. 

Todos nós, que vivemos a Era Paulo Coelho, acreditamos em videntes. E também em elfos, duendes, fadas e anões de jardim. Declaro acreditar, não sem fervor, em mula-sem-cabeça. 

Mesmo assim alguns insensatos, por vezes, não acreditam no COPOM (órgão extraconstitucional com destacada atuação extralegal), o que é deplorável. Desacatam os inefáveis monges do Comitê de Política Econômica, que mensalmente se reúnem numa missa negra e transmitem os sinais da representação divina pelo gesto da igualmente divina elevação do cálice dos juros. 

Nas palavras do herege Paulo Rebello de Castro “quando a missa do Copom aponta uma alta de meio ponto percentual no já elevado cálice dos juros básicos, os fiéis suspiram resignados enquanto entoam, baixinho [bem baixinho], miserere nobis”.¹ 

Após almoçar com a diretoria do Banco Central (inteiramente composta de duendes), o presidente vai ao amigo vidente e pergunta o que ele vê em seu futuro. O vidente se concentra (ele realmente se concentra, leitor), fecha os olhos (que abrifecham, tremurados, cheios de temor e reverência), e fala: 

– Vejo o senhor passando no Eixo Monumental, em carro aberto, e uma multidão agitada, acenando. O presidente sorri e pergunta, ansioso: 

– Essa multidão que você vê, ela está feliz, não é mesmo? 

– Se ela está feliz! Ela chora de felicidade! Nem é lícito tentar descrever tamanho estoque de felicidade num só lugar. O presidente se entusiasma e, estreitando-se ao amigo, pergunta: 

– Eles estão correndo atrás do carro? 

– Ora quanta modéstia! Eles correm feito possessos atrás do carro, e ficam à sua volta. Os batedores estão tendo dificuldades em abrir caminho e, por trás dos óculos escuros e do semblante marcial a que são obrigados, também choram de felicidade cívica. 

– Eles carregam bandeiras? – Se carregam bandeiras! Ele quer saber se eles carregam bandeiras! Eles praticamente esgotaram o estoque de bandeiras do País e faixas com palavras de esperança e de um futuro muito em breve melhor. 

– E eles gritam, cantam, os dessa multidão? – Se eles gritam e cantam! Essa é muito boa! Eles irrompem em ondas espontâneas de euforia e entusiasmo, com erupções como "Agora sim!! Agora vai melhorar!!! Sem medo de ser feliz!!!" 

– E eu estou acenando de volta para eles? 

– Não. 

– Mas como, não? 

– O caixão está lacrado, oras bolas! 

Como o leitor já percebeu, essa historinha não é minha. Recolhi-a na rede e, por mais encantadora que seja, sinto que não sou responsável por ela. ¹ [Folha de São Paulo, 27.10.2004, p. B-2)

domingo, 6 de novembro de 2005

Labirintos e espelhos

A Borges horrorizavam os labirintos e a falaz multiplicação dos espelhos, “seu infalível e contínuo funcionamento, sua perseguição de meus atos (...) Sei que os vigiava com inquietude. Algumas vezes temi que começassem a divergir da realidade; outras, ver neles meu rosto desfigurado por adversidades estranhas.” Advogo que Borges deveria ser declarado o mais sábio entre os que experimentaram o século que alegremente desperdiçamos, e que ora evanesce em nossas lânguidas memórias. Eu o elegeria também o mais venturoso, não soubesse de certas suas tristezas: “O mundo, infelizmente, é real; eu, infelizmente, sou Borges”. Cego na maturidade, a outros legou seu encargo de vigiar os espelhos, aparelhos de fatigar a realidade. A cada um de nós, que herdamos esse encargo, e também suas páginas e felicidades, ele atinge com esta verdade: “Tu és invulnerável”. Domingo, 6 de novembro de 2005.

sexta-feira, 4 de novembro de 2005

Impressões avulsas (quase diário)

Consta que os blogs são diários virtuais. Se for verdade, ofereço as notas que seguem, sem outra intenção que submeter a esforços a amizade do leitor. Impressões avulsas (do longínquo ano de 2001): a) Notícia literária. 1. Bons livros chegaram-me às mãos. Para citar alguns: duas versões da obra máxima de D. H. Lawrence: O Amante de Lady Chatterley, um incursão memorável ao erotismo do início do século XX; diversos contos mágicos do gênio Guimarães Rosa, entre os quais, A Terceira Margem do Rio e A Menina de Lá. Poesia Pura. Ainda, O Vermelho e o Negro, de Stendhal; Um Conto de Duas Cidades, de Charles Dickens (magnífico). Leituras e releituras intensas de Machado de Assis e Jorge Luís Borges. 2. Borges é de uma loucura preciosa e risonha. Quanto ao Bruxo do Cosme Velho, impossível estimar nossa dívida para com esse mago das eternações. Teve ainda a continuidade do Ulisses, de Joyce, para sempre intérmino, e a impagável trinca Mark Twain, G. K. Chesterton, e Ítalo Calvino, cômicos irresponsáveis, maravilhosos e imprescindíveis. 3. Inúmeros contos de Franz Kafka, o gênio literário máximo do século passado, li e reli, entre os quais: Na Colônia Penal, o hilário A Sentença (hilário num sentido kafkiano, em que o cômico está contido no trágico), e Antes da Lei, o texto que abre o filme O Processo, versão Orson Welles, filme total. 4. Que dizer de Faulkner? O Som e a Fúria, e Santuário foram lidos em conjunto, para melhor apreciar a estranha prosa desse escritor. Foi também o ano da leitura do Werther, essa explosão de amor romântico do mestre Goethe. A extrema má impressão deixada pelo Fausto foi superada com essa obra. Penso que a tradução deve ter feito muito mal ao pobre Fausto. 5. Tem uma pá de outros livros lidos, mas já não me lembro, e não vou torturar minha biblioteca em busca de uma confissão. 6. Convém anotar (para satisfazer as almas inclinadas a contabilidades) alguns títulos e autores: Daniel C. Dennett (A Perigosa Idéia de Darwin e Tipos de Mentes), obras filosóficas no bom sentido da expressão. Devo-lhes muito. John R. Searle (Mente, Linguagem e Sociedade, outro filósofo da atualidade); Ana Arendt (As Origens do Totalitarismo, leitura intérmina, infelizmente); Clemente Nóbrega (Glorioso Acidente, repositório das grandes idéias contemporâneas); Robert Gilmore (Alice no País do Quantum, fábula bem-humorada sobre os paradoxos e perplexidades a que nos conduz a Mecânica Quântica); Michio Maku (Hiperespaço, uma prosa instigante sobre a natureza hiperdimensional do mundo. Desafia a imaginar um mundo com mais de quatro dimensões, a partir de um mundo igualmente fantástico, de apenas três dimensões); George Smoot e Keay Davidson (Dobras no Tempo); Brian Greene (O Universo Elegante); Geoffrey F. Miller (A Mente Seletiva, que apresenta a outra teoria de Darwin, conhecida como seleção sexual); John Maddox (O Que Falta Descobrir). Maddox é editor emérito da prestigiosa Nature. 7. Li, ainda, todos os volumes de S. Jay Gould que consegui derrubar de velhas prateleiras, talvez pra me livrar logo desse mala. São livros fragmentários, mas que apresentam conceitos interessantes, como o da neotenia humana, e nos dá uma aula sobre as médias de rebatidas no Baseball americano). Vou ser franco: depois de ler todos os livros de R. Dawkins, é até covardia ler outro autor sobre os mesmos assuntos. Dawkins aguarda releitura. 8. Dois outros livros precisam ser destacados: O Bico do Tentilhão, de Jonathan Weiner, descreve a evolução de tentilhões acontecendo, ao vivo e em cores, matematicamente mensurada, no arquipélago de Galápagos; trata-se de uma devastadora demonstração de como funciona a Teoria da Evolução. Uma grande injúria a certos dogmas religiosos. b) Filmes. Assisti a um caminhão de filmes em 2001. Mas o que importa mencionar são alguns diretores. Ingmar Bergman (Morangos Silvestres, Mary e Alexandre e outros); Woody Allen (O Testa de Ferro, Celebridades, Todos Dizem Eu Te Amo e outros); Orson Welles (autor das duas obras máximas do cinema: Cidadão Kane e O Processo); Akira Kurosawa (Dersu Uzala, Rapsódia em Agosto e outros); Stanley Kubrick (Laranja Mecânica, 2001, Nascido Para Matar e outros); Luis Buñel, Pedro Almodóvar, Robert Altman, e vários outros. Sim, o cinema nacional. c) Viagens. 1. Inaugurei o ano no balneário de Camboriú. Logo depois parti para a África do Sul, para uma visita de 15 dias. Nunca tinha posto os pés em hotéis tão luxuosos. Mas a viagem, como um todo, desapontou. A Cidade do Cabo é muito bonita, e guarda qualquer coisa de Rio de Janeiro (talvez o tema da montanha e do mar); tem uma vida cultural interessante (pelo menos aos olhos de um turista em primeira visita); inúmeras atrações, como a subida à Montanha da Mesa e o Cabo da Boa Esperança. Tudo bem bonito. A rota dos jardins também agrada, com suas cidadezinhas ao estilo inglês. As gargantas e vales que se vêem depois bem valem a viagem. Mas o Kruger Park e a Cidade Perdida, definitivamente, não impressionam. The Lost City (leia-se hotel Sun City) não passa de uma Las Vegas em miniatura e, no Kruger, o turista se farta de ver pequenos antílopes (dik diks, kudus), zebras de todas as estampas, muitas girafas, elefantes, alguns rinocerontes, mas nada de leões, leopardos, e mesmo búfalos. Minha idéia de África envolvia savanas selvagens, habitadas por felinos, manadas intermináveis de antílopes, paquidermes e outros pequenos animais, todos em feroz interação na luta pela vida. O que cheguei a ver foi um entediante desfile de animais, alguns aparecendo mais que outros. Ao chegar a São Paulo, tive ganas de sair em comitiva até o Simba Safári, a ver os big five, provisoriamente indisponíveis na África. 2. Jericoaquara. Chegamos a Jeri num pau-de-arara, como perfeitos retirantes. Pau-de-arara, no caso, era um caminhão de dois eixos, sem portas na cabina, com uma carroçaria de inesgotável altura, sem escadas para subir, repleta de bancos de madeira. Chegamos pela madrugada, lá pela uma da manhã, e embarcamos no caminhão, da maneira mais desconfortável possível. 3. Quando o caminhão ligou o motor, minha ilusão de cochilar mais um pouco se desfez: mesmo hoje, seu barulho ainda atormenta. Parece que o horrível veículo deixava os gases escapar diretamente do motor, sem um único estágio de escapamento, de modo que o barulho era nauseante. 4. Quando a estrada começou a colear na caatinga costeira sobre dunas cada vez mais altas, entrei a sentir a emoção da chegada a esse lugar. A escuridão era profunda, e o céu alardeava suas mais brilhantes estrelas. 5. Submetido aos feitiços da Alva, o sertão estava ali: o derramamento de estrelas, a relva contorcida, cabanas paupérrimas, e o pau-de-arara levando retirantes de todo o mundo, insensatos em seus projetos de paraíso. 6. Quando chegamos, alguns foram direto para a padaria; outros, como eu, derivaram vagarosamente para a cama, calma. Depois me disseram que o quente é a padaria, à uma e meia da manhã. No maior mico da viagem, perguntei a dois portugueses se, porventura, eles prestigiaram a padaria... 7. Jeri me pareceu a meca do pôr-do-sol. Num dos lados do vilarejo de pescadores, ergue-se majestosa duna de areias brancas, do alto da qual dá-se o espetáculo da união do astro com o mar, também afogueado no consumir de vasta tarde. Não me esqueço do esplendor agreste de Jeri, de suas glórias feitas de sol, mar, céu, e doces, absolutamente maravilhosos, de coco. 8. São Paulo. Finalmente a cidade me impressionou positivamente, após longo tempo de estranhamento. Eu, que a conhecia de passagem, sempre correndo de Guarulhos até o centro e vice-versa, fui conhecer facetas mais favoráveis desse aglomerado brasileiro. Tomei um ônibus para turistas na Barra Funda e fui conhecer – de graça! – os principais museus da cidade. 9. O que mais me agradou, de longe, foi a Pinacoteca do Estado. Pequeno, aconchegante, repleto de belas obras: um museu para quem gosta de arte. Não é um daqueles supermuseus europeus ou americanos: inimigos dos pés e muito inclinados a zombar de pobres turistas, como eu, com escasso tempo. A Pinacoteca, com sua despretensão e estilo, é o grande programa cultural de São Paulo. 10. Outra coisa chama a atenção em São Paulo: as pessoas. Impressiona a maneira de ser paulistana, parece que sempre profissional, freqüentemente cordial, sem dever nada a ninguém. E tem a fala. Rápida, concisa, uma urgência pouco contida de comunicar, elaborando a tendência de inserir um i no meio das palavras, logo depois de alguma vogal desavisada: um falar de quem incorporou a Itália à matriz luso-africana. Tá entendeindo? Ãrrãim. 11. O paulista, parece, é dono de sua cidade, de seu tempo: acostumou-se ao fenômeno da densidade humana, incorporou-o à sua personalidade e jeito. A grande “curtição” em São Paulo são as pessoas, a pizzaria, o shopping: elementos de uma cultura discutível mas existente. 12. Freqüentei teatros e shows todas as noites de minha estada, de uma semana. Assisti a Marisa Monte, Les Miserables, algumas comédias e outras tragédias. A peça de Victor Hugo me pareceu interessante, falada e cantada em português. Já a havia assistido em Nova Iorque, e a produção local não deixou a desejar à da Broadway. Os efeitos especiais eram diferentes, e as músicas soaram estranhas, como todo musical em português. 13. Quanto ao show de Marisa, a casa de espetáculo era tão grande, mas tão grande, que eu devo ter escutado as músicas com alguns minutos de atraso, exageros à parte. Mas juro que consegui enxergar que era ela mesma que estava no palco, e não sua irmã, por exemplo. Pelo menos me pareceu. 14. Natal e Fernando de Noronha: Natal foi um caso de amor para com uma cidade: seu calor vigoroso encontra temperos na brisa marítima. Conheci Natal na adolescência. Desde então me encanta essa cidade costeira, suas praias, suas dunas móveis, sua areia alva, o sol num trabalho sempre sério e competente. Na época eu era aficionado por aviões. Um apego a jatos militares, caças, aeronaves de espionagem, modelos aeronavais: uns mundos adolescentes, repletos de armas voadoras. Minha tentativa de ingressar na Academia da Força Aérea foi rechaçada, para grande contentamento da nação. 15. Natal era o mar, o imenso, silente e misterioso mar, com sua túnica profunda, cingida por navios intrépidos, e a areia do entorno costeiro, alegre. Quando vi pela primeira vez a praia de Ponta Negra, em 1986, foi um transporte de êxtase. Nunca havia visto semelhante concerto entre terra e mar, céu e terra, gente e natureza. Desde então tenho visto muita praia, muita montanha, inúmeros rios e mares. Mas aquela emoção, autêntica em um adolescente, permaneceu. 16. O sol de Natal é recomendado para pessoas melancólicas, por sua generosa alegria. O ar dessa cidade deve ser sorvido a bons haustos, acompanhando uma água de coco, numa tarde preguiçosa de domingo, enquanto o mar é singrado por navios ciganos. 17. Quanto à Esmeralda do Atlântico, alcunha de Fernando de Noronha, era sonho antigo conhecê-la. E a realidade não ficou devendo ao sonho. 18. Cheguei num turboélice barulhento. Do alto, um choque de beleza. Noronha não é qualquer lugar. Se parece com a sucursal do paraíso na terra, lugar para se testar os limites dos sonhos, exultar. Só isso. 06.01.2002

quinta-feira, 3 de novembro de 2005

Os mascateiros

Os mascateiros Mosche e Daniel se cumprimentam no meio da interminável planície russa. O texto não é meu e, se o ofereço ao perseverante leitor, é porque muito o estimo. - Aonde você vai, Daniel? – disse um. - A Sebastopol – disse o outro. - Então, Mosche o olhou fixamente e afirmou: - Você mente, Daniel. Diz que vai a Sebastopol para que eu pense que vai a Nijni-Novgorod, mas o certo é que vai mesmo a Sebastopol. Você mente, Daniel!” Não revelo onde encontrar essa delícia. Digo apenas que está no primeiro dos quatro tomos da tradução para o português das obras completas de Borges.

quarta-feira, 2 de novembro de 2005

Palavras

Os peixes do ar serão talvez diáfanos. Victor Hugo. Os Trabalhadores do Mar. Palavras: sou seu humilde criado para serviços leves. Podem enxergar cabotinismo na minha declaração de afeto. Toleima. Sou um trabalhador das letras mesmo que elas me repitam errado. Sou amigo das palavras – da maior parte delas, porque algumas me detestam –. Às vezes fico de birra com uma; por outras, sou alvejado com indiferença. Drummond elegeu glicínia uma palavra bela. Tentei dafnes, tílias, e quantas margaridas, sem qualquer resultado. Não me importam os significados – arbitrários – que lhes atribuímos. Pouco se me dá o sentido dos termos ironia, política ou ética. Carente de organização e método, me escondo na barafunda de jornais me iludo com as bulas e seus venenos me divirto com as listas telefônicas me engano com o manuais. Palavras missões de mim segregam estesias, ganham conformidade: uma vida humana em signos. Atribui-se a Voltaire a frase “Segurar uma caneta é estar em guerra”. Mãos sobre o teclado indagador pesquisam excruciantes segredos; viajam num retângulo saturado de sinais que prelibam abismos. Cada tecla, um desafio; cada dedo vota um medo, tenta esquivar-se da pergunta. Desconhecidas empresas aguardam incautos servidores palavrados. Eus emissões de mim são discriminados na acerba contingência das palavras. Acendrado pelos quereres me ponho a perder na vastidão de códigos indecifráveis. Sou um operário das letras mesmo que elas me emendem errado. Palavras simples hauridas à dor: estou em guerra. Uma genuína e inútil guerra. II. Palavras tiradas à dor insones, vulneradas, palavras sensadas, sabidas a flor. Palavras sonos, no olor matinal, quando em nós o dia estréia sua luz sensível. Palavras sonhos tenros parafísicas, moinhos, cenestésicas, palavras hauridas à flox. Somos o preconceito das palavras, sua instável plataforma. Arbitrários, vagos, desonestos, elas nos habitam inseguras, tomando-nos em discurso febril. Palavrinhas guardei no queijo, comidas em indolente repasto: consideram-me insensato, consumado repósito de erros. Sou cultor de palavras mesmo que elas me entendam errado. Em constructos aparentes e caros, pobre morada edifiquei sobre palavras. Se elas me ruem, se me fogem, nem por isso escapo de seus significados. No arenito inscrito à orla de vasto deserto periga sem fundação meu temerário prédio. Meticuloso, calculo a carga que as palavras precisam suportar para emular a realidade. Sobre um vasto sistema de signos, dançam a vida, a morte, os perigos, os sentimentos, a exuberância do existir continente. Sem palavras, arrisco ao léu garatujas. O esgar da mente contra o pano limpo do céu do Brasil (que Brasil). Noticia o estrelório meu silêncio conhecido pervagam-me ondas, rumores de belas letras. Estrelas aparelharam palavras para a difícil travessia da noite. Em meu catre suspiram conspiram teorias, intuem-se. Deixo-me às sombras, acidentado, escalavrando o pouco que me sou, contando as fraturas da dimensão em que vivo. Evanescentes eus recebem missões: soldado, escriba, prisioneiro: é preciso focar-me pastorear as palavras...

terça-feira, 1 de novembro de 2005

Crítica a "Napoleão", de Paul Johnson


Napoleão era dotado de um soberbo senso de realismo, um conhecedor de pessoas. Désabusénunca fez amigos “para toda a vida”, sem dúvida por saber do que são capazes os “amigos”. 

Brilhante, surfista do poder, aproveitou-se da cratera aberta no peito da sociedade francesa pela Revolução Francesa para se infiltrar nas veias do poder. Foi ousado – abriu fogo contra os rebelados parisienses quando percebeu que a nação já não suportava essas rebeliões, diárias – e soube dissolver o Diretório, coisa que todos os detentores ou aspirantes ao poder desejavam, desde o rei guilhotinado, mas ninguém sabia como fazer. Depois aceitou casar-se com Joséphine, livrando Barras de uma considerável despesa.

Barras estava à cata de rameiras mais novinhas e mais baratinhas. Dois dias depois das bodas, foi premiado com o estratégico comando das forças francesas na Itália. O fato não bastou para desencorajar o autor a dizer que o casamento nada teve a ver com a nomeação.

Aos 28 anos, ele se tornara o homem mais poderoso da República. O Diretório (sob Barras) fez o gracejo de pedir a Napoleão que invadisse a Inglaterra. Esperto, ele recusou esse passaporte para uma tumba no oceano, preferindo ir farrear no Egito, onde perdeu tudo e voltou “avec ses culottes pleins de merde”. Pelo menos o Egito era longe, o que agradava o ciumento e receoso Diretório.

Então, três personagens sinistros: Sieyès, Talleyrand e Fouché, arquitetaram o golpe do
 18 Brumário, que “foi uma coisa vil, pois todos os envolvidos estavam prontos a trair todos os demais, e nenhum deles cumpriu o que havia jurado fazer. Se Bonaparte se transformou em governante de excepcional deslealdade e falsidade, devemos recordar que ele provinha de um ambiente político no qual a palavra dada nada significava, onde não existia honra e o assassinato era rotineiro”.

Fortalecido, Napoleão armou pra cima do Diretório, cuja legitimidade se esvaía. Simulou ser atacado fisicamente no recinto, o que lhe valeu o direito de prender seus membros, ordenando uma nova Constituição, que dissolvia o Diretório, instituição central da política francesa desde o início da Revolução, e estabelecia um “consulado”, por emulação do império romano. Outorgada, a Constituição foi confirmada em plebiscito, com 3.571.329 sins e 2.570 nãos. Um lindo trabalho de falsificação de resultados eleitorais que fariam os olhos de um Bush ressumarem.

Daí impôs-se cônsul vitalício (1802) e finalmente imperador (1804). Sieyès escorregou para debaixo do tapete da história e hoje é lembrado por seu panfleto sobre o Terceiro Estado. Fouché, sacerdote corrupto e terrorista com Robespierre, transformou-se no chefe da primeira polícia secreta do mundo. Nunca demonstrou lealdade a qualquer pessoa ou a coisa alguma, mas contou com vasto orçamento e incontáveis informantes. Talleyrand seguiu chanceler de Napoleão, conquanto tenha estabelecido contato com as cortes inimigas da Áustria e Rússia e com alguns principados, funcionando na prática como agente duplo e recebendo as gratificações correspondentes. Até por essas traições, foi indicado negociador francês dos tratados pós-guerras napoleônicas. 


Pretextando Napoleão, reproduzo este sumário da ambição humana (p. 87-8): 
“É melancólico que os potentados da terra se vejam obrigados a recorrer às medidas mais mesquinhas dos débeis: tomar contra um amigo o partido do inimigo; juntar-se a acusações contra ele, ditadas por este último; não ter crédito em qualquer dos lados; voltar ao amigo ou afastar-se dele, conforme as peripécias da guerra; desejar secretamente que o amigo o desculpe pela necessidade, o pretexto dos mendigos; não conseguir jamais fornecer justificativa para sua conduta além de ‘misteriosas disposições da Providência’, que são o último refúgio dos indigentes morais... Foi isso o que os aliados da Inglaterra acostumaram-se a fazer durante toda a guerra desta contra a França. Quando a Inglaterra conseguia formar uma coalizão contra Napoleão, eles o denunciavam por sua ambição e entravam em guerra contra ele. Quando a coalizão era desfeita por seus exércitos, mudavam de idéia por ordens dele, denunciavam a Inglaterra e se juntavam a ele para lutar contra a aliada. Isso foi a ronda de suas histórias: alternância de coalizão e tergiversação; ora um discurso e uma guerra contra Bonaparte, que os derrotava; em seguida, um discurso e uma guerra contra a Inglaterra, que os comprava; novamente um discurso e uma guerra contra Bonaparte, que os derrotava outra vez; e então, como antes, um discurso e uma guerra contra a Inglaterra, que novamente os comprava. Enquanto isso, aceitavam tudo o que podiam obter, tanto do inimigo quando do amigo, tomando com avidez os pedaços de terra que Bonaparte lhes atirava por sua mesquinhez e, em seguida, embolsando os milhões de Pitt, pelos quais ainda pagamos até hoje.”
Não é linda a saga humana?

Napoleão, ao contrário de Hitler, tinha alguns méritos: era capaz de construir mentalmente o teatro da guerra a partir de uns toscos mapas; dono de uma visão tática superior e conhecedor intuitivo dos meandros da política, afetava-se administrador, ostentando certo verniz de estadista. Suas raivinhas, premeditadas, iludem alguns até hoje; “seu” código civil ainda é citado.

Sem embargo de algum dote de administrador, Napoleão presenteou aos EUA toda a “Louisiana”, um território tão vasto e estratégico que teria desequilibrado o jogo entre potências em favor da França, obstando, no nascedouro, a emergência dos EUA. Ela abarcava 828 mil milhas quadradas e em seguida se transformou em 13 estados norte-americanos. Bonaparte a vendeu por 15 milhões de dólares, ou dez centavos por hectare. Ele estava ocupado demais incendiando a Europa para se dedicar ao fardo de administrar essa riqueza geopolítica (da mesma forma como se recusou a administrar a segunda metade da ilha Hispaniola, conhecida como Haiti, com os resultados que se sabe).

Segundo Johnson, os Estados Unidos foram a potência que mais se beneficiou, de forma permanente, da era bonapartista. O que explica Napoleão é a singularidade monstruosa da Revolução Francesa ou, melhor, do Terror. O Terror devorou uma a uma todas as pessoas politicamente importantes da França. Mirabeau tombou vítima de doença; Danton e Lavousier foram as maiores perdas; Robespierre, o melhor descarte. Produziu uma corrente de ar ascendente de rara intensidade que levou um obscuro tenente ao posto de “imperador”.

Ao perceber, antes de qualquer outro, a viabilidade da salva de metralha sobre os revoltosos parisienses, demonstrou conhecer a fraqueza do Diretório (medo e aversão ao populacho) e abriu caminho para o alto. Os corpos despedaçados de alguns incautos testemunham sua pressa. Depois, foi escolhido a mão militar do
 18 Brumário, golpe de estado que objetivou implodir o Diretório, até onde meus conhecimentos chegam. Barras, herdeiro direto de Robespierre na liderança do Diretório, era um deslumbrado. Chegou a instituir um culto a sua pessoa. Foi o primeiro a usar Napoleão como mão militar de um projeto político débil e suspicaz. O tolo perfeito para ser usado pelo gênio matreiro de Bonaparte.

Tento situar Napoleão no estrito teatro político francês. Outros grandes genocidas, depois dele, não serão explicáveis no âmbito angusto de suas nações.

As guerras.

Napoleão começou a cair com a recusa britânica de aceitar suas conquistas e legitimá-las por meio de um tratado geral de paz. A marinha britânica era financiada pelo ouro proporcionado pelo Revolução Industrial nascente, e forçava os navios franceses a apodrecerem nos portos. Napoleão respondeu com o Sistema Continental, que consistia em um boicote universal aos produtos britânicos em todos os países “onde as armas francesas reinassem”. Nem na França as leis desse boicote eram cumpridas. Espanha e Rússia, em especial, não se entusiasmaram. A Espanha, império decadente, estava às portas de uma guerra civil, quando as facções em luta conceberam a idéia luminosa de pedir a mediação de Bonaparte. Desculpa perfeita para uma invasão aberta, que degenerou numa guerra de desgaste, apoiada languidamente pelos britânicos. 250.000 soldados franceses e todos os principais generais de Bonaparte, além do próprio, durante vários meses, não conseguiram erradicar certas espanholadas na península ibérica. Enfadado, Napoleão resolveu brincar com outro urso.

Campanha da Rússia.

Num claro paralelo com Hitler, 

“A impossibilidade de uma rápida vitória na Espanha ou mesmo qualquer vitória decisiva, foi uma das principais razões que levaram Bonaparte a lançar uma ofensiva contra a Rússia.”, diz o autor. O Sistema Continental era particularmente contrário aos interesses econômicos russos. Nas palavras do autor, “O comércio pelo Báltico era de vital importância (...) e já fora severamente perturbado pelas lutas da Dinamarca, relutante aliada da França, contra a Noruega, a Suécia e a Grã-Bretanha. Com efeito, a aliança da Dinamarca com a França acabara por levá-la à falência e a repudiar suas dívidas. Em 1811, a economia do Báltico estava arruinada e por isso o czar fazia ouvidos surdos à queixa de Bonaparte de que ele não fazia executar o sistema.” 
Napoleão podia mobilizar 650.000 soldados, alguns deles franceses, mas a Rússia é um continente, acostumada a zombar de superlativos.

Em fins de junho de 1812, Napoleão cruzava o Neva, com forças que a seguir se espalhariam por 100, 150 quilômetros. Somente os serviços de apoio comboiavam por mais de dez quilômetros, com 35.000 carroças, cavalos, gado para matança, ambulâncias e veículos para transportar de volta o produto das pilhagens. Havia 950 peças de artilharia e um comboio de cinco quilômetros de vagões de munição. Mas, ao final desse verão, o efetivo desse exército fora reduzido à metade (devido às intermináveis planícies asiáticas, escaldantes e quase sem água), e começara a prática de matar seus próprios cavalos. No caminho das forças invasoras, os aldeões queimavam as plantações, numa política não prevista de terra arrasada. Gabavam-se, ainda, do incivil hábito de assar os soldados desgarrados da Grande Armée. Kutuzov, com 70.000 infantes, 25.000 cavalarianos e cossacos e 600 canhões, tomou posição em Borodino, a apenas 100 quilômetros a sudoeste de Moscou. Bonaparte avançou a partir de Smolensk, com 160.000 homens e 550 peças de artilharia, numa batalha imortalizada pelo gênio de Tolstói. Bonaparte ganhou a batalha, mas perdeu 50.000 soldados, que não seriam repostos. O caminho estava livre para a capital, mas não para a vitória. Os russos resolveram purificar pelo fogo sua antiga capital, deixando aos franceses a opção de assarem seus cavalos para a refeição.

O Czar, que havia deixado seus dois exércitos vagando a esmo e alegrara-se com a purificação de Moscou, não capitulou. Em meados de outubro Napoleão sentia o peso de seu excesso de confiança. Com a proximidade das nevascas, e o previsível fechamento das estradas, comandou a retirada de Moscou, com o exército reduzido a 95.000 homens; a maioria dos cavalos perecera, algo desairosamente, nas churrasqueiras.

Bonaparte chegou a Smolensk em 9 de novembro, mas os alimentos deixados em depósito haviam sido devorados pelos desgarrados famintos, em número de 30.000. Seu exército, agora em debandada, contava 40.000 homens, numa contundente demonstração do poder de síntese das guerras. Em 5 de dezembro Napoleão tirou o dele da reta, anunciando sua urgência em partir para Paris, após perder mais 20.000 soldados na travessia do Berezina. Nessa aventura os russos fizeram não menos de 200.000 prisioneiros, cujo destino não é difícil imaginar.

Após esse desastre vitórias fugazes e derrotas acachapantes no teatro europeu fizeram de Napoleão um líder moribundo. Ao destruir o Império Austro-Húngaro, ele acabou abrindo caminho para a unificação e supremacia militar dos ávidos estados germânicos que, liderados pela Prússia, não tardariam a derrotá-lo, como ocorreu em Leipzig, em outubro de 1813. Bonaparte retirou-se, seu poderio militar colapsou e ele teve de lutar, pela primeira vez, em solo francês.

Entre 1812 e 1813, ele perdeu 1.000.000 de homens, e os franceses não estavam entusiasmados para pagar por seus delírios. A “abdicação” veio em abril de 1814, após uma batalha desesperada para evitar a invasão de Paris. Ali o império se dissolvia, formalmente. Luís XVIII, irmão do rei guilhotinado, foi restaurado ao trono, ao mesmo tempo em que Napoleão chegava ao exílio e recebia o título oficial de “imperador e governante de Elba”, obra do sarcasmo de Talleyrand.

Meses depois, cansado de servir de atração turística, da mesquinharia dos Bourbon, que não enviavam o dinheiro da pensão anual pactuada e vendo o rotundo fracasso do trono restaurado, Bonaparte fugiu da ilha, mediante estratagemas e mentiras. Iludiu a Nação, conseguiu reunir novo exército, com que começou nova guerra contra as potências européias, que de qualquer forma marchariam contra ele. Após algumas batalhas sobreveio Waterloo, que Napoleão quase ganhou, segundo o autor.

Creio que o general Grouchy honestamente vendeu Napoleão aos ingleses, já que seria desonesto um general não saber ler mapas. Com isto, abreviou-se a agonia de Napoleão, a essa altura com 45 anos de idade e 4 ou 5 milhões de mortes nas costas.

Ele partiu em férias finais para um penedo com 45 quilômetros de circunferência, no Atlântico Sul, cujo porto cultivava a amizade de navios militares e mercantes. Em Santa Helena a disenteria amebiana não era infreqüente. Ali viveu por 6 anos, em companhia de uma dúzia de serviçais e um seleto grupo de cortesãos (um animado círculo de ciúmes e intrigas), ao custo anual de meio milhão de napoleões de ouro ao contribuinte britânico.

Tendo resumido um resumo, e perpetrado impiedosas citações, quero agora dedicar-me a essa ótima morte, a de Napoleão. A República Francesa finge cultuar a memória de Napoleão, mas reservadamente deve lembrar que ele deixou a França menor que a encontrou, em 1799, além de ter doado ilicitamente um vasto território na América, sem outro proveito que ajudar um império rival a dominar o mundo. Seis dos cortesãos de Napoleão, além do camareiro, escreveram memórias, que “discordam grandemente entre si, muitas vezes em simples questão de fato”. O ponto é: Napoleão foi envenenado? Napoleão valia muito, enquanto mito. Até que surjam testes adequados, capazes de determinar com precisão aceitável se houve ou não envenenamento, devemos trabalhar com o material disponível, que é o contexto da morte. Encaremos assim: a Grã-Bretanha o queria morto, e não apenas pelo dinheiro gasto com seu exílio. Tratava-se de um homem perigoso, capaz de sublevar as massas francesas, induzindo guerras já desnecessárias.

Para a nova elite francesa, também não interessava Napoleão vivo, pelos mesmos motivos dos ingleses. O país tinha apurado até à borra a fórmula do homem-forte, do
 self-made-man, e seus grandes males: “o endeusamento da força e da guerra, o Estado centralizado e todo-poderoso, o uso da propaganda cultural para apoteose do autocrata, a mobilização de povos inteiros na busca do poder pessoal e ideológico”. Em meio a essa genuína e desculpável busca de um cadáver, única maneira de tornar Napoleão dócil e previsível, ele tem de ter sido envenenado. Do ponto-de-vista britânico, o corpo seria emblema da vitória final, demonstração indisputável do britannia rules. A França necessitava de um herói sem mácula, um gigante entre pigmeus. Evidentemente, o homem Napoleão, com seu fardo culpável de incompetências, covardias e mentiras era um estorvo. Necessário que a morte o absolvesse de seus crimes e imprudências. A morte operou esse milagre, como previsto.

A prova é que até um gigante (Victor Hugo), passou a fazer-lhe festas, gesto bem pouco honesto, mesmo para quem tinha um pai general do corso. Termino agora este resumo, sofrível. O leitor não traído pelo sono há de ter adivinhado certas inconsistências, certas ilicitudes não atribuíveis ao texto resenhado. Introduzi na biografia essas facilidades, essas ligeirezas com o fito de torná-la menos árdua, ainda que mais fátua. Hão de ter reparado como não me interessei pelos detalhes de Warterloo, nem por seus assombrosos antecedentes.

De fato, como aceitar que o genocida tenha voltado a enfeitiçar a nação, e imediatamente conseguido carne fresca para os canhões, sabidamente insaciáveis? Que ele tenha escapado da ilha com seus 1000 soldadinhos, nada de mais. Que tenha mentido para alguns caipiras ao sul de Grenoble, granjeando seu apoio, nada de mais. O que não dá pra aceitar sem luta foi a adesão de militares de alta patente e das massas, ocorrida em março de 1815, o que o permitiu adentrar Paris sem oposição. O general Ney, mandado para prendê-lo, aderiu (Posteriormente os franceses o gratificaram, com o enforcamento).

Os Bourbon fugiram, escandalizados com a própria covardia e oportunismo. O núcleo do poder se abria para um Napoleão surpreso, que dele abusou sem hesitação.

Advogo que as massas têm o direito de errar, já que pagam o almoço dos genocidas. Fernando Collor, por exemplo, ganhou o direito divino de confiscar uma quantidade impensável do dinheiro dos pobres e da classe média brasileira, com o louvor dos economistas e da elite, que casualmente não enfrentou esse dissabor. Não é mesmo um azar, caro leitor, que o roubo nunca tenha chegado ao Supremo Tribunal Federal?

Os presidentes americanos iniciam guerras sempre que surge alguma dificuldade interna. Não importa o país, não importa a desculpa: roda-se o globo e, onde o dedo parar, aí estarão os marines, em questão de semanas. É claro que se o dedo recair em alguma potência militar ou econômica, recomenda a prudência proceder a novo sorteio. Assim, os panamás, os afeganistãos, os iraques, as granadas estarão sempre às mãos.

No caso da escapadela de Elba, foram 100.000 mortos. Nada mau, para um passeio. Mas não teria sido preferível deixar Napoleão na confortável vitrina insular?

Não compreendo as escolhas das multidões, de forma que ora me detenho ante esse mesmerizador de massas, militar prolixo, homem de vasta fúria. Deixo de condenar Paul Johnson, autor do resumo que me serviu de base, por entender que suas ingenuidades e omissões são sinceras e estão na média dos historiadores cristãos, embora enxergue certa inconsistência entre os atributos
 historiador e cristão.

Outubro de 2004.


Homero

Li, inauguralmente, a Odisséia e a Ilíada, nessa ordem. Na página final da Odisséia, escrevi, com previsível inadequação: “Parece que Homero, seja quem for, fundou o imaginário ocidental. Eu me sinto assim. Até a religião, as preces em meio à batalha: o molde é muito claro. A confusão de deuses também. Por outro lado, percebe-se que a narrativa envelheceu em alguns pontos: modernamente, todo crime, todo assassinato, todo roubo e saque e pilhagem são feitos em nome do amor, da caridade, da fraternidade. Não me ocupa a questão homérica. Um compilador inventivo ou uma reunião de gênios, o que importa é a obra, apreciada há 2.800 anos. Harold Bloom opina que o escritor da Ilíada também escreveu a Odisséia, poeta de gênio. Outros pensam que não só os autores são diferentes como cada obra foi compilada por muitos autores, a partir de copioso material preexistente. E apontam falhas constrangedoras: o muro de Tróia deixa de existir a certa altura, para logo depois voltar, incólume, numa demonstração de inconsistência textual. Termino agora a Ilíada. Para ser sincero, não gostei. Absolvo-me de relê-la. Do que li, ofereço este impossível resumo: Canto ingente. Deuses vulneráveis, cheios de intrigas. Escuríssima noite sobre muitos, acertados pelas costas: cruores pouco edificantes. O tratamento dispensado por Zeus a Hera é constrangedor; a narrativa de deuses rancorosos, com problemas trabalhistas; a lista telefônica épica do canto II; as impiedosas repetições de cantos, tudo fatiga o leitor. O caráter marcadamente infantil dos deuses, a discutível moral, o final insatisfatório (para um épico), entre outras inconsistências, aborrecem o leitor moderno, justamente atarefado, e sugerem que a obra finalmente será entregue ao esquecimento. Não sei como as mulheres lêem, hoje, as presepadas machistas que infestam o texto. Entrego Homero às mulheres, recomendando sua aniquilação. Assim, se na Odisséia louvei o gênio, na Ilíada, solicitei o julgamento do porco chauvinista por um tribunal imparcialmente feminino. Acuso Homero de ter-se ocupado em demasia com churrascos suculentos e descrições minuciosas de ossos e carnes sendo esmagados para a diversão de deuses ociosos. Claramente, Homero merece um leitor melhor que eu. Campo Grande (MS). 30.5.2004.

sábado, 29 de outubro de 2005

Minhas músicas

1. Clássicos. Flagrei uma pessoa bem informada enumerando as melhores músicas, encimadas por canto gregoriano. Isso mesmo: canto gregoriano. Só posso interpretar a lista como um gracejo de gosto duvidoso. Mil perdões a quem gosta de canto gregoriano, mas é surpreendente listar o gênero (não importa quantas variações comporte) acima de Beethoven e Mozart. Sempre perdôo quem coloca J. S. Bach acima desses dois gênios, mas suas missas, tocatas e fugas, sei lá, irmãozinho, não consigo entender o que têm... Vá desculpando o leitor que nunca ouviu a Flauta Mágica, de Mozart, mas quando, no Ato I, a Rainha da Noite começa seu longo solo (5º movimento), culminando naquelas alturas abissais, sempre me emociono. Outro tanto é quando Pamina, no 8º movimento, inicia aquele sobrenatural dueto, que sempre me arrasa (e ao qual sempre volto). Em todos esses movimentos, densa trama musical; escapamos de nossa ordinária órbita e passeamos por regiões eternais. Beethoven, de quem se dizia “tratar a Deus como um igual”, é muito mais grave, como uma feroz rajada de vento glacial. Sua veemência sempre me comove, como no allegro da abertura Egmont (Opus 84). Sua principal obra, a insondável Terceira Sinfonia, está muito acima de minha capacidade expositiva. Ela parece solapar nossa fútil inteligência da vida, e quando nos damos conta, exorbitamos os domínios da morte, em vertiginosos móveis alados. Na Nona Sinfonia em Ré menor percebemos a vantagem de incorporar, no Allegro assai, um fulminante coro, lastreado na conhecida “Ode à Alegria”, de Schiller. O gênio num momento de heresia e consumação. A Sétima e a Quinta sinfonias trazem conforto e inauguram êxtases insuspeitados. Não obstante todas essas indiscutíveis felicidades, a vida de Beethoven foi de uma tristeza sem par. De saúde debilitada e temperamento atrabiliário (seu quadro sugere lúpus eritematoso sistêmico), jamais se casou. Paul Johnson registra esse lamento: “Oh, Dios”, escrivió angustiado, “que pueda descubrir al fin a la mujer que fortalezca mi virtud, y que acepte ser mía”. Surdo ainda jovem, a seu modo ele converteu a música em uma religião secular. 2. Os mudernos. Franz Ferdinand? Libertines? Avril Lavigne? Escutei-os todos. Ferdinand tem músicas bacaninhas. Libertines é como composição de bêbado: só bêbado para achar graça. Avril é bonitinha. Muito bonitinha essa canadense, como o é Vanessa Camargo. Vou confessar uma cousa (é um tanto constrangedor, mas não seria honesto de minha parte omitir): já entrei no site da Vanessa (só no site). É organizadinho, mas a moça se manifesta mediante oráculos, invariavelmente extraídos de músicas sertanejas ou MPB. Consta que Jean (quem?), perpetrou todo um “livro” mediante esse recurso. Quem se importa? Todo ano, um novo “astro”, um novo zé ruela. Grazi há de nos redimir de toda essa sengraceira. The Strokes canta umas musiquinhas legais. É tudo que posso dizer dos caras. Mas e daí? Nirvana não é tão bajulado pelos críticos? Tirando os grandes hits, não mais que três, o que sobra? Kurt Cobain não estaria muito melhor que Axel Rose, sumidão. E o Guns tem mais de cinco composições que considero clássicos atemporais. A grande sacada do violão e do assobio em Patience, e a pululante You Could Be Mine, o competente argumento da guitarrinha em Paradise City e a melosa Sweet Child O’Mine: sempre volto a esses releases do início dos anos 90. A banda do momento se chama Arcade Fire. Não sei quem são esses canadenses e nunca os ouvi. O Lúcio, da Folha de São Paulo, ordenou sua imediata compra, mas estou relutante: seus discos não dão balanço nos sebos que freqüento. Abro agora espaço pra minha banda: Led. Consta que o nome teria sido adotado após alguém dizer que a música deles era “leve como um zepelin de chumbo”. Até os trinta, as músicas que mais me agradavam eram os hits indiscutíveis: Stairway to Heaven, Good Times, Bad Times, All My love e quetais. Lentamente fui migrando para Gallows Pole, Bron-Y-Aur Stomp, Ramble On, D’yer Mak’er (cantada sensualmente por Sheryl Crown, na MTV) e In the Light. Agora prestem atenção aos hinos Going to Califórnia, Since I’ve Been Loving You, Tanhk You e à arrepiante When the Levee Breaks. Indescritíveis. Do Zeppelin, quase tudo vai direto para a estante “clássico indiscutível”. Não iria tão longe a ponto de considerar tudo o se fez em rock, depois do Led, como um grande mal entendido, mas a comparação direta é amplamente desfavorável aos seus sucessores. 3. A cena musical Por fim chego às novidades, sempre urgentes. Tati Quebra-Barraco é minha preferida. “Onde a mocinha encontrou nome tão encantador?” me perguntava, até ver sua foto num jornal. Jesus Cristo! Indisputável que nenhum barraco será sólido o bastante para Tati. Eu estava em casa, pensando que minha vida era uma merda, coisa e tal, e resolvi arriscar um show da Tati. O que posso dizer? Não há o menor risco de alguém confundir suas letras com poemas, que de poema elas têm pouco, mas parece que são eficazes nos subúrbios cariocas. Sou muito grato a Tati: me fez ver que, afinal, minha vida é mesmo uma merda. Suspeito que ela tem uma missão (que não me atrevo a adivinhar). Seja qual for, pouca coisa vai ficar incólume a seu furor fanqueiro. Obs.: voltarei ao tema, já que muita gente ficou de fora. Campo Grande, 29 de outubro de 2005.

sexta-feira, 28 de outubro de 2005

Richard Dawkins

Existem alguns bons motivos para ler Dawkins. Ele escreve para leigos, em linguagem acessível, tem bom humor e não fala as bobagens que as pessoas querem ouvir. Sua idéia mais original é polêmica, entre biólogos. Ele sustenta que a unidade da evolução é o gene, não o indivíduo, e muito menos a espécie. Ou seja: o que sofre pressão para evoluir são os genes, e são eles os favorecidos pela seleção natural. Seus críticos dizem que uma das conseqüências disso é que os seres humanos passariam a meros vetores de genes, alheios a todo desígnio ou intenção. Não vejo assim. Meus genes podem até me dispor para certas coisas, e condicionam minhas escolhas, mas eu ainda me sinto no comando (se é que alguém está). Outra idéia prolífica é a do fenótipo estendido, que considera a cultura como extensão necessária do acervo genético humano. Fenótipo, para o leitor esquecido, é toda a expressão dos genes (genótipo é o código digital de quatro bases nitrogenadas que constitui os genes). O corpo humano é um fenótipo, algo que os genes, concertadamente, construíram e mantêm. Ao incluir tudo que a mente humana elabora como expressão dos genes, magnifica-se o fato de que nestes está a chave para a compreensão da conduta humana, qualquer que seja ela. O enciclopédico E. Mayer descartou as idéias de Dawkins sem ao menos discuti-las analiticamente, o que desaponta. Conforta-me saber que estas linhas não excluem a leitura de Dawkins e seus críticos. Brasília.

quinta-feira, 27 de outubro de 2005

Literatura

O (improvável) leitor pode se perguntar por que perder tempo com Chomsky. Quem se der o trabalho de inventariar as gôndolas de "lançamentos" e "mais vendidos" vai entender o porquê. Os livros agora deram para se chamar "quem comeu meu queijo", "quem tomou minha sopa", "quem comeu meu hambúrguer", quem comeu isso ou aquilo. Desaprovo toda essa comilança. Pior: existem loas a pessoas como Bush, Lula e Chavez. E também críticas (algumas ótimas, outras desnecessárias). Os bruxos, fadas, duendes, elfos, grifos, dragões da maldade e magos agora deram para frequentar academias. Desconfio que algumas pessoas deixaram de considerá-los mitos inofensivos e passaram a acreditar nesse entulho medieval. O soterramento do pensamento criterioso e estético é um risco que não podemos desprezar. Chomsky representa um enorme desafio, porque obriga a pensar, duvidar e analisar. Sigamos com Harry Potter.
P.S.: além dos ataques ideológicos ao pensamento evolucionista, Chomsky foi flagrado em elogios ao genocida Pol Pot. Se for verdade, esse fato, por si só, invalida tudo de útil que Chomsky possa ter produzido.

terça-feira, 25 de outubro de 2005

Lista de intelectuais

Li, dias atrás, que Noam Chomsky foi escolhido o mais importante intelectual vivo, e que Richard Dawkins ficou em terceiro, por um júri formado por intelectuais de todo o mundo. É difícil falar de Chomsky. Há dois deles. O primeiro é o maior lingüista que o mundo já produziu. Muitas galáxias além de qualquer coisa que eu e você, ótimo leitor, possamos entender. O pouco que penso entender de Chomsky me foi passado por Steven Pinker: ele defende a tese de que a linguagem não é inteiramente aprendida, sendo inata, em grande medida. As crianças, segundo Pinker, não são instruídas em todas as regras necessárias a uma lingagem, mas antes as intuem, mediante estruturas mentais inatas (herdadas). Esqueçamos as estruturas profundas e outras enormidades, e passemos ao ativista político. O segundo Chomsky faz ataques devastadores à política externa norte-americana (e à de seus satélites), absolutamente impiedosos. Veja-se o ataque à política australiana no Timor, ou à política ianque no Haiti, Iraque, África, Vietnã, etc... Seu particular ataque aos Kennedy é capaz de deixar o mais rancoroso anti-americano com pena do clã. Sua visão crítica oscila entre o sombrio e o ceticismo desenganado. No entanto, Chomsky parece necessário. Num mundo de Bush e Putin, Lula e Chavez e Mr. Risadinha (Tony Blair), ele obriga a pensar. Pena que este seja um passatempo tão aborrecido, para tantos. Estou orgulhoso de que Dawkins, decano de Oxford, esteja na relação. É meu mestre em biologia e seu entorno. Seus livros são de uma beleza maravilhosa; um alívio diante da tsunami de livros de auto-ajuda que arrasa o mercado e estiola o pensamento. O cientista, que ocupa a mesma cadeira já ocupada pelo gigante Isaac Newton, tem idéias que nos libertam. Penso que a lista é justa. Brasília, 25 de outubro de 2005.

sábado, 8 de outubro de 2005

Aniversário

Não poucos rituais impostos pela sociedade me aborrecem. O aniversário não é um deles. Nesta minha nova apresentação (não revelaria minha idade por nada nesse mundo. Digo apenas que agora posso me candidatar à presidência da República) pretendo ser mais acessível aos sonhos. E também ser menos preconceituoso com os erros: meus e alheios. Não tive tempo de reler Borges, até agora, como sempre faço em meus aniversários, mas escutei músicas, e também sorri. Deveria, no mundo, haver mais motivos para sorrir. Estou pronto para defrontar-me comigo mesmo, e com minha solidão. Já posso gerar um filho.

domingo, 2 de outubro de 2005

Mais domingo

Chego de Minas, cansado. O avião atrasou, como costumam atrasar os aviões, e eu sem nada para ler (o jornal acabou na espera, no saguão. Preciso de jornais mais alentados, para esperas realmente longas...) Hoje ainda estava em Diamantina, cidade ao norte (ou noroeste?) de Belô, já adentrando o vale do Jequitinhonha. A cidade descansa sobre uma encosta íngreme, e dá para sóbrios paredões de pedra, do lado oposto do vale. Subi ao campanário de madeira de uma igrejinha, com dois sinos afinados. Também visitei a mais antiga e outras tantas igrejas (por pouco não me converti, em meio a essa tonta peregrinação). A casa de Juscelino (o presidente) é bem acanhada, no alto de uma rua impiedosamente íngreme. JK era leitor voraz, à Cervantes, segundo ele mesmo, e passou uma temporada em Paris e Berlim, no início dos anos ´30. O quarto de Juscelino criança , a cozinha, e as frases sobre sua mãe e irmã são memoráveis. Mas desconfio de populismo nessas memórias. O museu do diamante não merece esse nome, e nem mesmo uma visita. Diamantina, nessa minha primeira visita, não impressionou tanto como Ouro Preto. 2. Da comida mineira. Domingo, duas e meia da tarde. Chego de Diamantina e, maroto, marcho para o Xapuri. Pátio adornado com mesas em tábuas rústicas, dispostas em nichos e terraços, habitados por uma gente faminta e gárrula (a gente das Minas). Atendimento demorado. Cada qual mais glutão, eu e Márcio (o taxista) atacamos as crocantes costelinhas de porco, que foram dialogando com o feijão tropeiro, os torresminhos e a couve bem refogada, verdíssima. Distribuímos os vastos sabores ao longo de uma curva da mais legítima fome, própria de quem emerge do vale do Jequitinhonha. Após assaltar cada travessa, repetindo-as sem a menor cerimônia, seria ilícito qualquer olhar em direção aos doces, não é mesmo, ótimo leitor? Lícito ou ilícito, atacamos os doces, claro que sí. Toda visita a Minas, o mesmo naufragar dos (cada vez mais severos) regimes. Torresminhos, feijão tropeiro, doces caseiros e outras tormentosas conspirações daquela cozinha: nenhuma força de vontade é válida contra Minas. É o que venho dizendo (e ninguém me escuta): não vá a Minas. 3. Das coisas estranhas. Algo de muito clandestino acontece em meu apartamento. Não estou bem certo, mas parece que o invadem, sabe-se lá com que propósito de me enlouquecer. Não tenho provas dessa invasão, exceto que minhas roupas estão, estranhamente, ficando menores. Menores não seria o termo, talvez, e sim apertadas. É constrangedor. De todas as vezes que confidenciei essa minha recente e inesperada dificuldade, percebi que minhas conclusões foram recebidas com reservas. As provas são escassas: de fato, calças, bermudas e camisas estão ficando apertadas, embora, falazmente, seu comprimento não oscile. O diabólico é que não há marcas de recosturas, e a D. Léia, minha lavadeira, não detectou qualquer aspiração sediciosa nas roupas que lhe submeto. Na ausência de qualquer outro movimento de minhas roupas, e na inexistência de provas das invasões, uma dessas pessoas chegou a perguntar, suavemente, se eu não estaria engordando. A auto-evidente monstruosidade dessa insinuação deveria bastar para que ninguém, nunca mais, a cogite, nem dela venha a conhecer. Mesmo sem o testemunho de balanças, eu, de fato, não estou engordando (é importante que o leitor alcance esse axioma, ou, pelo menos, o creia). Eu, Gerson Noronha Mota, que confesso todos os chocolates, os talharins, as picanhas e muitos outros crimes, tanto grelhados como assados, definitivamente não estou engordando. É uma verdade. Para terminar, apresento aqui um novo verbo, risonho, originalmente estampado no sítio aboboral (um sítio tem preciso direito de se chamar aboboral): eu malufo tu dantas ele severina nós valeriamos vós delubais eles jefferson! Os colegas de grupo de trabalho não acharam engraçado esse verbo. Não importa. Há um verbo por trás desse poliverbo, que é lindo e cívico. Grande abraço, Gerson

domingo, 25 de setembro de 2005

Domingos

Há muitos domingos escondidos sob a aparência enganosa de um único domingo. Nos meus cabem leitura e dúvidas. Os jornais mentem com assombrosa lealdade. Às vezes os troco pela tela plana, que dá para o mundo. Rarefeito em minha casa, meus móveis assumiram que eu não existo e que a multiplicação de exauridos jornais é fenômeno inexplicável (confidenciou-me a cômoda). Eles são reais, mas, sem mim, também carecem de verosimilhança. Em verdade, durante as muitas viagens eles existem, mas emitem estranha escuridão, e se rearranjam um pouco menores, no que divergem, algo desairosamente, dos leais móveis que sonhei para meu apartamento. Desconfio que também eu divirjo nessas quase viagens, e ao não me encontrar reagrupo-me em tantas formas de quereres; sou levado a assumir valores não neutros de saudade. Na gira do mundo, assiste em mim outra pessoa, titular de paixões e vagares.

quarta-feira, 21 de setembro de 2005

Naviraí

A todos que me acompanham (com avidez): Estou em Naviraí, para outra missão oficial (amanhã cedo). Hoje, Sete Quedas e Paranhos; ontem, Eldorado. Preparo a viagem da China (e também Índia, Camboja, Vietnã, Tailândia...) para dezembro. Não há o menor risco de algum cobrador me encontrar em casa. Na próxima semana (detalhando a agenda), vêm Belo Horizonte e Diamantina, que ainda não conheço. Devem existir boas coisas para fazer por lá (além de trabalhar, é claro). Estou feliz com certa renúncia, apreensivo com certas necessidades de depuração. Abraço a todos.

domingo, 11 de setembro de 2005

Mensagem de domingo

A todos que não quiseram, ou não puderam dormir numa manhã chuvosa de domingo. Fecho a última página de "História natural da religião", de David Hume, tradução de Jaimir Conte (Unesp). Já estava cansado de ler fragmentos. Este foi um dos poucos tomos filosóficos que leio de ponta a ponta (os outros foram de K. Popper, Wittgenstein e Nietzsche). Hume tem intuições profundas, atrapalhadas pelo contorcionismo de afirmações negadas e negações afirmadas imposto pelas ferozes "autoridades" religiosas de então. A Igreja da Inglaterra, e suas posições, teve de ser preservada, com todos os prejuízos desse sectarismo. O catolicismo, e doutrinas quejandas, pôde ser atacado sem problemas. Duzentos e vinte anos não terão passado em vão. Libertos todos os filósofos das cadeias religiosas, alguns foram (alegremente) se entregar a basiliscos, como Heidegger, filósofo de todos os nazismos. Outros perderam-se em estamentos medievais, vastos continentes impossíveis, como são as filosofias de Espinosa, Leibniz e Pascal. Alguns contemporâneos adentraram águas muito rasas, e tornaram-se filósofos insoletráveis (Hilary Putnan, Noam Chomsky) ou pensadores indecidíveis (Roger Penrose et alii). A Escola de Frankfurt, com a suspicaz missão de tornar Marx bem-composto, não produziu nada digno de menção. Do neo-frankfurtismo, algo de Habermas, com seu enfoque exagerado no "discurso", pode se tornar perene (embora eu duvide). Adorno, Durkheim? Ah, fala sério... Entre os pensadores lúcidos e legíveis, fulguram as estrelas de Daniel C. Dennett e, num quadro mais restrito ao pensamento biológico-evolucionista, E. Mayr, R. Dawkins e S. Pinker. Passados dois séculos desde Hume, o problema religioso involuiu para uma mera questão de polidez: respeita-se a opinião alheia. E, num mundo assim opiniático, todas as verdades se equivalem, embora não se sustentem epistemologicamente. Provavelmente, Hume ficaria decepcionado. Após os jornais, mergulho em sua obra máxima (é um domingo).