sábado, 7 de junho de 2008

Desanunciação

A persistência deste eu me intriga com a vida. Quis expressar-me sem pressa ou sossego e alentar uma fortuna: sou médio e alegre palmoso nas fábulas têmpero nos ofícios, frenoso até aonde; já ela é séria sempre toda até mesmo muda em flor seu pecado é a paixão, fatorial, seu semblante desvia rios e raios. Concluo que ela é média mas costuma me aniquilar. Estacionário espanto ela se aproxima em ondas sólida brincança, programa total. A persistência de um qualquer eu me intriga.

Brainstorms

Daniel C. Dennett empreende uma viagem pelos meandros da mente e da psicologia, de um ponto de vista filosófico. Está consolidada certa tradição filosófica que nega a existência do mundo, de mim e de você, sólido leitor, não importa o que eu e você pensemos disso. Não existiria um mundo real, apenas representações (quiçá “interpretações”) de mundo, culturalmente determinadas. E seria impossível, em princípio, distinguir entre duas interpretações, tão diversas quanto possível, não importa quão honestos e competentes sejam os intérpretes. Well, a “interpretação” paquistanesa da bomba atômica guarda notória semelhança com a inglesa ou a soviética, mas esses detalhes não devem fatigar nossos filósofos, que se absolveram de dar uma espiadinha, ainda que ocasional, no(s) mundo(s) à sua volta. Aprendemos, com Zenão de Eléia, que o movimento é impossível, e muitas outras coisas aprendemos desde então, com Kant, Wittgeinstein, Gödel e tantos outros, que parecem gostar de impor interdições radicais ao que podemos saber ou provar. Deduzimos, de tantos “impossíveis”, o sagrado direito de zombar desses senhores que vivem tentando submeter todo o universo a uma de suas manias. Dennett não entra nessa roubada. Mas ele chama a si os raios ao falar daquela “cousa” que não pode ser mencionada. Sem meias palavras, deita falação sobre o livre-arbítrio, último e muito avariado reduto do pensamento religioso. Ocorre que Dennett não escapa do costume filosófico de enquadrar o pensamento dos colegas em is­mos, e os enquadrados não se acostumam a suas celas no espaço lógico da discussão. Daí que vivem organizando rebeliões, pulando de um ismo a outro sem a menor consideração pelos leitores, que não têm como acompanhar essa fatigante dinâmica. Ora esses ismos são meras fachadas, não muito sólidas (algumas não passam de riscas de giz no chão do pensamento, à moda da trilogia de Lars von Trier), e mesmo o enquadramento em vários ismos simultâneos de forma alguma garante que o enquadrado não dê a volta pelos fundos e reivindique uma nova liberdade, insuspeitada, para si e suas idéias. Do pouco que entendi de seus ensaios, concluí que o problema do livre-arbítrio é falso e inofensivo. Apenas um grande mal entendido. Não entendi muita coisa, como se vê. (Daniel C. Dennett, Ensaios filosóficos sobre a mente e a psicologia, Unesp). P.S: A verdade, dizem os neurocientistas, é que as decisões ditas "livres" são tomadas microssegundos antes de se apresentarem à consciência. E isto já pode ser rastreado. Livre arbítrio é outras das ilusões herdadas da idade média.

Templo na Tailândia

terça-feira, 3 de junho de 2008

Albatroz

Carlos

Carlos era uma boa pessoa. Escreveu uma biografia, em que não ambicionou se ater à estrita verdade. Declaro não lhe guardar rancor. Esta não é uma biografia, mas pretende servir à memória de Carlos, agora que ele não está mais entre nós. Infelicitava-o ataques de tédio, falta de dinheiro e enxaquecas. Rechaço as afirmações de que Carlos era limitado intelectualmente. Ele apenas não sentia o chamado da perspicácia e da consistência. Seus pensamentos eram modestos, davam voltas e quase sempre tornavam ao ponto de partida, amedrontados. Suas relações com o vernáculo eram difíceis. Em várias ocasiões presenciei injustas hostilidades contra a gramática. Acreditou em Fernando Collor, nas guerras petroleiras dos Bush, em duendes; lia Paulo Coelho. Até Kasparov lê, que se há de fazer? Esteve no hotel Glória, no Rio de Janeiro, pouco antes do acidente. Despertou sincera e profunda antipatia logo ao chegar. Não só dos funcionários do hotel, mas também dos participantes do simpósio. Espontaneamente, e sem a concorrência de um só gesto de Carlos, os funcionários do hotel entraram a odiá-lo. Desde os porteiros, até os funcionários do caixa (com quem jamais falou), passando pelas camareiras (que pouco o viam), eles intuíram que sua obrigação imediata era o ódio. Antigas desavenças foram esquecidas; inimigos de quinze, vinte anos deram-se as mãos, unidos no projeto maior de afrontar hóspede tão gostoso de odiar. Ninguém sabe por que era tão gratificante odiar Carlos. Ele não era arrogante, não tinha sucesso na vida, cumprimentava até os mendigos que passavam do outro lado da rua, não era bonito (Deus sabe quanto Carlos não era bonito), nem rico. Mas ninguém que o conhecesse deixaria de considerar: “eu tenho de odiar esse manezim!” Ex-funcionários, em cujas escandalosas demissões foram negligenciadas verbas indenizatórias – e que haviam jurado incinerar o hotel – de repente telefonaram oferecendo seus conhecimentos à casa para fazer sofrer o nosso Carlos. Não se sabe como Carlos desenvolveu esse dom, de despertar iras assassinas no mais pacato interlocutor. O leitor pode pensar que Carlos não fazia o menor esforço para ser amado ou, pelo menos, aceito. O paradoxal é que não fazia outra coisa na vida. A razão das dificuldades de Carlos, arrisco dizer, é que ele vivia além de suas posses afetivas. O aspecto pouco animador de sua vida interior talvez residisse, justamente, nos gastos anímicos exagerados, empreendidos no afã de ser aceito. Diversas vezes tentei ajudá-lo. Carlos não era de perseverar. Mal percebia dificuldades, corria a se refugiar em livros de auto-ajuda, e nos insossos programas de tevê; acossado pelas asperezas da vida, entrava em devaneios; sonhava mundos amenos, mais simples. – Essas fugas te consomem – tentei alertá-lo. Em toda a vida freqüentou diversos esquecimentos. Esqueceu como foi sua infância, de escassos encantos; esqueceu a escola em que estudou, a cidade em que cresceu; os amigos, que o perderam antes de mesmo de serem esquecidos. Esqueceu as surras que levou ou empreendeu, os tombos; esqueceu as namoradas unilaterais dessa mesma infância, e as felicidades que a visitaram, intermitentes. Carlos era generoso, mas pouco podia fazer para mostrar-se. Era um desvalido. Sua mulher o abandonou, assim que pôde. Os filhos o abandonaram, assim que puderam. Foi feliz com outras mulheres, que não foram felizes com ele. As decepções cumularam-no, sem prejuízo do bom humor, que lhe caía bem. Torcedor do Flamengo, mas principalmente de Zico, Júnior, Leandro e Éder, visitou a Gávea; participou de um transe coletivo no Maracanã. Naquele domingo, as hordas chegavam de todos os lados. A Zona Norte forneceu carregamentos dos mais exaltados torcedores; o Livramento, o Adeus, o Dona Marta: de toda parte eles desciam, varados da necessidade prévia de humilhar o adversário. Do Caixa d´Água baixaram varões exemplarmente motivados; munidos de foguetes – que poderiam, sem dificuldade, trazer embaraços à VI Frota – via-se quanto eles acreditavam no time. O Maracanã tremia em ondas, entregue aos movimentos das massas. Já nem importava o que os jogadores faziam em campo, mesmo porque, da arquibancada, pouco se distinguia além de formiguinhas uniformizadas correndo aleatoriamente atrás de algo, de qualquer forma invisível. A torcida bastava a si mesma, munida de radinhos, mantendo-se informada dos acontecimentos no remoto campo. Se os soldadinhos de chumbo se reuniam no centro do campo, alguém passava a senha, e a comemoração tinha início. A princípio, as torcidas vacilavam sobre quem tinha feito o gol, então ambas se levantavam, eufóricas. Depois de alguma apreensão, permeadas de histéricos desmentidos pelo rádio, e na impossibilidade de se saber quem tinha marcado (se é que um gol se produzira) chegava-se a um acordo, e a torcida (do Flamengo, por exemplo) arrogava-se o direito de saborear aquele gol, tão necessário. Foram 93 minutos desde o nada até a glória incandescente. Armam-se os foguetes, acendem-se as piras, transbordam cascatas de rubros fogos, a torcida erige deuses, transida de furiosa felicidade. Em meio a ela, Carlos, oscilando junto com a arquibancada, num encapelar uniformizado, enquanto lá embaixo os jogadores já se dirigiam a suas ferraris. Consumada a apoteose popular, cada carlos devia se resignar a sua respectiva insignificância. O nosso exerceu diversas soberbas. A mais lembrada é sua humildade. Custava-lhe falar de si mesmo; não consentia que outros em sua presença o fizessem. Era um notório defensor da abolição dos títulos; empreendia filantropias desinteressadas, o que só aumentava o rancor que lhe votavam os amigos. Lia distraidamente e sem compromisso. Não favorecia negociatas, conchavos, e outros bons negócios. O que não o isentava de ser usado nesses mesmos conchavos; de ser instrumento da perfídia alheia. Carlos exerceu soberana irrisoriedade. Não há um único episódio, um único móvel de sua vida que exorbite o irrisório, o ordinário. Quando se formou (em direito); quando operou o joelho; quando casou; quando nasceram-lhe os filhos; quando salvou crianças da fome: essas coisas, consideradas em si mesmas, alcançavam especial grandeza. No que dissessem com Carlos, encolhiam, encolhiam e se perdiam nas cavas insondáveis do irrisório. Empreendeu esforços heroicos para conferir totalidade a seus dias; alimentou e cuidou, anonimamente, de um batalhão de órfãos, desistiu de seus sonhos, em prol dos sonhos dos filhos. Essas iniciativas implicaram na felicidade, na fortuna alheia. No que concerniam a Carlos, tornaram-se memórias de gris irrisoriedade. Não se deve confundir irrisório com efêmero. As coisas mais importantes da vida podem ser efêmeras: o sorriso de uma mulher ou de uma criança; a festa de casamento; a palavra amiga; a mão de carta redentora; o lampejo azulado antes do raio. Que há de mais efêmero (e mais importante), que o sim de uma mulher? Que nunca seja irrisório. Havia algo em Carlos que eu não saberia figurar: em português é usada a palavra tristeza, sem ser inteiramente. Não consentirei o solecismo depressão (o que aborreceria a memória de Carlos), não. Todo o Carlos engenhava impoluta tristeza, para além de qualquer dor. Comecei a falar de Carlos, cometi alguma indiscrição e vejo que ele se evade, complexo. Não acredito em pessoas complexas. Possa o leitor perdoar essa sinceridade. Não diria que Carlos tinha personalidade complexa. Diria que era acidentado o percurso até seu suposto cerne, e que procurar essa essência seria como procurar o mais modesto rancho no mais remoto sítio num continente entregue ao abandono. Esse traço da personalidade de Carlos, a princípio confundido com improbidade afetiva, descrevia uma variável importante em sua economia mental, persistente. Carlos era triste, sem sê-lo necessariamente. Patrocinou inúmeras causas morais, previamente perdidas. Posicionou-se ao lado dos ianques na estafante guerra chamada Século XX, sem saber que era traído pelo complexo industrial-militar da América, que a empreendera. Guerras de cem anos ou mais não chegam a ser novidade. Novidade foi o culto entusiasmado a filantropos como Hitler e Stalin. Se me pedissem para formular um mundo que não pudesse ser pensado, por contraditório, eu polidamente refugaria. Borges apresenta-nos esta enormidade: um mundo em que só é verdade o que acontece a cada trezentas noites. Isso implicaria que todos os eventos desse mundo, que perdura e portanto precisa sacar somas de realismo e localidade no banco do espaço-tempo, são invariavelmente falsos, exceto os ocorridos ao redor do prazo mágico. Borges não se dá conta, ou não se importa, que não existe mundo sem eventos, e que nenhum mundo de respeito toleraria intervalos arbitrários de veracidade; espasmos existenciais fixados por capricho. Ora um mundo em que tudo fosse mentira seria um não-mundo, o ocioso emprego dos petrechos da existência em uma vasta facécia. Fui amigo de Carlos, não seu confessor. Não saberia dizer, por exemplo, por que ele correspondeu ao amor de algumas moças, e ignorou o de outras, igualmente lindas (fique claro que toda moça que por nós se apaixona é linda). Desde Mônica, passando por tantas paulas, fabrícias e anas, muitas mulheres submeteram Carlos a esforços anímicos, procurando ganhar suas fortalezas ora com carinhos, ora com desdém. Carlos caiu gostoso nas muitas armadilhas que elas lhe prepararam (é de mau gosto não cair nos laços de uma mulher). Com isso, seu músculo cardíaco sofreu inúmeras fraturas; foi estraçalhado por mulheres tranquilas e seguras na disciplina exclusiva de fazer-nos sofrer. Mas isso é secundário. O importante é cair em todas essas armadilhas, insisto. Patrícia, por exemplo, arranjou noivo, só para dilacerar o pobre Carlos, que a essa altura se apaixonara por aquele corpinho, por aquelas duas esmeraldas instantes, por aquela inteligência feminil, de claros pendores para a ira. Ele começara a depender dela para sorrir, para acreditar. Quando soube do noivado, estrelas borradas e trêmulas acusaram o golpe. É difícil antecipar-se à ira de uma mulher. Normalmente, até pensamos que estamos agradando, quando sobrevém a tormenta. Elas chegam de mansinho, muita vez sorrindo, e despejam doses cavalares de desprezo. Apresentam-nos ao noivo; viajam com um cara (você não conhece o tal cara ou, pior, conhece); namoram um amigo; vão estudar no exterior. Saberá, o homem, o que quer uma mulher? Saberá a mulher? Carlos não sabia, desnecessário dizer. Ele as amava; elas sabiam que empolgavam aquele coração. Toda mulher sabe que merece ser amada. Cada qual exige amor inaugural, frescor de flor do campo orvalhada. O melhor é não se demorar para obedecê-las. Carlos não se consentia inteiramente; não era tranquilo conviver consigo mesmo. Pegava em armas contra si. Passava longas temporadas ausente; sumia, fugia para regiões não sabidas da migração anímica; reaparecia muitas pessoas depois, desarvorado, faminto de vivências amenas, de interações gentis. Carlos, como contar-te? Vou dizer só mais umas coisinhas e já finalizo. Carlos estava para receber uma promoção na vida: casaria com uma moça em cuja alma a natureza fora muito feliz. Era dessas moças peritas em convivência: uma verdadeira mulher. Dessas que nos invadem as agruras, os queixumes, trazendo o hidromel do sorriso, aconchegando-nos com palavras quentes e vivificantes. Interveio o destino, não permitindo que todo aquele encanto fosse contaminado pelas artes invejosas do cotidiano. Carlos foi colhido pela noite terminal; juntou-se a estrelas em fuga, e a essa altura talvez alimente a poeira que vai contrair-se para formar novas estrelas. E é assim que hoje seus amigos se lembram de Carlos: como um jardim acolhedor, descansando em eterna sombra. Winston, 9 de outubro de 2004.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Winston

Esta é a biografia de Winston. A rigor não chega a ser uma biografia, dada a carência de técnica e credibilidade. Se concedermos que uma reunião de assertivas provisórias sobre uma pessoa tende a biografia, então estas serão palavras biográficas. Caso contrário, a pensarmos só nos textos canonicamente biográficos, aí estaremos em dificuldades. Muito amigo de falar mal dos outros, Winston não apreciava que dele falassem mal. Avaro, pouco afeito às boas normas da conversação, era considerado deselegante e mal-educado. De ordinário, não chegava a ser grosseiro. Foi visto se apropriando de caramelos em um supermercado; inventou sucatas, logo dedicadas a um ferro-velho. Todos esses sucessos pertencem à infância. Não gostava de coisas simples, embora não conseguisse entender as complexas. Era afetado, pomposo, muito inclinado à retórica e à mofa. Desafinava ao cantar, e parecia não ter compreendido algumas regras básicas de convivência. Desenvolveu avançadas técnicas de arrotar, a poder de muito exercício; aplicado glutão, seus flatos se pretendiam humildes e sinceros. Estudou Direito, e não quis ser advogado. Acabou no serviço público, onde não deixou obra digna de menção. Em 20 anos “dedicados à vida pública”, parece que duas ou três pessoas o chamaram de “chefe”, talvez por engano, mas essas pessoas já foram punidas. É difícil avaliar seu legado. Salvaram-se alguns ofícios. Cada um deles discorda da norma culta em quatro ou cinco oportunidades, e apresenta dois ou três erros de datilografia, cuidadosamente espalhados pelo texto. O fato não é prova suficiente de consumada incompetência. Concedamos um texto do nosso biografado: “Consta minha mesa de trabalho de um balcão curvo, sobre que festejam alguns livros, alguns objetos estritamente irrisórios. Certos papéis exercem efêmera preeminência, até a rendição do despacho diário. Um computador, como chamamos essas obtusas bolachas de silício neste início de século, usurpa o canto arredondado da fórmica bege. Dicionários, cadernos de leis e jurisprudência disputam, apertados, a reta oblonga que se opõe à parede de vidro. Lá fora, árvores tocadas de piedade espiam por cima do muro a triste sina de homens confinados a cubos de vidro e gesso. Sento-me à frente da parte mais fluida dessa desenganada reunião de entidades sem nenhuma afinidade entre si: Sou o funcionário que todas as manhãs invoca a burocracia, sua feroz interdição, sua indústria impotente ante a vida.” Essa mediocridade, essa desnecessária irrisão não edifica nem pode transformar. É emissão unilateral, e agasta. Parece que Winston desperdiçou muitas tardes denunciando a corrupção alheia. De tão secretas, as denúncias eram dirigidas a ele mesmo, e imediatamente esquecidas. Sem entrar no mérito da discutível serventia desse orgulho, não conheço uma única página de Winston dedicada à própria corrupção. Winston gostava de viajar. Fez-se passar por turista em alguns desertos, alguns mares, diversos balneários e várias cidades norte-americanas. Conheceu a Tierra del Fuego; não lhe era estranho o continente africano. Paris o encantou; Natal o acolheu por longos meses. Campo Grande fingia suportá-lo e São Paulo não lhe percebeu a curiosidade. Era dono de um gosto musical eclético, posto não incluir o modismo do mês, música sertaneja e alguns gêneros de música de rua. Não se sabe de onde tirou sua paixão por aviões militares, principalmente caças de alto desempenho, bombardeiros e helicópteros. Gostava também de tanques, foguetes e porta-aviões. Esteve em Cabo Canaveral, reverenciou os deuses saturnos. Julgava que o lançamento de um míssil nuclear intercontinental, por submarino imerso, era a imagem-símbolo da escatológica década de 1980. Guardou a fotografia de um F-15 Eagle “armado até os dentes” iniciando uma corrida supersônica, enquanto ao fundo alguns picos nevados sustentavam o céu do Alasca. Na época, O Eagle era o único caça capaz de superar a barreira do som na vertical, ameaçando as estrelas. O avião de espionagem Blackbird deliciava-o. Decolando, expelia sinistras línguas de fogo, enquanto lá embaixo a base estremecia sob o discurso de seus brutais motores. Apreciava esses solecismos. Winston não cometeu a imprudência de tentar aprender a pilotar aviões, mas fez-se proclamar mergulhador de águas rasas. Fracassou ao tentar a sorte no inglês. Suas frases eram agramaticais; as pessoas facilmente descriam de sua prosódia. Pronunciou algumas palavras em Los Angeles, e foi como se um urso polar quisesse doutrinar cacatuas, arriscando gorjeios; ou como se um pato de repente pretendesse governar baleias. Não que soubesse português. Nessas coisas, era um licenciado, à moda de alguns poetas. Envergonhou-se de todos os candidatos que ajudou a eleger. Muito mais vergonha sentiu daqueles que não chegou a apoiar. Mesmo os merecedores de sua aversão prontamente o desapontaram. Irremediável funcionário público, o Winston nunca deu lucro a ninguém. Nem a si mesmo. Jubilado, deu balanço de quanto fez, e principalmente de quanto escusou-se fazer. Participou das mais tolas negociatas. Foi traído com entusiasmo, invariavelmente, e teve de arcar sozinho com os prejuízos. Apesar de tudo, não se considerava um disponível. É difícil falar dos sentimentos desse moço. Ele quase não os expressava. Não conheço pessoa que, tendo sentido tanto a vida, tenha se evadido tão dramaticamente de denunciar-lhe os gozos, as primícias – e os suplícios. Se ele amou? Ah, se amou... Amou, sem dúvida. Mas é controverso se alguma vez foi correspondido, ou que, correspondido, tenha amado de volta. Suspeitou que algumas vezes foi correspondido, mas não chegou a apurar isto que não degenerou em casamento. Depois veio aquela história de vender a alma. Ninguém sabe o que foi aquilo. Parece que foi uma overdose de Goethe, Mann, Cervantes e Rosa. O que não dá pra entender é como ele pôde sustentar que Dom Quixote vendeu a alma ao diabo. A missão do fidalgo era penar, como penou, o que atenta contra o objeto do contrato: facilidades secretas e antinaturais, acúmulo de honrarias, bens e vantagens, em troca do destino corrupto da alma. Ademais, a recusa do atribulado fidalgo em ir ter às justas de Saragoça é prova de sua inocência, a meu ver. Mas Sancho Pança talvez tenha vendido a alma, e os leitores não foram prevenidos. São conflitantes as versões. Não confio um segundo em Cervantes, ao menos no que diz respeito a Dom Quixote e Sancho. Já Alonso Fernández de Avellaneda, que relato maravilhoso nos fornece dessa dupla de malfeitores! Winston nunca alcançou ser nomeado Sancho; é fato que algumas vezes se pretendeu Hamlet. Deplorava a escassez de recursos essenciais, como fantasmas do pai, caveiras e bruxas. Também os tios careciam de qualquer inveja ou sagacidade. Assistiu, desconsolado, reinos minguarem em toda parte. Mas considerava-se um príncipe, incompreendido senhor de castelos inexpugnáveis. Seu único castelo ficava na XV de Novembro, número 1800, e era freqüentado por rica fauna de traidores e bisbilhoteiros. Ali dava expediente integral, convocava e dissolvia mundos imaginários, retificados das ingratidões da vida. Eram mundos de mulheres incrivelmente acessíveis, e – o que é inimaginável – mais tolas que os homens. E todas se experimentavam em corpos de playmates vertiginosamente perfeitos. Dali partia em expedição pelo mundo real, nem sempre com bons resultados. Lembro-me de quando, por engano ou distração, ele saiu liderando uma passeata que se perdera e passava pela XV de Novembro, a caminho da Prefeitura. A princípio os participantes seguiram esse imprevisto líder. Mas a falta de sintonia, o desconhecimento das divisas ensaiadas, o rosto e nome pouco familiares, e principalmente as crescentes divergências com o ideário resultaram no seu desmascaramento. Não tinha o talento do Cabo Anselmo. Foi expulso da horda e aconselhado a encontrar seu próprio grupo de pressão. Outras vezes foi mais feliz, mas não temos acesso a essas aventuras. Às vezes penso – e uma vez, ao cabo de um grande esforço, cheguei a acreditar – que o preocupava “o elevado custo da confirmação do eu, uma despesa total”, como formulou H. Bloom a respeito do poeta Whitman. Eça de Queiroz deu-nos o personagem Pacheco, que em toda a sua vida nada fizera de relevante. Eça anotou, sem muito respeito: “Pacheco não deu ao País nem uma obra, nem uma fundação, nem um livro, nem uma idéia” e no entanto “tinha um imenso talento”. A mesma observação é válida para João Goulart, o presidente que empreendia e sofria golpes de estado diários. Nesse particular, Winston Silva – “cuja morte está sendo tão vasta e amargamente carpida nos jornais” sul-mato-grossenses – pode ser considerado continuador de ilustre tradição. Carlos, junho de 2004.

domingo, 1 de junho de 2008

Cenários


Lula precisa garantir a derrota de Marta. Não será fácil, tendo pela frente o formidando Alckmim, especialista em perder eleições ganhas.

Hipóteses.
Serra apóia Kassab, mas Marta lhe vai bem. O problema são todos esses alckmistas (Aécio). Se alckmim ganhar, Lula vence tudo que Serra perde. Aécio ganha tempo e pode tirar Serra de 2010 (e da vida pública).

Serra não é nenhum escoteiro.

Em Marta ganhando, por um tempo dará a entender que disputará o governo do Estado com Alckmim, mas, de fato, torna-se o nome do PT para a presidência. É chato sair por aí instruindo os beneficiários de cestas e bolsas a exigir a permanência de Nosso Líder, quando se pode relaxar e gozar.

Lula é o maior surfista do poder em 508 anos de história "destepaíz". Quando foi ultrajado por kollor de m. na campanha de 1989, achei que o eleitorado se equivocara. Com 19 anos, eu não podia ver as imundas patas de lula brotando desde o sórdido mundo sindical. Nem o eleitorado. Então, como eles escolheram? Não sei.

Na verdade lula deixou a intratável hiperinflação para psycho kollor, sicofanta vitimado pelo implacável sarcasmo da história. Quando lula chegou ao poder, recém iniciava-se a maior onda de prosperidade para o País e o mundo. Bastou lula não fazer nada.

lula é o maior especialista em não fazer nada da história.

Se kassab ganhar, Serra se fortalece e tira Aecinho de 2010. Com Marta, Serra despacha o mago e trava as ambições de dois golpistas de ocasião: lula e Aecinho.

Milford Sound

Milford Sound, Nova Zelândia.