quarta-feira, 18 de janeiro de 2006

Praga, um comentário

Alguns querem ver Paris em Praga; outros, Viena. Enganam-se. Praha, com suas mil torres, passeia por muitos estilos, está acima dessas simplificações. Em Praga Einstein teria se encontrado com Kafka. Einstein formulou a Relatividade Especial em 1905, no casa dos vinte anos, e a Relatividade Geral em 1915, dentro, portanto, da temporada passada nessa cidade, entre 1911 e 1912. Praga também abrigou Mendel, o obeso monge que cultivava ervilhas e morreu sem ver-lhe reconhecida a paternidade de uma abordagem estatística da hereditariedade que depois veio a dar na genética. A cidade viu florescer o gênio de Tycho Brahe, bem antes, numa sólida demonstração de tradição cultural. Quer a tradição turística que Einstein juntava-se a Kafka num café no centro dessa cidade, na época mais fecunda do escritor tcheco, de A Colonia Penal, O Castelo, e O Processo, entre outros delírios severos. A Relatividade, com sua descrição essencialmente geométrica do universo, postula que a gravidade é uma deformação no tecido espacial causada pela presença de corpos maciços. Previa que a luz vinda de estrelas atrás do sol, por exemplo, seria empenada nas bordas do mesmo e chegaria à Terra - consta que essa previsão foi confirmada, em Sobral, num eclipse solar em 1918 -. Assumia que a luz tem peso e não caminha em linha reta. Desnecessário perquirirmos se a teoria está certa. Newton, com seu sistema mecânico quase perfeito, descreve o mundo com precisão de uma parte por mil. A Relatividade é precisa em uma parte por milhão, e a Mecânica Quântica, grosso modo, faz previsões válidas em uma parte por bilhão de unidades. O problema é que, virtualmente, nenhum postulado quântico faz sentido. Todos parecem ter sido inventados por um ficcionista licencioso e demasiado imodesto. Kafka postula mundos insuportáveis, em que as pessoas são peças de uma burocracia total, sórdida e assassina. Os personagens, agindo com estranha naturalidade, prodigalizam torturas uns aos outros, tudo à sombra de uma autoridade invisível, intolerável e malvada. Josef K., executado sem ter acesso ao processo, nem saber qual teria sido o delito ou a acusação, é móvel da mais devastadora acusação contra o gênero humano (Machado de Assis também o faz, sem a mesma monumentalidade, quando retrata a escravidão). A mim, o cerne dessa culpa foi formulado por Anna Arendt: a banalidade do mal. Pouco importaria Josef K., ou Samsa, ou outro torturado personagem do brutal mundo de Kafka. Pouco importaria seu sofrimento, não fosse o ruinoso incômodo de nos identificarmos com esses fiapos humanos. O pobre ratinho, apaixonado pela diva ratazana, também a denuncia como uma lamentável fraude musical, e por isso sofre, e com ele sofremos. São muitas as aflições em Kafka, uma escrita poderosa, de precisão e impiedade militares. Às vezes penso esquecê-lo (mas não o Khmer Vermelho). Quem sabe consiga, e os sonhos voltem a ser só sonhos.

2 comentários:

Anônimo disse...

Bela aula de conhecimentos gerais dentro desta cidade que desconhece o novo o velho o mortal a ciencia a filosofia e o tempo.

Manelim disse...

Pois e', Praga e' uma cidade fascinante, e muito acolhedora (afora o frio).

E' tambem a capital da regiao onde inventaram a cerjeva pilsen...

Espero retornar um dia...