sexta-feira, 8 de março de 2013

O cérebro imperfeito


Dean Buonomano, na mesma linha de Kahneman, Dan Ariely e outros descreve como as limitações do cérebro influenciam nossa vida e moldam a percepção que temos do real.

O cérebro é uma rede com 90 bilhões de neurônios conectados por 100 trilhões de sinapses, que passou por um incremento nos últimos 200 mil anos, com adição da última camada de material processante: o neocórtex, cujos neurônios podem ter 10.000 conexões cada um (média de 1.000), contra 10 de outras partes menos "badaladas". Um neurônio do neocórtex interage de forma massiva, participando de inúmeras redes simultaneamente. Mas os neurônios e as sinapses mudam à medida que aprendemos, e suas propriedades, por sua vez, determinam quem somos e como nos comportamos - os programas que o cérebro roda. (pág. 13)

Assim, neurônios e sinapses são nosso software. Até que ponto o sistema operacional neural, estabelecido pela evolução, está bem sintonizado com o mundo digital, sem predadores, com excesso de açúcar, cheio de efeitos especiais, cercado de antibióticos, saturado pela mídia e densamente povoado? Nossa mente foi moldada e evoluiu para lidar com a escassez, não com o excesso hodierno. Não reconhecemos a natureza estatística do mundo, e estamos alheios aos fatores irracionais e arbitrários que governam nossas decisões e comportamentos.

Você, senhor leitor, domina leitura labial? Agarantcho que sim, apesar de não se dar conta. Leitura labial é parte inseparável da comunicação verbal, praticada inconscientemente por todos, desde bebês.

Efeito priming: um estímulo prévio pode facilitar [e induzir] o processamento subsequente de outros estímulos. Envolve memória implícita, inconsciente. Exemplifico:

1. Em que continente fica o Quênia?
2. Quais as duas cores opostas no jogo de xadrez?
3. Diga o nome de um animal.

20% das pessoas respondem zebra, quando, sem indução, seriam menos de 1%. O conhecimento é armazenado de forma associativa: conceitos relacionados (...) estão ligados entre si. A primação afeta tudo em nossa vida, até nossos sonhos, dado o trabalho associativo da memória.

Explícita, ou declarativa, é acessada por lembrança consciente ou descrição verbal. Podemos simplesmente declará-la. Capital do Brasil: Buenos Aires. Da Austrália? Sydney, e não se fala mais nisso.

Andar de bicicleta, tocar violino ou saber uma senha somente ao teclado (padrão motor) são demonstrações de memória implícita, não declarativa. Qual letra está à esquerda do J no teclado qwerty? Não sabe? Então como consegue digitar hesitar, hein? Aposto que você nem sabia que sabia (temos um teclado armazenado na memória implícita).
O cérebro humano armazena conhecimento factual sobre o mundo de forma relacional. (...) um item é armazenado em relação a outros, e seu significado deriva dos outros itens aos quais está associado, diz o autor. 
Como a memória está fisicamente armazenada no cérebro? Através de padrões de disparos, ou seja, da plasticidade sináptica. Deve ficar claro que o armazenamento envolve populações, e não neurônios isolados, e que a plasticidade sináptica associativa (neurônios que disparam juntos) formam a base da memória semântica. (...) memória e significado estão entrelaçados: os links são tanto o de memória quanto o de significado. Notem que as operações de registro e leitura da memória são independentes: o ato de recuperar uma memória pode alterar seu conteúdo, sobrescrevendo registros. O recuperar memória submete-se à lógica do contágio.

Assim, mesmo após os neurônios que representam "pão" silenciarem, os neurônios continuam a sussurrar para seus parceiros, e instala-se incontrolável algazarra café com pão café com pão café com pão por alguns instantes, mesmo antes do surgimento em cena do triunfante café (efeito primação). Seu cérebro tentará, sempre, antecipar o que vem a seguir.
- Como está sua memória?
- Costuma parecer-se com o esquecimento, mais ainda encontra o que lhe pedem. Estou estudando anglo-saxão e não sou o último da classe. Borges, O Outro, Livro de Areia.
A ilusão do corpo.

Oliver Sacks conta o caso do homem que, tendo sofrido derrame, ao acordar no hospital encontrou uma perna sem corpo em cima de sua cama. Avesso a brincadeiras, jogou-a pra fora da cama, indo parar no chão. A perna era dele.

Síndrome do membro fantasma e somatoparafrenia (a condição acima) são imagens espelhadas da mesma incapacidade de sentir o próprio corpo. Numa, a pessoa sente um membro inexistente; na outra, nega a existência de um membro em perfeito estado. Em outra estranha condição, a pessoa sente um membro saudável (do joelho pra baixo, por exemplo), e o repudia a ponto de exigir sua amputação. Mais estranho ainda, sentem-se melhor sem ele.

Ao contrário do que poderíamos pensar, membros fantasmas não são ilusões. A sensação de nossos membros reais é que é uma ilusão. Seu corpo está representado ponto a ponto dentro do crânio, de acordo com regras de primazia cortical. A projeção desse corpo que você conhece é um truque imodesto de nosso cérebro. Os membros fantasmas representam apenas a ilusão normal do corpo que deu errado porque a sensação é projetada para um membro que não existe mais. As áreas do cérebro responsáveis pelo membro perdido não recebem a informação que o corpo mudou e, à semelhança do soberano que, por ignorância, continua a "governar" parte já perdida de seu império, persiste em gerar a ilusão inalterada do corpo que já não corresponde.

Zumbido no ouvido também pode ser descrito assim. As preciosas células ciliadas da cóclea morrem (por uso de certos medicamentos, ou ruído excessivo, por exemplo), privando o correspondente córtex auditivo de sua fonte de estímulo. Essa área pode ser capturada por regiões auditivas contíguas e ficar para sempre reproduzindo o lucilar dos neurônios vizinhos. Prenota-se que a perda auditiva associada em geral corresponde à frequência dos ruídos.

Mais bizarra é a síndrome da mão alienígena: o membro adquire um "novo dono", com planos secretos e alterados. A mão alienígena desabotoa a camisa que a mão normal se esforça por abotoar, para perplexidade e frustração de seu dono: "Não sei o que minhas mãos estão fazendo. Não estou no controle". O membro alienígena exibe vontade própria e, para a mortificação de seus donos, quer participar: "Se ao menos eu soubesse quem está puxando meu cabelo..."

A síndrome de Capgras pode ser hilária, principalmente se você não a sofre. A vítima pode reconhecer que sua mãe se parece muito com sua mãe, mas insiste que ela é, na verdade, alguém que finge ser sua mãe. Alguns pacientes Capgras sustentam que a pessoa que acena do fundo do espelho é um ardiloso impostor. Já passei por isso, embora tenha renunciado a atacar o vil trapaceiro.

Muito em função do funcionamento modular do cérebro, os sintomas sugerem danos às áreas que ligam reconhecimento facial à importância emocional. Na ausência de qualquer sentimento de afeto ou familiaridade com o rosto conhecido, o paciente conclui que se trata de um charlatão, conclusão só reforçada pelas extremadas demonstrações afetivas do suposto embusteiro.

Fechando, o piloto automático de um avião pode saber a posição do trem de pouso, flaps e ailerons mas, ao contrário do cérebro, não pode senti-los. E quando essa consciência do corpo falha, o resultado pode ser uma das síndromes acima.

Consciência e distorções.

Somente uma pequena parte desses estímulos [informações sensoriais] chega à consciência, e as que conseguem são muito processadas. Algumas coisas são editadas; outras, retocadas ou reconstruídas por completo - o que percebemos em nível consciente é, em essência, um pacote do departamento de marketing.

Leitura, por exemplo. Inconscientemente você junta palavras e expressões. Conscientemente, apreende o significado da frase em pontos fundamentais. A própria consciência é ilusória; ela não é um relato contínuo on-line de eventos que ocorrem no mundo, mas uma construção após o fato, o que exige cortar, colar e atrasar blocos de tempo antes de criar uma narrativa agradável dos eventos externos.

Medo.

O medo, como se sabe, é um dos fundamentos dos governos: "Para os Estados Unidos, não haverá retorno à (...) era de falso conforto em um mundo perigoso." Baby Bush, 2003.

Nos EUA, entre 1995 e 2005 tivemos 3.200 mortos em ataques terroristas; 400 mortos por raios; 7.000 fatalidades associadas ao clima; 180.000 assassinatos; 300.000 suicídios e 450.000 mortes no trânsito. Ninharia, comparados com 1.000.000 de mortes reivindicadas pelo cigarro e 6.000.000 associadas a doenças cardíacas.

Guerra ao terror? Ao custo de, ao menos, U$D 5.000.000.000.000? A indústria de armas está rindo da sua cara. Somos cegos para os verdadeiros perigos, e para a manipulação mais descarada. Bush sequestrou o medo coletivo para que ele e os seus ganhassem. Verdadeira política da amígdala.  

O vírus da raiva, por exemplo, manipula o comportamento de seu hospedeiro, de modo a infectar outros com a maior eficácia possível. O Toxoplasma gondii manipula o comportamento dos ratos, que perdem o medo e rapidamente migram para a boca dos gatos, hospedeiro necessário para a reprodução do protozoário.
(...) nossas ações parecem resultar de negociações entre as áreas cerebrais mais antigas, como a amígdala, e os módulos frontais mais novos. Juntas, essas áreas podem chegar a algum consenso em relação ao compromisso apropriado entre emoções e razão, tema desenvolvido por António Damásio.  
O número de conexões que saem da amígdala em direção às áreas corticais é maior do que na direção inversa: a amígdala possui influência maior sobre o córtex do que o contrário. A estimulação emocional pode dominar o pensamento.

Concluo, a respeito do medo irracional. Em 2007, penúltimo ano de Bush, o orçamento militar foi de U$D 700 bilhões, sendo destinados míseros U$D 2 bilhões para estudar e curar doenças cardíacas. Há algo de errado quando 2.800 pessoas são infinitamente mais importantes que 6 milhões!

Raciocínio irracional. O inconsciente.

Nossa mente consciente, em geral, justifica decisões que já haviam sido tomadas por forças desconhecidas. Somos criaturas dependentes do contexto.

Você é um idiota!

O valor dessa frase depende de quem a profere: a) você mesmo; b) seu melhor amigo; c) seu chefe; d) um estranho. O contexto é a chave interpretativa.

Os dois sistemas, de Kahneman, foi assim descrito pelo autor: o sistema automático é aquele que pensamos ser nossa intuição e é inconsciente, rápido, associativo e sem esforço. Ele é muito sensível ao contexto e às emoções, ansioso por tirar conclusões precipitadas, e tem alguns desvios e hipóteses preconcebidas. (...) O sistema reflexivo é lento, e requer esforço e pensamento consciente. É flexível e ponderado.

Responda rápido (não vale consultar): o que as vacas bebem?
a) leite (sistema automático)
b) água (sistema reflexivo).

Você acabou de ganhar 50 pratas, num experimento. Pergunto: você prefere FICAR com 49% ou PERDER 49% desse dinheiro? Hein?

Essas pegadinhas ilustram a relação entre primação comportamental, efeito de enquadramento e ancoragem: a propagação da atividade entre grupos de neurônios representando conceitos associados, emoções e ações. O priming implanta uma forma de sensibilidade ao contexto.

Dean sintetiza a distinção de Kahneman (p. 155):
As decisões que moldam nossa vida resultam de dois sistemas bem complementares. O automático é rápido e inconsciente, e se baseia, em grande parte, na arquitetura associativa do cérebro. Esse sistema é o mais emocional e atende quando as coisas soam boas ou ruins, justas ou injustas, razoáveis ou arriscadas. O segundo, o sistema reflexivo, é consciente, requer esforço e está em sua melhor situação quando é beneficiado por anos de prática e aprendizado. O sistema automático em geral requer a tutela do sistema reflexivo. O automático tem como principal função fornecer o contexto necessário para nossas decisões e, pelo fato de a sensibilidade ao contexto ser inconsciente e estar no núcleo de nosso hardware neural, ela é um recurso difícil, senão impossível de desligar. 
Bugs da publicidade.

A partir de 1929 a indústria do tabaco conseguiu associar o vício do fumo, até então uma atitude mal vista entre as mulheres, ao movimento feminista. Cigarro passou a ser a “tocha da liberdade” (SIC). Até os anos 1950 os médicos apareciam nos anúncios de cigarro, jurando que o vício era saudável. A indústria nunca pagou por esses crimes contra a humanidade.

Hoje convivemos com a publicidade massacrante do álcool, que atinge principalmente adolescentes; propaganda política simplória continua a saturar a mídia, promovendo políticos que, bem, você sabe.

Bug sobrenatural.

Pascal Boyer, citado pelo autor: “os conceitos e atividades religiosas sequestraram nossos recursos cognitivos”. Uma característica da mente facilmente cooptável é considerar a existência de um agente, mesmo quando não há. A religião, muitas vezes, dota de mente, vontade e intenções objetos inanimados, animais e construções etéreas que chamamos deuses.

Serão os antigos e ociosos mitos religiosos adaptativos?

Sobre o surgimento e esquecimento interminável de deuses, considere Hitchens, leitor: “o que pode ser afirmado sem provas também pode ser rejeitado sem provas”. A ciência não deve perguntar se os deuses existem, mas por que eles existem em nosso cérebro.

Dean conclui a obra: habitamos simultaneamente várias localizações dentro do continuum irracional-racional. 

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