quinta-feira, 11 de julho de 2013

O passado da mente

Michael Gazzaniga discorre sobre como o cérebro constrói nossa experiência.

Segundo ele, nossas vidas são edificadas tendo por fundamento a ilusão do eu. Nosso passado, construído, e nosso futuro, projetado, constituem belos golpes de automarketing.

Gazzaniga propõe a figura do intérprete, que reconstrói os eventos processados pelo cérebro e, ao fazê-lo, dá origem a erros significativos de percepção, memória e julgamento. Uma biografia é uma ficção. Uma autobiografia é irremediavelmente uma invenção.

Somos um agregado de adaptações, ou seja, de dispositivos mentais evolutivos que habilitam a intencionalidade e o desempenho de tarefas específicas. E a maior parte desses dispositivos atuam ao arrepio da consciência. O córtex, parte mais recente do cérebro, abunda em processos inconscientes. Blindsight é só um lembrete.

De fato, 98 por cento daquilo que o cérebro faz é exterior ao conhecimento consciente. (...) praticamente todas as nossas atividades sensório-motoras são inconscientemente planejadas e executadas, por nosso cérebro automático.

John Updike, citado pelo autor, realça:

como é notavelmente fértil, a imaginação religiosa, como é ardente o seu desejo de significação; põe deuses a surgir de cada arbusto ou rocha. A astrologia, os Ovnis, as ressurreições (...) a paixão: a sua mitologização do ser amado e de tudo aquilo que lhe diz respeito é uma religião inventada, e religiosa é também a nossa persistência em acharmos (...) que nossa vida é uma estória com um padrão, uma moral e uma inevitabilidade (...) e o universo tem uma estrutura pessoal.

O intérprete, ou programa gerador de conversa fiada (como gosto de chamar), sediado no hemisfério esquerdo, tem por missão conferir coerência ao que fazemos, pensamos e sentimos, por mais absurdo, injustificável ou desconexo. Opera com base nas atividades de outras adaptações do nosso cérebro. Esse intérprete, desmascarado no estudo de pacientes submetidos à separação dos hemisférios, em vez de se render às evidências, inventa uma estorinha tendo a si mesmo como alvo, e perpetra a ilusão de controle.

O intérprete, ao distorcer a memória e agregar vieses, produz grandes mentiras, cujo alvo principal é o próprio eu. Mentimos para nós mesmos, com terrível eficiência. Esse embuste contínuo faz-nos acreditar que somos boas pessoas, senhores de nós mesmos e que procuramos praticar o bem. E, ainda, que temos as rédeas dos acontecimentos.

A construção do cérebro.
Para que serve o cérebro? Curto e grosso: para garantir e melhorar nosso sucesso reprodutivo. Gazzaniga correlaciona sítios no cérebro a atividades específicas, rejeitando o conceito de plasticidade cerebral. E, no entanto, o cérebro aloca neurônios sob demanda, numa dinâmica de enorme plasticidade. Quem estiver ocioso, pega a tarefa pra processar (como enfatiza Miguel Nicolelis). O tema está em aberto, mas vale o registro.

O cérebro sabe antes da consciência.
Grosso modo, o cérebro conclui o trabalho neural meio segundo antes de a informação por ele processada chegar à consciência. Se batemos o pênalti à esquerda ou coçamos a cabeça, os comandos foram processados e finalizados meio segundo antes. Planos para falar, escrever, lançar uma bola são feitos na surdina, e entregues prontos, sem a concorrência da consciência.

“O cérebro começa a dissimular este aspecto do tipo “fato consumado” do seu funcionamento criando em nós a ilusão de que os eventos por nós vividos acontecem em tempo real – e não antes da nossa experiência consciente de decisão de uma ação. (...) limitamo-nos a assistir as coisas acontecerem em e para nós.”

Pensamos que temos imediato conhecimento dos estímulos e que podemos reagir num intervalo de tempo inferior a meio segundo. Escoam, contudo, milissegundos entre o início do estímulo no córtex e a percepção da presença de uma sensação (esse tempo de resposta é muito menor nos estímulos mais básicos, como o cutâneo).

Assim, pensamos que estamos a fazer coisas em tempo real quando, na verdade, já fizemos antes. Os potenciais cerebrais disparam muito antes de se ter a intenção consciente de agir. E, contudo, esses fatos consumados não transmitem a sensação de estarmos a ver um filme da nossa vida. Ao contrário, acreditamos estar envolvidos intencionalmente na efetivação da ação.

Inúmeras atividades percepcionais e cognitivas acontecem fora do reino consciente. O cérebro inconsciente toma decisões e oferece resposta elaboradas fora dos alcances da consciência.

A questão é: decide o cérebro automático fazer as coisas antes de sermos nós a decidir fazê-las? Sim, decide, conforme vem demonstrando a neurociência.

Quererá isso dizer que não temos responsabilidade final por nossos atos? Que o criminoso não deve pagar pelo ilícito? Continuamos responsáveis, é claro. Do contrário, não teríamos uma sociedade em que viver. A resposta é pragmática e utilitarista. Se parcelas de nós cometem um crime, ainda são parte de nós. Mal comparando, se o Município de São Paulo (pessoa jurídica autônoma) ficar devendo no exterior, é a República que paga, caso acionada.

Ver é crer.
Aquilo que vemos não é o que chega à nossa retina. A imagem é altamente elaborada e editada. Os truques de tratamento de imagem feitos automaticamente pelo cérebro são espetaculares, e imperceptíveis.

A informação visual recebida pelo cérebro só adentra a consciência após muito trabalho do córtex visual, que consome aproximadamente 25% do processamento cerebral humano.

A representação bidimensional do mundo é convertida todo o tempo em tridimensional, e o cérebro deve prover resposta motora também tridimensional.

Memórias verdadeiras x falsas e o intérprete.
Nossas memórias, ao contrário do que pode parecer num tribunal, não são representações exatas do passado. Ao contrário, memórias recuperadas podem ser falsas e confusas. Don Simons, no livro o Gorila Invisível, faz extensas observações a respeito, para as quais remeto o leitor.

Trabalhando com memórias modificadas, o intérprete recebeu mandato para justificar comportamentos e sensações, quaisquer que sejam. Pode-se falar num esforço de coerência, ou mantença das aparências, que depende da qualidade das informações que o intérprete recebe.

O intérprete diz-nos as mentiras em que precisamos de acreditar para não perdermos o controle das coisas, não importa quanta dissonância cognitiva, e quanto colorido artificial estejam envolvidos. O intérprete e o sistema da memória atuam combinados para fabricar histórias convenientes à nossa biografia, crenças e gostos.

O intérprete fabrica nosso mundo, gerando reflexamente explicações causais para tudo, mesmo quando não há nenhuma. Para qualquer coisa que aconteça, existe uma teoria, mesmo na completa ausência de significado. Nosso sistema gerador de hipóteses é incansável. E tendencioso.

O intérprete elabora permanentemente uma narrativa continua das nossas ações, emoções, pensamentos e sonhos. É o cimento que aglomera nossa estória e cria a sensação de sermos um agente racional de corpo inteiro, conclui o autor.

O livro recebeu recente upgrade, chamado “Quem está no comando”, que ora folheio.

11 de julho de 2013.