sexta-feira, 23 de dezembro de 2005

Inverno em Praga

Praha, capital da Tchecoslováquia, agora República Tcheca, é uma cidade do Leste Europeu cheia de encantos. Sua arquitetura medieval, rica em torres, capitéis e campanários, evoca talvez Florença, a sermos amigos de comparações.


A catedral Tyn, o torreão isolado no meio da rua, o Castelo de Praga: há um toque naturalmente sinistro nessas massas arquitetônicas que, se não vem de Kafka, o evocam ou, no mínimo, não o refutam.

Tampouco o que sobrou dos guetos negam o profundo escritor, autor de O Processo, A Colônia Penal e A Metamorfose, artífice dos mais sombrios pesadelos que já deram expediente no espírito humano.

A família do escritor foi assassinada nos campos de concentração, na década de 1940. Kafka morreu de tuberculose, aos 42 anos, apos intuir metaforicamente todos os terrores do Século XX, chefiá-lo literariamente e debelar nossas últimas ilusões. Foi o esteta superior daquele século, de uma desumanidade manifesta.

Praga está tomada de gratificados turistas. E cheia de música.

Volto agora das Quatro Estações, de Vivaldi.

Amanhã, o ossário de Sedlic e, quem sabe, jazz, à noite. 

Praga, 22 de dezembro de 2005.

Os mosquitos e outros incidentes

O amigo Júlio contou, num desses despachos, sobre uma noite com insetos em São Paulo. Não seria ético de minha parte lançar dúvida sobre a veracidade do relato. Eu jamais pensaria em desautorizar um amigo que, afinal de contas, divide o mundo comigo. Gostaria, no entanto, se não for excessivo, de divulgar minha versão dos fatos. Tudo ia bem naquela noite, uma noite comum, se me permitem a observação. Tínhamos comprado horrores numa loja de montanhismo (principalmente coisas de que jamais precisaremos), visitado o Iguatemy e resolvêramos descansar para o dia seguinte, o da partida. Lá pelas tantas, noto que o Júlio saiu do quarto, em direçãoo à sala contígua (era um apartamento grande). Voltou com alguma coisa, que ligou na tomada. De imediato, senti a empolgação das muriçocas, até ali invisíveis ou, pelo menos, inertes: começaram os zumbidos e as picadas. Mais tarde, o mesmo Júlio sai do quarto, visivelmente determinado, e volta logo depois, com mais equipamentos. Notei a alegria dos pernilongos, que o seguiam, e entraram a extrair quotas cada vez mais exageradas do pouco sangue que nos restava. Indiferente a esses sucessos, uma terceira vez sai o Júlio, agora com cara de matador. Pluga freneticamente equipamentos por todo o quarto, alguns com leds, outros emitindo risíveis sonoridades. Resultado: uma rave de muriçocas, uma animadíssima festa alimentada com nosso sangue. II. Nas ruas de Praga a temperatura media é de 2 ou 3 Celsius positivos. Daí as mochilas, cheias de acessórios. Júlio saiu com a sua, uma mochila digna de um jardim da infância. Alertei-o para que não passasse por um albergue, por exemplo. Os mochileiros prontamente o espancariam, com grande alegria, à vista do evidente insulto. O gesto, bem pouco viril, de usar casaco e bota de montanhismo para ir ao teatro foi outra de minhas observações, sem sucesso. Lá estava ele, armado até os dentes para um frio da Sibéria, assistindo As Quatro Estações numa sala tão quente que as crianças tiraram seus agasalhos. Felizmente, tudo vai bem na viagem, tirando os incidentes acima. Praga, 23 de dezembro de 2005.