sábado, 5 de fevereiro de 2005

Comidinhas

Há quem tenha ressalvas à comida australiana. Uns ignorantes (não fala com eles não, leitor). Me proponho comentá-la.

Comecemos pelo aussie barbecue, de grande apelo popular. Lingüiças industriais e cebolas. Um acompanhamento luxuoso, e excepcional, é um bocadinho de carne. Não é fácil identificar qual corte, nem o tipo de animal (supondo que o seja). De qualquer forma, é raro.

Esse “churrasco” explica parte dos 4,5 kg perdidos em vinte dias na Austrália. Mas o que mais me agradou foi o modo de preparo das carnes. Chega-se ao delírio com o doce de frango que eles servem, geladinho, e com a carne de canguru mal passada, adoçada com o puro açúcar de Fiji.

Uma vez, não me lembra onde, deparei com costeletas de porco impiedosamente adoçadas, num molho vermelho, acompanhadas de farta guarnição de pepinos. Em outra, quiseram me convencer das qualidades de um docinho de carneiro. Argumentei com a possibilidade do sal. “Seria atroz”, indignaram-se os cozinheiros. Não alcancei entendessem que em alguns países se usa essa substância nas carnes, e que a prática está registrada em textos consagrados, como a Ilíada. Essa última informação os exasperou.

Sem embargo, penso não ser proibido comer, uma ou duas vezes por ano (na falta de opção num raio de mil km) em casas de fast food. No meu caso, após perder uns cinco quilinhos, fui a uma dessas encantadoras lojas. Escolhi um sanduíche com apelo australiano. Trouxeram-no com pompa. O que eles chamam de carne processada é em verdade um aglomerado de plástico, com um leve toque de açúcar. Os simpáticos talos de alface, apelidados “salada”, estavam crocantes, e combinavam, de alguma forma, com a geléia de morango que empolgava o pepino. As batatas da liberdade, geladas, e o refrigerante de cola, morno, estavam saborosos. Tudo considerado, tinha-se a impressão geral de estar comendo a tábua de passar roupas, com geléia de morango.

Ignoro o valor nutricional das tábuas de passar roupa, e dos móveis em geral, mas acredito em baixos teores de colesterol, ao contrário do sanduíche. Não me oponho à ingestão de aglomerados de plástico. Acho até que esse é o futuro da gastronomia, a considerarmos que hoje muitos se orgulham de seus “cereais matinais”: sabugos de milho moídos, com sabor tutti frutti.

Aquele aglomerado parecia vencido, e como que esgotado seu potencial de reciclagens. Mas visitei outras cozinhas na Austrália. A mais impressionante delas, a indiana. Sentei-me à mesa, sozinho, enquanto à volta as pessoas comiam e conversavam. Antes do cardápio, o garçom, um indiano que antecipou gostar de música brasileira, confiou-me a guarda de uma enorme garrafa d’água. Inicialmente ofendido pelo despropósito de uma garrafa tão grande "O que esse sujeito está pensando?", olhei em volta e vi iguais caixas d'água em cada mesa, e pude mesmo ver que as pessoas delas se serviam.

Superada essa crise, baixou o cardápio, com nomes exóticos. Vi que poderia dar um basta na cozinha australiana, escolhendo bem o prato. Ao cabo de uns minutinhos, como houvesse disputa entre os peixes, as carnes e os frangos, sem falar dos arrozes e vegetais, folguei em pedir um prato que fosse a somatória de tudo isso e um pouco mais. Um prato que reunisse o melhor da cozinha indiana, um resumo. Entrementes, ordenei que da cozinha subisse uma autêntica cerveja australiana, e lembro que me trouxeram a VB. Não sabia o que fazer com o garrafão de água, e tive ganas de que fosse adjudicado à cozinha. Deixou-o ficar.

A comida chegou, em menos de meia hora, em sincronia quase perfeita com o final da VB. O prato era uma bandeja média, com nichos de vários tamanhos. Os maiores acomodavam arrozes e vegetais. Havia uma bateria de pequenas cavidades, onde se aninhavam as várias carnes, seus molhos e guarnições. Havia peixes, crustáceos, carnes bovinas (ou assim espero) em várias apresentações e estilos, e frango. Abundavam também as comidas não identificadas e a sobremesa, sabida a batata doce.

Fui às carnes, já que de um arroz não se espera muito, fora do Brasil. Primeira mordida, primeira fisgada. “Deve ser só impressão”, pensei comigo. Segundo prato, nova fisgada, que se somou à primeira, no ardor. “Ora ora, que malandro!” À medida que outros pratos foram sondados, mamãe! Era como se incêndios estivessem sendo ampliados paulatinamente na boca. O peixe, esse adorável e pacato prato, atiçava labaredas por toda a língua, toda a boca. Era difícil acreditar que um inocente frango fosse capaz de tamanha devastação nas papilas gustativas. O incêndio ganhava o corpo, e cabia abrandá-lo, do jeito que desse. A cada porção, um vigoroso jato d’água, para evitar o alastramento das labaredas. Os vegetais, tão macios e amigos, se resolviam em chamas vermelhas e vivazes, gostosas de queimar neurônios. Pensei nos extintores à base de carbono, mas vi que poderia ser mal interpretado pelos convivas, que suportavam pacientemente suas provações.

Olhando com mais atenção, pude ver que de cada rosto emanava uma expressão de sofrimento, como se uma grande luta estivesse sendo travada, e perdida. A água, os lenços, o apressado abanar-se: os sintomas eram da comida, ligeiramente picante. Os garçons se entreolhavam com orgulho. A qualidade de cada prato é aferida pela quantidade e aspecto das lágrimas. Lágrimas mornas e abundantes escorrendo pelo rosto eram sinal de boa comida, e não é nada educado deixar de verter pelo menos alguns cristalinos pingos. Um religioso à minha frente rezava baixinho, e eu quase podia ouvir a prece: “Oh Deus, se pelo menos não houvesse tantos bandidos na cozinha indiana... Abrandai-lhes, Glorioso, as necessidades de incendiar o mundo”. Aos prantos, comecei a pensar em tudo que me ocorrera até ali, as muitas viagens, os amigos que deixei em cada lugar e no Brasil, e enquanto pensava, um camarãozinho atiçava-me labaredas, que já iam altas. 

A carne vermelha requereu meio litro de água, as chamas lavrando no trato digestivo. Não sei quem disse que a cozinha baiana é apimentada. Pois ela parece papinha de nenê, perto da indiana. Lentamente, o salão foi se elevando espiritualmente, com pensamentos piedosos aflorando, testemunhados por lágrimas sinceras e comoventes. Foi nesse clima que deixei o restaurante, após duas garrafas d’água, arrependido de todos os pecados cometidos ou a cometer. Levei comigo algumas pedras de gelo, com que pretendia entreter as labaredas. Depois dessa experiência, ocorrida em Adelaide, só em Queenstown, um mês depois, reuni coragem de adentrar um desses restaurantes, tremendos.

Não falei, ainda, da cozinha vietnamita. Na George Street, não longe do Paddy's Market, em Sydney, concentram-se diversos restaurantes asiáticos, tailandeses, chineses, japoneses. Entrei no que me pareceu o mais simpático. A moça que me atendeu era bonita e vietnamita. Pedi uma sopa que incluía frutos do mar, carnes, vegetais e macarrão. Antes da sopa, eles serviram uma salada. Era vasta, com vegetais incomumente viçosos. O jasmim interagia de maneiras totalmente insanas com as papilas. Ignoro se foi o jasmim vietname, ou outro vegetal ainda mais exótico: alguma coisa subiu ao cérebro e começou a inventar delícias proibidas.

Incorri, com Withman, numa sobrenatural capacidade de emitir uma alvorada de mim mesmo, segundo sonhos. Jamais voltei a experimentar semelhante câmbio dos móveis mentais. Não por falta de diligência, mas é que, nas duas vezes que lá retornei (uma delas após dar a volta à Austrália), não me serviram a abençoada salada. Num restaurante no mercado municipal de Adelaide, chegou-me ao conhecimento a comida tailandesa, de muitas sopas e carnes de vaca ou frango. Do restaurante 'Star of Siam', lembro vagamente de alguns pratos, sem contudo distinguir seus sabores. Não cheguei a provar a alta cozinha australiana, e tampouco a neozelandesa. Imagino que devem ser maravilhosas, e de uma próxima vez prometo ser menos avaro. Um amigo aconselhou-me escalopes de um molusco gigante, só encontrado na Austrália. Não o localizei no cardápio do restaurante da Ópera de Sydney.

Abateu-me a saudade de meu restaurante vegetariano, e do arroz com feijão, que são a marca do brasileiro, sua mais cativante invenção. Ignoro se todos os exemplos de comidas e suas impressões aqui relatadas são literais ou consentem alguma criatividade. o episódio da salada vietamita é rigorosamente verdadeiro, como o é que perdi quase 5 quilos em 25 dias na Austrália. Talvez eu devesse comemorar. Campo Grande, fevereiro de 2005.

domingo, 30 de janeiro de 2005

Férias na Argentina

Verão de 2004. Cheguei a Buenos Aires numa ensolarada tarde e, antes mesmo de instalar-me no hotel, apressei-me em comprar passagem para a Patagônia. El Calafate é uma cidadezinha às margens do lago Argentino (o maior da Argentina), onde se chega após 3 horas de vôo rumo ao sul. Na chegada, o ar seco, o aspecto desolador da estepe patagônica impressionam. Do aeroporto para o hotel, vê-se a vegetação amarela, típica das bordas dessa cordilheira que corta a América do Sul, e um lago de águas verdes. Na hospedagem, fui apresentado a algumas moças, de vários países. Eram inglesas, australianas, francesas e italianas, que abundavam. Uma festa feminina congregando nações naquele lugar remoto. Se havia homens? Não me recordo. Devia haver, por certo. O fato é que, apresentado às moças, relutava em crer que, daí a pouco, iríamos pra cama. Talvez não devesse, mas vou contar essa vantagem. Tive o privilégio de dormir com as mais belas moças que já deram a graça naquela região. Australianas e inglesas se destacaram prontamente, mas as francesas e italianas não deixaram a desejar. Nenhuma se recusou a dormir comigo, confidenciou-me a moça do livro de registro de hóspedes. O leitor pode não ter idéia do que é dormir com uma australiana, tendo uma inglesa ao seu lado. Menos ainda, suponho, se acrescentarmos uma francesa, por cima. Podem não me crer, mas foi uma coisa linda, muito íntima. Imagino que o cavalheiro leitor não tenha noção do que é ter duas beldades te exigindo atenção, e uma terceira ali, em cima de você, ronronando, suspirando a noite inteirinha, em movimentos ora suaves, ora bruscos, mas sempre gentis. A noite transcorre em infinito acerto, rumo à felicidade plena. Os gritinhos, os gemidos, às vezes mais intensos, às vezes de pura suavidade... Foram momentos de carinho, que se alternaram com abordagens mais ousadas. Tudo na australiana foi especial; não houve quem impedisse a francesa de se entregar a êxtases insanos, numa escalada de tirar o fôlego, até o arrebatamento triunfante. Em outra noite, com a australiana Melanie por cima e uma inglesa coadjuvando, ao meu lado, compartimos emoções com Marzia, que também se inscrevera para dormir comigo. É um empreendimento difícil, às vezes arriscado, mas que vale a pena, caro leitor. Afirmo que não há coisa melhor a fazer na vida. Você corre o risco de desagradar uma, de ser acusado de só se importar com a que está em cima, por exemplo. Não é verdade. O fato é que em nenhum momento descurei das moças que ficaram ao meu lado, naquele gostoso sistema de rodízio, sempre cuidando que elas recebessem igual dose de atenção. Há quem possa criticar este relato, sugerindo um excesso de criatividade. Uma objeção possível são as copiosas referências a essas moças que ficavam por cima. Por mais otimistas que sejamos, diriam, é difícil imaginar todas essas mocinhas por cima do cavalheiro a noite inteira. Amigo leitor. Coloque-se no meu lugar. Que poderia eu fazer se era justamente ali em cima, e em nenhum outro lugar, que as mocinhas queriam passar a noite? Não foi eu quem pediu. De bom grado aceitaria a companhia delas ao meu lado. Nada podia fazer se elas desdenhavam a caretice, refestelando-se em tão acrobática posição. E digo mais: às vezes, duas moças ficavam por cima, por mais improvável que pareça. Não havia jeito de fazê-las descer, de recobrarem a serenidade. Alertei para o inusitado da situação; tentei fazê-las desistir de tão formidável empreendimento.
Em vão.
Se bem que eu talvez não tenha me esforçado tanto assim. Não quis insistir, contrariando mocinhas adultas e independentes que, além do mais, pertenciam a culturas mais evoluídas que a nossa. Sem querer ostentar, lembro que, no universo, não há “em cima”, nem “embaixo”. Essas são categorias anteriores à demonstração da relatividade geral, de Einstein. Daí o discreto apoio à conduta dessas mocinhas, desbravadoras. Havia uma inglesa, surpreendentemente morena, de intensos olhos, imensos, gulosos. Olhos que iam me comer todinho. Como eu gostaria de ter sido comido por aquela inglesa de pezinhos queimados. Mas não fomos para a cama. Não aconteceu, e ela terminou indo embora. Uma lástima. Mas tive a minha vez com uma inglesa em Calafate. Uma simpatia aquela moça, de sorriso simples mas eficiente. Olhos barbaramente azuis, cabelos longos e, previsivelmente, louros. Mal nos falamos e já fomos pra cama, na noite da minha chegada. Sobre essa noite falarei mais adiante, em detalhes que tento esquecer. A mesma avareza do destino em relação às três japonesas que chegaram no meu penúltimo dia em Calafate. Eu provavelmente não teria resistido muito tempo na mão daquelas três nipônicas insaciáveis. Pois essas chicas, que me escreveram o nome em três versões de japonês e uma de coreano, respondiam a todas as perguntas em coro, afinadas, como só acontece em filmes de gueixas. Falavam português, o que tirou todo o encanto da conversação. Às tantas, revelaram conhecer Bonito, o que explicou a sensação de que eu já conhecia uma delas. Nos encontráramos, alguns dias antes, no Abismo Anhumas, uma caverna com um lago em seu interior, de rara beleza. Ficamos eu, as três japonesas, dois italianos e uma australiana conversando fiado até madrugada. Uma segunda australiana havia se retirado, provavelmente porque estava com o namorado a tiracolo. Depois fomos para a cama, mas em quartos separados. Naquela noite, coube-me dormir com outra australiana. Simpática, risonha, creio que nos entendemos muito bem, já que não falo uma palavra em inglês, e ela desconhece espanhol e português com igual proficiência. Em minhas conversas com as australianas e inglesas, experimentei alguns dos mais profundos, sinceros e acalorados diálogos que já travei, confortados em minha vasta ignorância do inglês, e do inalterável desconhecimento delas do português. Creio que não atinamos uma palavra do que um disse ao outro. Descabelei-me de tanto gesticular, falar. Em vão. Em represália, recusei-me a entender cada uma das palavras que me foram dirigidas. Como não entendesse o caudal de inglês fluente delas, arrisquei uma distribuição o mais aleatória possível de yes e no nas respostas. Os resultados foram embaraçosos, como quando perguntaram se eu escreveria sobre elas. Calhou o puro azar um no, o que as desapontou sobremodo. As tentativas de corrigir o erro falharam, previsivelmente. – Australia? I like Australia, arrisquei, com insensata sinceridade. – Yeeeeaah, I like toooooooo, Melanie respondeu, fascinante. Guardo na memória os achados, as construções babélicas daquelas conversas, povoadas de mistérios indecifráveis. Em Calafate, o vento não é amigo como em outros países. Lança-se em rajadas de 100, 150 km/h. Os motoqueiros são constantemente derrubados; viajam inclinados pelas estradas, em eterna curva, uma humilhação. Já as cerejas, fresquinhas, dão a melhor notícia das montanhas. Com todas essas curiosidades sobre minha estada na Patagônia, é hora de acrescentar uma informação, uma coisinha de nada que, a rigor, nem merecia ser mencionada: a hospedagem retratada é um albergue, com homens e mulheres alojados no mesmo quarto; cada quarto tem quatro camas, distribuídas em dois beliches. Se é verdade que todas as noites eu ia pra cama com algumas mocinhas, não menos verdade que cada um devia se contentar com a sua caminha, sem barulho nem bagunça. Como chegávamos tarde, mal nos falávamos e íamos direto pra cama. Bem entendido: cada um na sua cama. Devo confessar, a essa altura, uma certa frustração com essas “noitadas”. A circunstância de sermos quatro em cada quarto, cada um na sua parte do beliche, não ajudou muito. Além do mais, no caso da inglesinha com quem dormi logo na primeira noite, esqueci-me de contar que ela dormiu no beliche ao lado, seu marido na cama que lhe ficava acima e um amigo deles na cama acima da minha. Reconhecidamente, uma situação pouco glamourosa. Sem falar que, apagadas as luzes, coisas estranhas aconteceram. Na escuridão, sussurros, vozes insistentes. A loira, ao meu lado – nossas camas ficavam lado a lado – provocava o marido, na cama de cima. A temperatura subiu. Deve ser dito que Chloe estava em viagem de lua-de-mel com Chris. O outro Chris, amigo de longa data do marido, apenas fazia companhia ao casal. Desagradou-me esse evidente excesso de chrises. Chris, o colega na cama de cima, roncava. Chris, o marido, tentava ser o mais enérgico que a situação permitia: – Stop, Chloe, stop. Stopped, stopped!! Mas ela não parava. Não tive coragem de olhar o que ela fazia ao pobre Chris. Sou ateu, mas rezo três ave-maria e dois pai-nosso toda vez que penso no que a malvada Chloe estava fazendo ao desvalido Chris. Depois dessa experiência terrificante, a sorte me sorriu, segundo me pareceu. Reservei lugar num albergue 5 estrelas em El Chaltén, cidadezinha de onde saem as caminhadas para o cerro Fitz Roy. Fui informado de que dormiria com três mulheres. Minha conhecida virilidade me garantia uma boa performance nessa situação. Fiquei tranqüilo. O fato de serem três senhoras idosas e de militar feiúra não deve ser visto como desdouro dessa minha aventura: dormi como uma pedra, e não me atrevi a sonhar, para não correr riscos. Felizmente, as civis senhoras não me molestaram. Exceto que, apagadas as luzes (lembro que não existem gestos triviais num quarto cheio de mulheres e um homem) não passou despercebida uma indevida expansão do ar, que se tornou irrespirável, por instantes. Não digo que as boas senhoras o envenenaram. Digo apenas que, naquele momento, o desastrado gesto de riscar um fósforo teria levado o albergue, senão toda a montanha pelos ares. Outro ponto que merece esclarecimento, para não induzir o leitor a erro, é que nem sempre sobraram mocinhas lindas para dormir no meu quarto. Certa noite, calhou um alemão. Não vou tentar descrevê-lo. Basta dizer que, numa das conversas de início de noite, quando a angelical Cindy fez festa para uma menininha de 3 anos de idade, ela se pôs a chorar, inconsolável: vinha chegando o alemão, e seu vulto, atrás de Cindy, me aterrorizou também. Por sorte, só uma noite dividi o mesmo quarto com a criatura. Fui promovido para o quarto de Melanie, a australiana, a essa altura também equipado com uma francesa, impetuosa, e uma suíça, calma. Na manhã seguinte, ainda sonolento, quase bati de frente com Mr. Frankenstein, no corredor. Ele observou, com seu inglês do fundo das dificuldades: – You change... room? – também sou filho de Deus, né, mané! – respondi. “Mr. Frank” tinha chegado de bicicleta à Patagônia. Pelas peças quebradas e seu ar desolado, imagino quantos merecidos tombos não deve ter colecionado. A viagem foi cheia de aventuras. Uma delas foi cruzar o lago Argentino num catamarã. A travessia começou modorrenta, e critiquei o excessivo rigor da tripulação que, ao contrário das outras, não nos deixou sair à cobertura (o barco era completamente fechado). Logo depois, viu-se o motivo: o barco começou a escalar ondas de 3, 4 metros de altura, apontando a proa ora para o céu, ora para o fundo do lago. Batia com estrondo contra as vagas, oscilando de forma cinematográfica entre cristas e vales de água escura. Nunca senti tanto medo na vida. As pessoas urravam no convés. Algumas passaram mal, outras petrificaram de pavor. A tripulação caminhava (quando podia) entre os passageiros, no que pareceu-me um recenseamento prévio dos corpos. Algumas moças, sentadas nas poltronas da frente, gritavam e riam, histéricas. Foi emocionante. Pena que durou só 2 horas. Na volta, apelei para o Dramin, que tinha acabado. O farmacêutico, pelo princípio ativo, receitou-me Dramanin, seu nome comercial na Argentina. Junto com um licor de calafate, prontamente ofertado por Chloe (a malvada), teve um efeito interessante. Como dito, era verão, e o sol se punha às 11 da noite, retornando por volta das 6 horas. São dias memoráveis, cheios de montanhas, geleiras e desertos: longuíssimos. A cidade é pequena, mas aconchegante. La Vaca Atada, restaurante onde eu quase sempre comia, é simpático, bom e barato. O cordeiro patagônico é prato obrigatório, eficaz contra fomes desmedidas. Sempre que via uma vaca atada a uma corda na calçada, entrava sem medo: o restaurante servia. Coisas como uma casuela de mariscos, quente como se concentrasse as iras de todos os cozinheiros do mundo e servida com uma pimenta especial me fizeram perder momentaneamente o contato com a realidade. Se tudo tem um fim, com um sobrevôo às geleiras terminaram minhas aventuras na Patagônia. Melanie sentou-se à janela. Tirou fotos dos cumes e do gelo azul, apesar das janelas riscadas do velho Boeing 737 das Aerolíneas Argentinas. Ela desembarcou em Bariloche, na metade do caminho. Buenos Aires me aguardava, impaciente. Dia desses, pesquisando o bolso de um casaco azul, deparei com um broche. Após tantos meses hibernando, pareceu-me mais bonito esse ursinho-de-bolso chamado coala, com seu dourado das minas de ouro da Austrália. Melanie – a gentil exploradora de minas – metade da circunferência da Terra distante, me veio à memória. II. A Argentina, apesar do esforço hercúleo que vem fazendo nas últimas décadas, está muito atrás do Brasil em matéria de produção e manutenção da miséria. Francamente, eles têm muito o que aprender conosco. Um país como aquele, outrora chamado “a Inglaterra da América do Sul” não conseguiria, de jeito nenhum, se transformar num país pobre, cheio de miseráveis, com crianças pedindo esmolas nas ruas, em tão pouco tempo. Isto simplesmente não estava ao alcance nem da afamada elite sul-americana. Mas ela se esforçou. A culpa não é do povo argentino. Muito pelo contrário: semelhante ao povo brasileiro, é gente boníssima, empreendedora, alegre, confiante, inteligente. O problema é outro, como qualquer brasileiro sabe, de cor e salteado. Buenos Aires me pareceu generosa, industriosa e confiante, apesar do vendaval econômico dos últimos três anos. Lembro-me que choveu horas e horas no dia do meu retorno, desde a madrugada. Indiferente ao aguaceiro, a cidade estava tranqüila, e não consegui descobrir um único “ponto de lentidão” no trânsito, um único evento cancelado. O que denunciava a chuva excessiva era a presença de guarda-chuvas na rua. Quanta semelhança com São Paulo, não? A mãe e a irmã de Jorge Luis Borges foram presas, com outras senhoras, por cantarem o hino nacional na calle Florida. Durante um mês, a mãe permaneceu em prisão domiciliar, enquanto Norah foi para o cárcere de prostitutas, onde ensinou canções francesas e desenho. Era 1948.
Meu passeio pela calle Florida foi menos dramático. Limitei-me a comprar as obras completas de Borges na livraria El Ateneo, e a visitar algumas lojas e um Shopping Center.
Perón não gostava de escritores famosos e independentes. Menos ainda de escritores com mania de assinar qualquer coisa que os amigos lhe levassem, inclusive manifestos contra a ditadura. Bom tiranete, não perdoava qualquer laivo de consciência crítica. Élio Gaspari, em sua obra A Ditadura Derrotada, brinda-nos com esse piedoso comentário:
“Perón tinha uma biografia de trapezista. Em 1916, quando era subtenente, os argentinos viviam com um renda per capita maior que a dos japoneses, 70% da canadense. Chegara ao poder em 1946, coroando um período de anarquia militar. Depuseram-no dez anos depois, numa crise em que bombardearam o palácio, metralharam a multidão (...).” Ele retornaria a Buenos Aires em 1972: “Aproximava-se da senilidade como senhor de um país cuja renda per capita caíra a menos da metade da japonesa, um quinto da canadense.”
Por ordem do ditador, de diretor da Biblioteca Nacional, foi Borges promovido a inspetor de aves e coelhos nos mercados municipais. Ele argumentou que sua experiência com animais era inteiramente literária. Responderam que não se cuidava de promoção. Pediu demissão, como calculado pelos gregórios. Na esquina da diagonal Saenz Peña, onde se situa uma agência do Bank Boston, deparei com a Argentina contemporânea: as pesadas portas de ferro do banco foram cerradas às pressas, e nelas alguns homens e mulheres, todos com mais de sessenta anos, batiam vigorosamente com panelas e caçarolas. No metal escuro se liam frases como: devolvam nosso dinheiro – Presidente, pare de apoiar esses ladrões – fora ladrões americanos, entre outras.
Eram pessoas humildes, de roupa surrada, que pareciam acreditar na causa. Ali bem próximo, a menos de 15 metros, alguns atores atuavam no que parecia ser uma cena de novela da TV. Uma linda moça, de seios generosos, um cara, uma criança e um ator mais velho contracenavam, sem se importar com o forte panelaço, ao fundo.
As pessoas passavam. Argentinos, turistas, comerciantes, pedintes. Na calle Florida, com a Av. Saenz Peña, o casual, o político e a indiferença se abraçam, num país acossado por escolhas equívocas. Saí dali e fui alcançado por uma loja de vinhos. 20 dólares depois, exibia duas garrafas de vinho argentino: um de Río Negro (província onde fica Calafate), outro de Mendonza. Este último estava delicioso, como profetizado pelo vendedor. Em 1914, em conseqüência de uma cegueira quase total, o pai de Borges de aposenta e vai passar uma temporada com a família na Europa, onde naquela época os preços são menores que na Argentina. Ficariam até 1921. Daí a educação superior, os múltiplos idiomas, o genuíno cosmopolitismo de Borges. Durante toda a década de 1990 a Argentina sustentou uma paridade artificial com o dólar, sem outro proveito que preços internos astronômicos e desindustrialização em massa, num processo coroado por um feriado bancário que durou semanas, confisco, panelaços e enfrentamentos nas ruas. Até quando será tolerado o charlatanismo nas economias latinoamericanas? Fevereiro de 2004.

Fragmentos

Breves impressões de uma viagem. 1. A alemã Havia uma alemã no hostel Dickson, em Puerto Natales. Não digo que ela era feia (isso poderia magoá-la). Tinha a beleza de um panzer em chamas. Tudo ela pedia à moça da copa: mais chá, café, biscoitos, pães, manteiga, sopa, tudo, e seus pedidos se pareciam muito com ordens. A moça trazia, mas para mim, que não me atrevia a pedir. 2. A bota No refúgio Chileno, próximo à base das Torres del Paine, um irlandês pega a bota usada no dia anterior e derrama seu conteúdo no lixo, educadamente. Foi o primeiro caso de chulé em pó em toda a minha experiência de mochileiro. 3. O incidente do chinelo. Após calçar meu tênis impermeável, deixei meus chinelos aos pés da cama, pronto pra sair pras montanhas. Por algum motivo, resolvi arrumá-los de outro modo, de um modo, digamos, menos infantil. Chutei-os para perto da porta, fazendo-os cair ao acaso. Não me convenceu esse acaso, e a distância até a cama tornava insustentável sua localização no quarto. Ninguém que tivesse simplesmente calçado um tênis as deixaria assim. Fiz alguns ajustes na posição relativa dessas sandálias, o que resultou bastante artificial. Agora eu tinha um problema: não sabia mais a posição original, aquela na qual deixei os chinelos sem pensar no assunto, e quanto mais eu mexia, mais inverossímil ficava sua posição. As coisas não podiam ficar assim. A moça da limpeza poderia suspeitar de minha virilidade ou, pelo menos, que eu não era capaz de governar sandálias com o necessário pulso firme. Precisava encontrar uma posição natural, ao mesmo tempo despreocupada e isenta de manobras calculistas; ou pelo menos uma posição neutra, que não denunciasse toda a hesitação e temor. Mas tudo que conseguia era insatisfatório: chinelas rigorosamente paralelas? Certamente que não. Nada de paralelismo. Fora da geometria de Euclides (ou seja, no mundo real), não existem paralelas e chinelas assim ensejariam fortes suspeitas. Por outro lado, já tinha visto que jogá-las ao acaso também não resolveria, porque elas ficariam desarrumadas demais, como se intencionalmente alguém quisesse esconder suas intenções (certamente horríveis). Ademais, ninguém deixa chinelas em tão lastimável estado. Diabos! E agora? É fato que, em física quântica, pode-se embaralhar duas partículas (dois elétrons, por exemplo), de modo que quando a função de onda de um deles colapsa num estado determinado, o estado do outro, embaralhado, passa instantaneamente a ser definido (é a única interação instantânea permitida pela Física). Os jornais desse início de século vendem essa propriedade como teletransporte de matéria. Trata-se de teletransporte de informação, apenas. Seja como for, é pouco provável que eu conseguisse embaralhar essas sandálias – ordinárias – e não está claro qual o proveito dessa operação. Pensei em escondê-las na mochila, mas vi que a manobra levantaria mais suspeitas: quem iria guardar chinelas na mochila, se ainda ficaria vários dias hospedado? Depois de muito infortúnio e sofrimento, deixei as malditas chinelas do jeito que elas bem entendessem, e fui para o meu passeio, que o ônibus tava esperando, lá fora. Puerto Natales, Janeiro de 2005. 4. O incidente do tênis. Um cidadão (cujo nome é de prudente omissão) vinha angustiado com os tênis, depois de 4 horas de caminhada no King Canyon, e precisava dar uma folga aos pés. Pois aliviou-os, começando pelo esquerdo. Mas, ai! Dos germânicos aos mexicanos, a reação foi imediata. Por mais formoso e delicado que seja aquele pé, as narinas dos tchecos são ainda mais. Uma hora depois, quando devagarinho arriscou tirar o tênis restante, o ônibus veio abaixo, e quase se dissolveu a excursão. - Jesus Cristo! está gangrenado? – perguntaram os suíços, com precisão suíça. Inconformada, a italiana pediu o confinamento do infrator. - entramos em Woomera? Voltaram os testes? Detonaram outra bomba? – disparou a americana, não sem espanto. 5. O beliche. Um sujeito rabiscou no estrado da cama acima: I love swiss girls. Outro, um tipinho idiota, riscou girls e escreveu: chocolates, canivetes, relógios, queijos, pães... Pães! Ele disse pães! Que coma o pão, o bobão. 6. Um rio internacional Nosso guia no Parque Nacional Torres del Paine explicou-nos que o rio Pingo ganha esse nome quando ingressa ao Chile, vindo da República Argentina. Lá, é conhecido como “el Río de las Biscachas”. Não o localizei em meus mapas; ignoro se a informação é confiável, e se a grafia está correta. Também não tenho certeza se Pingo é o nome no Chile, vez que minha memória costuma se divertir às minhas custas. Me agrada mais o nome argentino. 7. A Viagem (um conto kafkiano). Carlos chegou debaixo de chuva à cidade. O ônibus precisou furar o bloqueio da chuva forte, sob frio. A cidade se preparava para dormir. Não teve dificuldades para conseguir acomodação, num albergue bastante barato. Os vinte pesos eram uma pechincha, para um quarto exclusivo. Era modesto, com uma cama de casal, pequena, e uma gaveteira, pequena. Nada de guarda-roupa, nada de banheiro privativo. Na porta, diversos ganchos para pendurar as roupas; no chão, um carpete, indevido. Havia uma janela, por onde eram admitidas mensagens do sol até às 23 horas. Após, vogava no céu uns cacos de luz, moribundos, e as pessoas de bem não lhe davam crédito. Para o dia seguinte, planos de grandes passeios. Há vários sítios turísticos naquela região, que atraem turistas do mundo inteiro, principalmente da Europa. Conhecia os principais, por um guia comprado num sebo em sua cidade. Dados os sítios de valor turístico, existem diversos passeios que os cobrem, com diferentes abordagens: à pé, de ônibus, a cavalo, de barco, avião ou balão. Pretendia começar pelo mais importante, ao qual poderia voltar novamente, se lhe agradasse. Enquanto isso, foi a uma pizzaria em frente ao albergue, que servia chope em grandes canecas. Da calçada, seus freqüentadores pareciam felizes com seus chopões, e os pratos de tira-gosto. Era um chope claro, de fabricação local, razoavelmente gelado, e barato. Foi bem atendido, e sorveu o chope pensando em como seriam os dias seguintes. A expectativa dos passeios era normal, para um recém-chegado, e ninguém duvidava de sua realização. As pessoas que atenderam Carlos prontamente ofereceram passeios, dos mais banais aos mais sofisticados. Nelas, genuíno entusiasmo, ao verem que lidavam com um apaixonado. No entanto, desde o primeiro dia, as coisas não saíam. Carlos conseguia se expressar na língua local, não com perfeição, mas o bastante para se fazer entender, mas nenhum passeio resultava possível. Havia uma moça bonita, muito jovem, que atendia Carlos na agência. Ela facilitava tudo e sorria, simpática. Quanto aos passeios, havia um problema. Esse problema mudava conforme o dia e a hora, e era de difícil apreensão. Ora estava nas intempéries, imprevisíveis, ora em misteriosas mudanças de humor dos guardas florestais ou dos pilotos. No início, Carlos absorveu bem esses reveses, confiante em que tudo fariam para superá-los. Mas, ao contrário das expectativas acalentadas nas muitas horas de solidão no albergue, as coisas não avançavam um milímetro, dia a dia. As promessas, veladas, de que tudo se resolveria, a depender de algumas obscuras mudanças de percepção, se mostraram estéreis. Às escondidas, Carlos travava contato simultâneo com várias agências, e de todas recebia respostas animadoras, de que logo estaria a bordo de um ônibus, a caminho de algum passeio. Mas bastava ele tentar conduzir a conversa para os finalmentes, valores e horários, para ser desconversado. - sabe o que é, não vai dar. Já está completo (não sabíamos que você estava interessado), mas amanhã é certeza, tá? No dia seguinte, Elsa normalmente não era encontrada para confirmar ou não o passeio, e os demais não estavam inteirados. Tampouco se poderia dizer que ela fazia por maldade. Ela parecia acreditar que mudaria Carlos; que o faria pronunciar as palavras certas, do jeito e na ordem certa. Ele queimava de ódio, à vista da injustiça que lhe faziam, sob os mais virtuosos pretextos. Ameaçou, disse que estaria de partida, a não lhe atenderem os rogos. Isso trouxe constrangimentos, especialmente a Elsa, que chorou ante essa incompreensão. “Por que ele se recusa a entender?” Entrementes, tratou de arrumar emprego nessa cidade, para ir sobrevivendo enquanto não se realizava o sonho dos passeios. Apesar dos discursos de igualdade, para clandestinos sobravam os piores empregos, com soldos minguados. Começou a trabalhar num albergue, e o que ganhava mal dava para pagar o quarto e a comida. Mantinha, contudo, boa parte do dinheiro destinado aos passeios, do que não abriria mão. A essa altura, Carlos perdera o emprego em seu país, pela longa ausência, e passava os dias a tentar construir uma estratégia que o levasse para dentro dos parques nacionais, dos passeios. Veio o inverno, e a interdição de parte desses passeios, o que paradoxalmente renovou as esperanças de Carlos. Poderia ser que, à mingua de interessados, e com a necessidade de ingressos nas agências, deixassem-no ir. Mas diversos acontecimentos fortuitos, alheios à vontade de Elsa e dessas agências, frustraram as esperanças. Ora os passeios eram cancelados, ora não estariam disponíveis por dias a fio. Veio um novo verão, e com ele hordas de turistas sorridentes, de todo o mundo. Magoava-o a circunstância de que todos vendiam pacotes para essas pessoas, inclusive Elsa, sem qualquer percalço. Os turistas chegavam e, minutos depois, estavam passeando, nos mesmos lugares proibidos a Carlos. Deve ser dito que Carlos não era maltratado por eles. No geral, tratavam-no com distinção. Muitos gostavam genuinamente dele, e Elsa... Elsa fazia tudo por ele. Quantas vezes ela teve de intervir para que o dono não o expulsasse da agência? Ela também perdoava os muitos casos de ‘infidelidade’, visto Carlos manter contato com quase todas as agências, na vã suposição de que um maior número de pessoas trabalhando na questão apressaria sua solução. Inúmeros telefonemas eram dados; na difícil pesquisa de passeios, era-lhe oferecido cafezinho, água e até lanche (ocasionalmente). Às vezes, os atendentes ficavam até mais tarde ao telefone, em negociações, e faziam enérgicos esforços para embarcar Carlos, sem qualquer resultado, além de renovadas promessas, para “breve”. Estanque em seu quarto, Carlos anelava rebelar-se contra essa covarde conjura de forças invisíveis. Gostaria de ser forte e mandar tudo ao inferno. Ou então fazer os passeios clandestinos que lhe ofereciam. Enquanto isso, receava. Seus escrúpulos não lhe permitiam desafiar a lei e adentrar sem permissão aos parques. Quanto a ir embora, temia depois se arrepender e querer voltar, tendo aí de reiniciar penosas negociações com as agências e com Elsa. A própria Elsa, também cansada dessa situação, às vezes falava em ir embora para Santiago, em abandonar tudo e aceitar a oferta de um curso de turismo. Mas ia ficando. Um belo dia Carlos acordou zangado. Uma zanga antiga, que vinha lhe consumindo os recessos da alma, e já devorara importantes domínios anímicos. Ele intuiu que devia ir, que não mais lhe aproveitava ficar. Sem uma palavra a Elsa, sem justificar-se com ninguém, ele pediu demissão, fechou a porta de sua pessoa, quitou a conta do albergue e comprou passagem para Punta Arenas. Lá, pegaria um avião de volta para casa. Estava livre. Era todo certeza, e já não sabia sofrer. É difícil saber como Elsa recebeu essa notícia. Ela continuou seu trabalho, resignada com o inverno que instalara em definitivo em sua vida. Campo Grande, 17 de abril de 2005 8. O incidente do ônibus. Saindo de Puerto Natales, tomei um ônibus para Punta Arenas, fazendo o sentido inverso da viagem de táxi que me trouxe a Natales. O caso é que o ônibus estava lotado, e eu não tivera oportunidade de tomar um banho. Sabem o que foi? Sem qualquer culpa de minha parte, sumira minha toalha. Sem toalha, sem banho (é um albergue). Ocorre que eu vinha de um dia inteiro em Paine, muita atividade física, entendem? Tentei roubar uma toalha, na varandinha próxima à bateria de banheiros, mas fui dissuadido por duas sentinelas, ciosas justamente de suas toalhas. Então, lá estava eu. Antes de subir ao ônibus, um cachorro pensou que podia me inspecionar, detidamente, mas eu mostrei que ele estava errado: mesmo para um vira-lata, toda aquela concentração de aromas foi demais. No ônibus, a senhora ao meu lado abanava a cabeça e prendia o fôlego por longos minutos. Toda aquela situação me comovia. “O que será que ela tem?”, perguntava-me. Depois, num esforço maior, ela tomava fôlego, aproveitando uma corrente de ar vinda de fora. Apesar disso, a viagem transcorreu bem. Notei que o motorista açoitava com incomum vigor o acelerador, como se estivéssemos indo em massa ter às portas do céu. Na chegada, comoveu-me o gesto dos passageiros. Espontaneamente, e sem nenhum constrangimento, eles me presentearam com toalhas, muitos sabonetes e até esfregões. A mais empenhada nessa doação era a mulher que se sentara ao meu lado. Aceitei os presentes, doados com tanto amor, e fui para o check in, intrigado com tanto desprendimento. Pus-me a pensar no banho que tomaria, após o vôo, em Santiago. Estava entusiasmado para fazer novas amizades no vôo.

Os caras de Adelaide

Há uma cidade no sul da Austrália chamada Adelaide. É famosa por suas chuvas, sempre na hora errada, e por seu vinho. Após 3 dias de excursão pelo Great Ocean Road, aportei a essa cidade. Havia três caras no hostel muito atenciosos comigo, diria que excessivamente. Tudo que eu fazia, se me mexia, se ia a um museu, tudo era acompanhado. Concluí que eles eram, digamos, “artistas plásticos”. Mas felizmente, um senhor de meia idade, nipônico, muito respeitável, dividia o mesmo quarto, e não tive problemas. Conversando com o japonês Suichi (o do incidente do queijo), ele observou: - Tá vendo aqueles três caras, ali na cozinha? - Sim, estou, dividem o quarto comigo. - Pois são todos viados. Não tem jeito. - Well, eu já suspeitava. Felizmente, dividimos o quarto com aquele senhor ali, ao lado deles. Ele não fala uma única palavra em inglês, mas é bem distinto e confere respeitabilidade ao quarto. - Pois é o rei da viadagem nesse hostel. Insaciável, tem atuação destacada em outros albergues da cidade, onde é conhecido como a grande mulga. - Oh, no! - Oh, yes! Aqueles rapazes têm muito o que aprender com a velha mulga, ora se têm... Adelaide, dezembro de 2004.

Uluru

Caminhar em torno a esse maciço rochoso compensa qualquer sacrifício da viagem (aí incluídos vôos pela Virgin e ônibus quebrado no meio do deserto). Circundam-se 6 km de surpresas ininterruptas. Borges registrou, sobre uma caminhada igualmente heróica: “em vão esgotei meus passos; o negro embasamento não registrava a menor irregularidade, os muros invariáveis não pareciam consentir uma única porta.” Certas coisas, como a laje em forma de onda, as várias cavernas e saliências, e os indefectíveis paredões com 200, 250 metros de altura calaram-me, despertando a fúria fotográfica. São grandiosos os dispêndios da natureza. Subi a uma pedra para uma foto. Parecia a mais simpática e foi a primeira a me derrubar. A certa altura, parece que o paredão foi penteado por um cabeleireiro delirante. Próximo a esse monólito, outro tumulto lítico: Kata Tjuta. São rochas dispostas como um bolo não isento de loucura, vasto, obrigando a vista a contorcionismos verticais. Fatigamos suas veredas, e soubemos da intenção desse aparelho. "É impossível existir pedras tão soberbas", pensei. Olhei para os fios de água enferrujada dessas profundas redes de pedra e corrigi: "não só existem como dispensam almas líquidas". De Uluru (Ayers Rock) segue-se até Little Puta Puta. Perdão, mas é isso mesmo. Pouco mais à frente, a própria, a virtuosa Puta Puta. Um nome que, não fossem outras objeções, ainda teria contra si um pleonasmo. Mesmo isso é ninharia, perto do nome de um local sagrado encravado em Uluru: Mala Puta. Como foi que eles chegaram a um nome desses, nem o bom Deus sabe. Conheci, ainda, um interessante local chamado Putaruru, numa região, já viram, de nomes realmente originais. No Red Centre, as pessoas falam como texanos, com voz largadona e tirando a Pato Donald (uma americana, do estado de Washington, com quem repercuti essa impressão, limitou-se a exclamar, apiedada: so funny!). Os cabelos devem ser conservados rigorosamente desgrenhados; a roupa, amassada (estilo guardei numa garrafa), a camisa precisa estar aberta e os cadarços, soltos. A barba, sempre por fazer, e garrafas d’água na cintura, à guisa de revólveres. Não tive problemas para incorporar o figurino, menos a fala, é claro (conservo a fala campo-grandense, com portas e corguinhos rascantes). O aspecto geral, tipo “que me leve o diabo” é assimilado com grande facilidade pelos mochileiros, que já chegam aclimatados, de tão previdentes. Chapéus são bem vindos. Se você não tem um, bem, você vai precisar de um. Alice Springs, dezembro de 2004.

Rangi

Tomei um ônibus que se dizia magic mas era apenas um ônibus, se bem que animado. Seu motorista (lembro que costumava se chamar Rangi) era um maóri entrado em carnes. Bastará dizer que sua silhueta sugeria que ele fora botado por uma ave gigante e malvada? Rangi era igual de frente, lado ou costas: a mesma linha suavemente inclinada, ganhando proporções épicas no centro. Mas Rangi é gente boa, com toda certeza. Guiou-nos por toda a ilha norte da Nova Zelândia, com grandes proveitos. Primeira parada, a caverna. Em Waitomo estão estacionadas cavernas com vermes que brilham no escuro. Você forma um trenzinho com os companheiros de passeio, cada qual sobre uma bóia (uma câmara de pneu de carro, normalmente. Alguns precisaram de uma de trator, mas isso é irrelevante para a economia geral da composição). O vagão que ia à minha frente era uma linda francesa. Que me lembre, foi a primeira francesa a me agarrar (quem vai à frente agarra firmemente as pernas de quem vai atrás). Não quero lembrar da inglesa que ia às minhas costas. Pois esse animado trenzinho (num sentido alheio a toda fraude) segue flutuando sobre um rio subterrâneo de águas poucas, turvas e geladas. Cada vagão se desloca vagarosamente sob um céu de estrelas verminosas. São grandes constelações em cada salão, até chegarmos à cachoeira. Lá, cada vagão despenha sobre a água escura, de costas, sobre seu flutuador, com grande estrondo e formação de ondas no escasso rio (alguns formaram verdadeiros vagalhões, privando brevemente de água o rio). Terminada essa etapa, de novo juntam-se os vagões, para margear por paredes de argila e pedra, navegando águas pouco esclarecidas. Ao término, uma cratera invertida, no teto, e uma escadaria. Perfurada por raios de sol sob intensa neblina, essa escada compõe um retrato de poesia concreta. Nenhuma câmera fotográfica profanou essa magia, que permanecerá na memória, fomentando o trabalho onírico. Rotorua. “Mas meu Deus do céu! Acaso agora é proibido respirar?”, foi a exclamação de uma inglesa ao chegarmos a Rotorua. O leitor não deve se preocupar em demasia em identificar quando chegou a essa cidade. Deixe-se guiar pelo faro. Sabem aquele forte cheiro dos mangues? Multiplique por dez e espalhe por toda uma cidade: é assim Rotorua. “Cagaram no mundo?”, indagou um japonês, indelicado (não entendo uma palavra de japonês, mas foi isso mesmo que ele disse, tenho certeza). Mais ao sul, Rangi gastou um tempão explicando a próxima paisagem, uma garganta com um rio ao fundo, que se resolvem em uns cento e vinte metros. Todos os motoristas de ônibus da Nova Zelândia e Austrália se pretendem comunicadores (e alguns o são); gastam horas explicando tudo, mesmo que a platéia tenha se evadido pelas ruas do sono. Rangi enfatizou que a próxima paisagem, à esquerda, seria uma profunda escavação do rio. Com esse lado do ônibus bloqueado por uma parede de curiosos, pensei rápido e concluí que à direita haveria paisagem semelhante, já que entráramos numa ponte. Numa fração de segundos virei a cabeça, a tempo de ver uma enorme placa, cobrindo todo o horizonte, onde quase se podia ler: “a paisagem é à esquerda, otário!”. Essas algumas das aventuras na ilha norte da Nova Zelândia. No dia 30 de dezembro aportei à ilha sul, para novas aventuras.

O idioma

Grandes são as alegrias de aprender outro idioma. Por algum motivo, que ora me foge, não as experimentei ainda, de sorte que fui descobrindo aos poucos que o inglês não é exatamente uma província do português. Imagine o leitor que eu só conseguia pronunciar confiavelmente os números até doze. Isso mesmo, só até doze. Ten, por exemplo, considero um número bom e cristalino: ten. Enough. Já o nine, o seven e o eleven, todos eles fáceis e plenos de méritos, são números de ampla aceitação. Até o 5, a única dificuldade é o 3. Quantas vezes o confundi com o 2, e vice-versa... Por algum motivo, as pessoas insistiam no 3, eu no 2. Em minha simplicidade, pensei um mundo em que não precisássemos de números maiores que 12. Ora, se adicionarmos o segmento negativo da escala (-1, -2 ...) e o zero, que é zero em qualquer idioma que se preze, teremos aí garbosos 25 números! Sabe-se lá quantos quatrilhões de combinações são possíveis com 25 números? Well, eu estava errado. E acabei descobrindo o número 20. Gente, twenty é demais. Quando o descobri, parecia que todas as portas de um ilimitado mundo se abriam. Se me perguntassem quantos filhos tenho, quantos dias ia viajar, quantas línguas falo, quantos dedos tenho em cada mão (uma das perguntas prediletas dos agentes de imigração), a resposta seria mesma e única: twenty, cheia de orgulho. Infelizmente, entre o 12 e o 20, temos as atrozes fraudes do 13, 14, etc. Tive muitos problemas com o 13, um número feroz, como se sabe. Toda vez que o pronunciava, as pessoas ouviam 30, e vice-versa, gerando não pouca confusão. Desafortunadamente, reservei 13 dias na Nova Zelândia, e logo todos passaram a me considerar um vadio: 27 dias na Austrália, 30 na Nova Zelândia e 12 no Chile... Mudei minha passagem, para ficar apenas 12 dias na Nova Zelândia, resolvendo de uma vez o problema e calando os críticos (existia um outra saída: uma consulta ao dicionário. Não sei se funcionaria. Há qualquer coisa de irrevogável na transmutação das cifras; seja como for, não fatiguei meu modesto dicionário). 12 dias na Nova Zelândia e 12 no Chile são a justa medida, qualquer um sabe disso.

Fim da aventura

Cheguei ontem a São Paulo, pondo fim à aventura. Quando se está indo, é maravilhoso; você quer conhecer, olhar, lançar-se. Quando está de volta, também é maravilhoso: as pessoas, os reencontros, a cultura tão familiar, o país (há um país?). Nas minhas viagens, ida e volta são igualmente deliciosas. Quando cheguei a Sydney, uma moça brasileira resumiu bem a situação, à porta da rua do aeroporto: "Agora é se jogar no mundo". Eu me joguei, e não me arrependi. São Paulo está do jeito que a deixei: caótica, indomável, cheia de medos, mas também de jardins, liberdades e paraísos. Não sei o que fazer com São Paulo. Hoje dou umas voltas por essa cidade, mato a saudade da comida brasileira e retorno à noite para minha cidade. Espero encontrar tudo no lugar. São Paulo, 19 de janeiro de 2005 P.S.: fui a uma churrascaria, cujo nome não revelo, mas fica na Rebouças. Em busca da pura carne vermelha e fresquinha, só servida no Brasil, assediei os garçons. A picanha, a ponta de costela, a própria costela estavam além de minha capacidade de exposição. Depois, descendo alguns metros e entrando na Oscar Freire, chega-se à Hägen Daazs. Não é honesto relatar todos os crimes que cumpri nessa sorveteria. Certa ocasião, paguei um táxi de Congonhas até a Oscar Freire, só por causa do chocolate belga. O taxista, indignado, quase me expulsou do táxi, mas por fim se resignou. Depois, comprei a playboy do mês, talvez com a Luma. As fotos foram tiradas no Hotel Sun City, África do Sul, e me pareceu necessário matar as saudades daquele hotel. A decoração está deslumbrante, tal como a deixei. De muito bom gosto. Li (é claro que li), a reportagem. 2º P.S.: Logo depois do Natal, ocorreu uma tragédia na Indonésia, Tailândia, India e outros países. Devido a informação desencontrada, essa notícia ocasionou um incontrolável surto de euforia no Tribunal. Sem informação, meus colegas pensaram que eu estava num desses países. Pelos corredores podia-se ouvir uma prece: "Oh Deus, não permita que seja só o Gerson..." Muito anjo, a Rosanna foi a primeira a soltar a bomba: "Gente, ele está vivo. Escreveu hoje no blog..." Rosanna! Você se dá conta que estragou o fim de ano dos colegas? Francamente...

Chegada à Austrália

Após um vôo de vinte e tantas horas, com escalas em Santiago e Auckland, chega-se a Sydney. Um Jumbo nos acompanhou na aproximação final, pousando simultaneamente, quase ao nosso lado, numa pista paralela. Um 747 voando a alguns metros de sua janela, em atitude de pouso, é algo grandioso e perturbador. Ao fundo, a ponte que reivindica Sydney e a Austrália. Um Boeing 777 da Royal Brunei novinho em folha ajudou a compor o quadro. A primeira impressão, na saída do aeroporto: o calor, as moscas e o aspecto geral de país desenvolvido. No caminho para o hostel, em companhia de moças alemãs, a impressão se acentuou. No albergue, várias pessoas simpáticas, mas nenhuma amizade (é preciso mais investimento, concluí). De certa forma, Sydney realiza o que outras cidades apenas sonham. Parques por toda parte; a arquitetura pode não ser original, mas tem sempre algo que agrada. A Casa da Ópera talvez seja a obra mais importante da arquitetura do século 20, me disseram, e estou propenso a acreditar. O formato, em conchas, o tratamento genial dado às formas, seus detalhes generosos: como invejo um gênio que se realiza. Atravessar à pé a ponte foi como inserir-se numa fotografia dos anos 30. Suas colunas, negras, evocam catedrais esguias. Na luz esbatida do sol em retirada, conta-nos o metal uma história de desafio e glória. Tendo o sol deslizado em busca da América, me ponho à espera da noite. Ela pode ser fria em Sydney. Sydney, dezembro de 2004 II. Chegada ao outback. Vocês pensaram que as moscas eram assunto superado, não é mesmo? Pois elas estão aqui. Todas elas. E não adianta abanar. Se elas gostarem de você (elas vão gostar), abanar poderia magoá-las. Deixa que fiquem. São de um tipo pequeno, bem pequenininho, e tenazes. Hoje, ao amanhecer, subi a uma colina de onde se avista Alice Springs. É uma pequena coleção de prédios pequenos, acossada por morros de pedra ocre. Tomamos café e partimos para o deserto. No caminho, paramos para catar lenha para o jantar (na Austrália, é normal). Depois paramos, por quebra do ônibus. Foi estranho ter de esperar no meio do deserto, por muitas horas, sem que nada fosse feito. Nesse tempo, conversei com uma americana e duas alemãs (que pensei fossem irmãs). Yvonne é uma doce criatura. No sorriso, a chave da candura. Esses imprevistos é que nos dão lucro. Alice Springs, dezembro de 2004.

O quarto de albergue

O quarto de albergue. Abro a porta e ligo a luz. Deparo com fileiras intermináveis de camas que, a meus olhos cansados, pareciam infinitas em todas as direções. Em vão esgotei meus passos em busca de um lugar onde não houvesse camas e sua mobília humana. Sendo beliches de vários níveis, a impressão era a do interminável, do excessivo. Imaginei a dificuldade de adormecer em semelhante escaninho, mas o paradoxal é que, mal me deitei, aderi à primeira corrente de sonho que passou por aquela região do quarto. Num quarto de tamanhas proporções, diversas correntes de sonhos varrem o espaço, e você só precisa se deixar levar por um desses bondes oníricos (em verdade, o difícil é não ser arrastado por eles). Participei de vários sonhos coletivos, ou talvez um único, que passou em muitos países; falou muitas línguas, inventou muitos sentimentos e visitou todas as impressões. Estive também em sonhos alternativos, desgarrados das correntes principais e, como os demais, também ronquei e praguejei; também aceitei e neguei Jesus (três vezes, como nos ensinou o apóstolo Pedro) e também vi minha mãe. Os sonhos de predominância chinesa não me agradaram; os de tendência dinamarquesa me pareceram desnecessários. Ao acordar, em alguma cidade da Oceania, tudo desmentia a noite: o sol, a canção, o café e o ônibus à porta, o motorista bufando de raiva. Janeiro de 2005.