sábado, 20 de setembro de 2008

Fausto

Vendo minha alma. Está novinha, quase sem uso. Vendo minha alma. Já dela não careço. Enquanto fui religioso, me serviria para habitar o céu; pretendia estreá-la no inferno. Ora está sem serventia. Não conheço os recursos, as funcionalidades de uma alma. Estou vendendo, não preciso mais. Se com a alma somos humanos, se com ela amamos, é controverso. A minha eu vendo, não sei a sua. O Fausto de Goethe é um dândi aborrecido; o Fausto de Mann é obsceno e resignado. Ambos se amarguram no previsível final; ambos sofrem de imperdoável irrealidade. O Fausto do Rosa – o jagunço Riobaldo – fatigador de desertos em tudo misteriosos, firmou pacto envergonhado, conseguiu a chefia do bando mas perdeu Diadorim. Vendo minha alma por preço justo, não por suborno em espécie. Se a venda é insensata, folgo com a companhia. Ao contrário da maioria, não acredito em castigos ou prêmios eternos. Vendo minha alma sabendo que contrato algum perdura ou prevalece. E por havê-la sem uso. Seu funcionamento silencioso, comparável ao de Deus, me angustia. Vendo minha alma, não meu corpo. Num mundo como o hodierno é até preferível vender logo a alma; não se demorar donzelo enquanto outros enriquecem ou assumem cargos importantes. Vou depressa vender-me. Depressa lucrar sem causa. Steven P. Morrissey, popstar inglês, cantou (em Maladjusted) que Satã rejeitou sua alma. Sem conhecer as tratativas que culminaram nessa cizânia, nem a extensão das ambições dos desavindos, penso que a virtude está com Satã. Eu jamais confiaria num cara que “perdoou Jesus” (conforme o cantor revelou, a um mundo incrédulo). Morrissey não tinha esse direito, não sem nos consultar (a mim e a você, ótimo leitor). Disse Borges, a respeito de Sturluson: “(...) famoso como historiador, (...) poeta, duplo traidor, decapitado e fantasma. (...) Dura palavra é traidor. Sturluson era – talvez – um mero fanático disponível, homem dilacerado até o escândalo por sucessivas e contrárias lealdades.”¹ Talvez seja o caso de lembrar o homem swiftiano, de “memória curta, que se faz necessária conforme as várias ocasiões que de hora em hora lhe surgem para diferir de si mesmo e jurar pelos dois lados de uma contradição”. Um homem acossado por lealdades contrárias me parece compreensível. Conheço muitos. Tenho amigos com lealdades contrárias e, curiosamente, não sucessivas. Nunca os vi escandalizados, mas talvez a dificuldade esteja em mim. A circunstância fortuita da decapitação também é tranqüila. Quão dura acusação a de ser fantasma! 18.5.2004 Paulo Coelho, nosso chefe literário no momento, fez um pacto com o Diabo. Solene, um pacto desses, para ser verossímil, deve ser vazado em carmim. Caneta Bic vermelha, no caso de Paulinho. Goethe deu tratos à bola para livrar a cara, e a alma, de seu Fausto. Paulinho só precisou dar uma voltinha, convencer-se da tolice e, no retorno, cancelar o pacto, unilateralmente.
Quê que você fez, Paulinho?! Não vê o transtorno que causou? Não dá mesmo para confiar em ninguém... ¹ Obras completas, p. 408, tomo I

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