quarta-feira, 7 de setembro de 2005

Cena literária

I. Ontem, li as páginas iniciais do Diário de um Mago, de Paulo Coelho. Pelo que me haviam dito, Coelho não é tão ruim assim. Bem, ele é, sim.

Ele começa simulando uma cerimônia “mágica”, onde receberia um montão de poder, enfeixado numa nova espada. Após enterrar a antiga (em Agulhas Negras), prepara-se para apoderar-se da tal espada, mas o “mestre” o impede, pisando-lhe a mão, argumentando com uma suposta sede de poder, ou seja lá o que for. O argumento prossegue demonstrando quanto devemos ser humildes, e que o verdadeiro poder não está em ritos “secretos”, “iniciáticos”, nem em “poções mágicas”, mas em cada um de nós. Quer dizer, então, que não devemos perder tempo com magos e bruxas? E que mais? Será que acrescentar uns duendezinhos ao nosso imaginário nos fará mal?
O livro é tão ruim, mas tão ruim, que terei de lê-lo até o fim. Nunca imaginei um livro assim, genial em sua idiotice. Só agora entendo a onda esotérica que ensorcela o mercado editorial: sua finalidade é proporcionar munição para que escritores de talento façam a justa crítica dos costumes e crenças modernos. À semelhança das histórias de cavalaria à época de Cervantes, os livros esotéricos e de auto-ajuda resultarão lindas sátiras.
É impressão minha ou os leitores estão sendo maldosos, ao fingirem que gostam dessa subliteratura? Bem examinada a questão, vê-se a necessidade de não desdenhar Paulo Coelho e similares.
II.
Continuei a leitura (sempre na livraria). Realmente, uma linda estorinha, hein, seu Paulo? Quase fui às lágrimas com os rituais sugeridos pelo mago. E com a épica caminhada até Santiago de Compostela. Vamos devagar, vamos seguir de pertinho nosso bruxo (é o único de que dispomos). Ele começa numa cidadezinha francesa. Pega umas coisas com uma francesa rabugenta e vai em busca de seu guia. Encontra um cara de olhar enviesado (estranho, se preferirem – já aderindo à mania do autor de explicar o óbvio) que lhe responde de maneira criativa. Pela resposta, fica clara a insinuação de que o cara é um demônio, ou coisa que o valha. Mas Coelho vai acrescentando, acrescentando detalhes até revelar que aquele cara era mesmo um demônio. Não contente, pergunta umas cinco vezes ao guia, que tinha afugentado o nosso demônio, até receber a confirmação, com todas as letras, de que aquele cara é um demônio, e que outros demônios seriam encontrados no caminho, um caminho repleto de demônios, se é que o leitor entende. Fiquei desolado. Aquele demônio era o personagem mais simpático e verossímil da estorinha. Até ali eu vinha me segurando para não desejar que um assaltante liqüidasse o Coelho, nem que seja para me livrar desse chato. Daí me surge um personagem capaz de algumas palavras que não soam absurdas nem infantis. E é logo ordenado demônio. Não me conformo. Levei o livro mais a sério que o recomendável. Resolvi seguir à risca os exercícios espirituais propostos, e comecei com aqueles contorcionismos e auto-sugestões. Ocorreu-me aprofundar a tentativa: seguindo o manual um tanto livremente, dei um paço à frente, arrisquei três pulinhos, enquanto exclamava: "tô feliz! tô feliz! tô feliz!" Data desse momento o início de minhas ideações suicidas. Ora larguei o livro, e sinto uma entusiasmante necessidade de espancar o Coelho.

Campo Grande, 20 de junho de 2005. 

III. R.K. Rowling tem uma interessante série de livros cujo único mérito é ter sido criticada por Bento 16. Lembro-me de uma chamada, em uma revista, que atribuía genialidade a Rowling. A vendagem desmedida, para além de qualquer razão, não é nova, nem inexplicável. Antes dela, outras pessoas venderam água com açúcar, em doses oceânicas, sem qualquer constrangimento alfandegário ou fiscal. Rowling explora a chateação do misticismo moderno. Mistura bruxos, fadas, duendes (nem sei se há duendes e fadas, já que nunca tive o privilégio de ler a doutora Rowling, mas seria ridículo uma historinha com bruxo mas sem fadas e duendes, né não, leitor?), numa linguagem tão decidida a aborrecer que espanta os leitores não terem expedido um justo fatwa contra ela. O que mais agrada é que ela chama todos os não bruxos de trouxas. É isso aí, seu trouxa.

Viagens, fotos e fatos

1. Salvador. De uma viagem recente a Salvador pouco ficou. O bastante para saber que é uma cidade grande e de escassos encantos. Suas igrejas exibem negro suor, e seus interiores ostentam fatigados dourados. A grande maioria estava devidamente fechada. O entorno é infestado de pedintes particularmente persuasivos. Eles “não seqüestram, apenas molestam”. O excesso de portugueses nos hotéis não é de grande valia. O elevador Lacerda passou por um banho de loja de gosto duvidoso, e a prefeitura... bem, a prefeitura. Tudo somado, tem-se a impressão de que o carnaval de Salvador tem mesmo de ser muito bão. 2. Porto Alegre. Muitos churrascos. Alguns museus. Casas de porta e janela. No centro, um ateliê de massas que excomungam todas as fomes, por mais sabidas. Dos passeios por suas ruas não detectei nenhuma felicidade importante, mas presumo que os olhos estavam excessivamente armados por espanholadas e outros êxtases ibéricos. O Guaíba é um lago, não um rio, me informaram. Que seja. Os navios seguirão fiéis a seu porto. 3. Gramado e Canela. São uma só cidade. Apenas resolveram ter dois museus de carros antigos. Em todo caso, oferecem “café colonial”, inconvincente desde o nome. Em Canela ergue-se suntuosa cachoeira, a verter de um um balcão luxuosamente guarnecido pela mata, que é amiga de uma cava. Da cadeirinha do teleférico, vi: livre, no imponderável abismo, a água se milparte e queda por ali, brincando de céu. Frondosa alegria. Com um pouco de boa vontade, descobrem-se novos usos para o gauchismo. 4. Do ato de fotografar. Afirmam alguns o suposto compromisso da fotografia com a verdade, invariável, num momento em que a pintura fugiu para o voluntarismo da fantasia e do abstrato. Seguro que a fotografia tem seus vieses. Também ela é interpretação do mundo, não seu fiel reflexo bidimensional; também pressupõe paixões, preconceitos e formas de representar. Com excluir tudo o que não escolheu para motivo, o fotógrafo subordina o mundo todo a uma de suas paisagens. Ao fotografar, procuro fatigar o menos possível o mundo, não incomodá-lo em demasia, extraindo só o estritamente necessário. É verdade que assestei, em mais de uma ocasião, minhas lentes contra o sol, para sabê-lo. Que importa a decepção dos resultados? Recomeço do zero a cada clique, daí meus erros, sempre inaugurais; daí não haver o menor risco de eu vir a surpreender o mundo transigindo em seus fundamentos. Por três vezes estive fotografando em Nova Iorque, Buenos Aires, Santiago, Jericoaquara, Barreirinhas, Fernando de Noronha, Abrolhos; por duas em Madri, Barcelona, Sydney, Auckland; e inúmeras vezes em Bonito e São Paulo. Que triste a sina de um homem condenado a repetir-se... O pôr-do-sol de Noronha é de poderosa eloquência, e gabarita a tarde. O de Jeri escandaliza todas as tristezas; abrasa e consuma o espírito. A maluquice do pôr-do-sol de Calafate e Natales, todas aquelas australidades, induz presságios e fome nos portos. Sou dos silêncios, e também proferi largos passos sobre cidades e desertos. Vou fotografar mais um pouquinho, e depois paro. Campo Grande, 7 de setembro de 2005.

terça-feira, 6 de setembro de 2005

Mais viagens

Dia desses, voltando de carro de Corumbá, passei pelo pantanal. Lagoas intermináveis vigiadas com fervor por jacarés, ciosos de suas responsabilidades. São pequenos, mas muito disciplinados, com representação abundante em cada lagoinha. Eles gostam daquelas ilhotas, bem no meio da lagoa, onde o sol é bem-vindo. Depois avistamos os pássaros. Alguns tuiuiús rasaram vôos paralelos à trajetória do veículo, sustentando majestades próprias de aves de mais de dois metros de envergadura. Avistei, ainda, íbis e colhereiras, algumas pintadas de rosa, e também aves outras que nem sei o nome. Há uma grata infestação de ipês na pantanal, grassando cores contra um céu sujo de queimadas. Os roxos e os amarelos predominam, às vezes numa linha de centenas de árvores, que enfestam colinas e corixos. O pantanal bem vale um sobrevôo, fotografias, memórias e... respeito.

Correspondência (uma publicação indiscreta)

De todas as minhas andanças, conservo as mensagens que os amigos me mandam, e algumas das que envio. Esta o amigo Júlio enviou em tempos. Eu estava em Belo Horizonte, e qual não foi o susto ao lê-la, num Shopping: “E aí, meu? De volta pra terrinha? Eu continuo estudando o roteiro e me divertindo com os novos aspectos culturais que aprendo. Imagine só, que uma das grandes diversões que um turista pode usufruir no Japão é, simplesmente, sem maiores delongas: Brincar de fudê japonês!! E você pode fazer isso até no Gozá!!! Mas creio que esses termos merecem um esclarecimento: FUDÊ é aquele pincel japonês, de pêlos de marta, usado para desenhar as letras do alfabeto Kanji, com tinta nanquim sobre folhas de papel de arroz. Como eu disse, deve ser divertido brincar disso. Principalmente se for sentado em cima de uma tradicional esteira de juncos japonesa, que lá é conhecida como Gozá. Tenho aprendido esses aspectos fundamentais naquele montinho de livros que mostrei para você. O legal é que sinto como se a viagem já tivesse começado! Me conte as novidades. A propósito, estou inscrito no Orkut, e lá tem uns grupos de discussão interessantes sobre viagens. Estou preparando a do Peru (26 de agosto a 9 de setembro), mas estou muito temeroso que a Varig quebre até lá. Nós e essas merdas de tickets smiles!!! Um grande abraço, Júlio César” Respondi, apreensivo: “Grande amigo Júlio: Receio não poder acompanhá-lo nessa história, preocupante, de fudê japonês. Sinceramente, nunca fiz isso em toda a minha vida, e não seria agora que iria começar (por mais que alguns experimentem e gostem, tendo em vista os óbvios apelos do Gozá). Você deveria saber que os japoneses, por natureza um povo ordeiro e respeitador, talvez não queiram se abrir a uma experiência tão extrema. Ao fazê-lo, você os estaria invadindo em seu íntimo, e isso não haveria de ser tranqüilo, tenho certeza. Numa sociedade tão fechada, não há espaço para essas liberdades todas. Em verdade, penso que raramente você conseguiria convencê-los a se deixar penetrar no que têm de mais valioso, o mais bem guardado segredo daquela cultura milenar: a arte de fudê japonês! E não adianta se deixar levar pelas idéias moderninhas, dessas que dizem que, numa viagem de férias, ficam suspensos os preconceitos e as barreiras para abordagens mais ousadas. Na hora h, intimidado pelo portento da empreitada, o pobre japonês acabaria se subtraindo ao fudê (e você ficaria na mão). Já esse negócio de pêlos de marta pode ser interessante. Conte mais detalhes, por pavor. Quanto a sua viagem ao Peru, tranquilito, hombre! A Varig não vai quebrar. Ela apenas está em recuperação judicial (parafraseando o Simão: rá, rá, rá). Eu também pensava que ela ia quebrar, mas fui à Europa e voltei, como se vê. Estou até planejando uma viagem à Venezuela, com minhas gostosas milhas Varig... Tenha fé, irmão, e (sobretudo) reze muito. E, por favor, não entre nessa de fudê japonês. Em nome do que há de mais sagrado, pare imediatamente com isso. Grande abraço, Gerson.” Dias depois ele respondeu, num tom inicialmente tranqüilizador: “Amigo Gérson, Seguirei seu conselho. Nada de fudê japonês! Devem existir outras formas mais dignas de Gozá! Interessante essa sua idéia de viagem à Venezuela. Sai de graça para conhecer Aruba, Bonaire e Curaçao a partir de lá. Recomendo.” Mas aí veio uma nota alarmante: “A boa notícia é que eu estou fazendo orações para uma divindade japonesa, para que nos brinde com boa sorte e uma jornada gloriosa na terra do sol nascente. A divindade se chama Bishamon, e é muito respeitado no Japão. Aí vão alguns detalhes sobre o grande Ser: Bishamon É o deus da dignidade e da riqueza. Por ser um dos quatro guardiões do budismo , usa trajes de guerra e segura uma lança. Embora chamado guardião do tesouro, não deve ser interpretado como de bem material. O tesouro no caso, são os ensinamentos do Buda. Bishamon é representado também segurando nas mãos um pagode em miniatura, que é o templo das orações. Ele é o promotor dos missionários das palavras de Buda e nesse sentido tem atribuição de guerreiro. Não deve ser confundido com o deus da guerra, Hachiman, este sim, o protetor dos samurais. SORTE: ter a figura de Bishamon em casa, afugenta ladrões e preserva os bens da famílias. (Fonte: www.desa.com.br - o site dos dekaisseguis) Um grande abraço, Arigatô Gosaimasu Júlio César” Escrevi de volta, acreditando que tudo estava perdido:
“Júlio: Por mais respeitada que seja essa entidade japonesa, detém o passo, considera um momento. Lembrai dos mais elevados princípios cristãos que sempre o nortearam e formaram-te o caráter.
Pra que pôr tudo a perder agora, justamente na antevéspera da viagem àquele pais asiático? Essas entidades desconhecidas, sabe-se lá com que orientações... Melhor evitar.” Como o assunto foi esquecido, o Júlio deve ter conseguido superar essa queda, momentânea e sem conseqüências (e mais apropriada para adolescentes), esse fascínio por Bishamon...