domingo, 30 de janeiro de 2005

Fragmentos

Breves impressões de uma viagem. 1. A alemã Havia uma alemã no hostel Dickson, em Puerto Natales. Não digo que ela era feia (isso poderia magoá-la). Tinha a beleza de um panzer em chamas. Tudo ela pedia à moça da copa: mais chá, café, biscoitos, pães, manteiga, sopa, tudo, e seus pedidos se pareciam muito com ordens. A moça trazia, mas para mim, que não me atrevia a pedir. 2. A bota No refúgio Chileno, próximo à base das Torres del Paine, um irlandês pega a bota usada no dia anterior e derrama seu conteúdo no lixo, educadamente. Foi o primeiro caso de chulé em pó em toda a minha experiência de mochileiro. 3. O incidente do chinelo. Após calçar meu tênis impermeável, deixei meus chinelos aos pés da cama, pronto pra sair pras montanhas. Por algum motivo, resolvi arrumá-los de outro modo, de um modo, digamos, menos infantil. Chutei-os para perto da porta, fazendo-os cair ao acaso. Não me convenceu esse acaso, e a distância até a cama tornava insustentável sua localização no quarto. Ninguém que tivesse simplesmente calçado um tênis as deixaria assim. Fiz alguns ajustes na posição relativa dessas sandálias, o que resultou bastante artificial. Agora eu tinha um problema: não sabia mais a posição original, aquela na qual deixei os chinelos sem pensar no assunto, e quanto mais eu mexia, mais inverossímil ficava sua posição. As coisas não podiam ficar assim. A moça da limpeza poderia suspeitar de minha virilidade ou, pelo menos, que eu não era capaz de governar sandálias com o necessário pulso firme. Precisava encontrar uma posição natural, ao mesmo tempo despreocupada e isenta de manobras calculistas; ou pelo menos uma posição neutra, que não denunciasse toda a hesitação e temor. Mas tudo que conseguia era insatisfatório: chinelas rigorosamente paralelas? Certamente que não. Nada de paralelismo. Fora da geometria de Euclides (ou seja, no mundo real), não existem paralelas e chinelas assim ensejariam fortes suspeitas. Por outro lado, já tinha visto que jogá-las ao acaso também não resolveria, porque elas ficariam desarrumadas demais, como se intencionalmente alguém quisesse esconder suas intenções (certamente horríveis). Ademais, ninguém deixa chinelas em tão lastimável estado. Diabos! E agora? É fato que, em física quântica, pode-se embaralhar duas partículas (dois elétrons, por exemplo), de modo que quando a função de onda de um deles colapsa num estado determinado, o estado do outro, embaralhado, passa instantaneamente a ser definido (é a única interação instantânea permitida pela Física). Os jornais desse início de século vendem essa propriedade como teletransporte de matéria. Trata-se de teletransporte de informação, apenas. Seja como for, é pouco provável que eu conseguisse embaralhar essas sandálias – ordinárias – e não está claro qual o proveito dessa operação. Pensei em escondê-las na mochila, mas vi que a manobra levantaria mais suspeitas: quem iria guardar chinelas na mochila, se ainda ficaria vários dias hospedado? Depois de muito infortúnio e sofrimento, deixei as malditas chinelas do jeito que elas bem entendessem, e fui para o meu passeio, que o ônibus tava esperando, lá fora. Puerto Natales, Janeiro de 2005. 4. O incidente do tênis. Um cidadão (cujo nome é de prudente omissão) vinha angustiado com os tênis, depois de 4 horas de caminhada no King Canyon, e precisava dar uma folga aos pés. Pois aliviou-os, começando pelo esquerdo. Mas, ai! Dos germânicos aos mexicanos, a reação foi imediata. Por mais formoso e delicado que seja aquele pé, as narinas dos tchecos são ainda mais. Uma hora depois, quando devagarinho arriscou tirar o tênis restante, o ônibus veio abaixo, e quase se dissolveu a excursão. - Jesus Cristo! está gangrenado? – perguntaram os suíços, com precisão suíça. Inconformada, a italiana pediu o confinamento do infrator. - entramos em Woomera? Voltaram os testes? Detonaram outra bomba? – disparou a americana, não sem espanto. 5. O beliche. Um sujeito rabiscou no estrado da cama acima: I love swiss girls. Outro, um tipinho idiota, riscou girls e escreveu: chocolates, canivetes, relógios, queijos, pães... Pães! Ele disse pães! Que coma o pão, o bobão. 6. Um rio internacional Nosso guia no Parque Nacional Torres del Paine explicou-nos que o rio Pingo ganha esse nome quando ingressa ao Chile, vindo da República Argentina. Lá, é conhecido como “el Río de las Biscachas”. Não o localizei em meus mapas; ignoro se a informação é confiável, e se a grafia está correta. Também não tenho certeza se Pingo é o nome no Chile, vez que minha memória costuma se divertir às minhas custas. Me agrada mais o nome argentino. 7. A Viagem (um conto kafkiano). Carlos chegou debaixo de chuva à cidade. O ônibus precisou furar o bloqueio da chuva forte, sob frio. A cidade se preparava para dormir. Não teve dificuldades para conseguir acomodação, num albergue bastante barato. Os vinte pesos eram uma pechincha, para um quarto exclusivo. Era modesto, com uma cama de casal, pequena, e uma gaveteira, pequena. Nada de guarda-roupa, nada de banheiro privativo. Na porta, diversos ganchos para pendurar as roupas; no chão, um carpete, indevido. Havia uma janela, por onde eram admitidas mensagens do sol até às 23 horas. Após, vogava no céu uns cacos de luz, moribundos, e as pessoas de bem não lhe davam crédito. Para o dia seguinte, planos de grandes passeios. Há vários sítios turísticos naquela região, que atraem turistas do mundo inteiro, principalmente da Europa. Conhecia os principais, por um guia comprado num sebo em sua cidade. Dados os sítios de valor turístico, existem diversos passeios que os cobrem, com diferentes abordagens: à pé, de ônibus, a cavalo, de barco, avião ou balão. Pretendia começar pelo mais importante, ao qual poderia voltar novamente, se lhe agradasse. Enquanto isso, foi a uma pizzaria em frente ao albergue, que servia chope em grandes canecas. Da calçada, seus freqüentadores pareciam felizes com seus chopões, e os pratos de tira-gosto. Era um chope claro, de fabricação local, razoavelmente gelado, e barato. Foi bem atendido, e sorveu o chope pensando em como seriam os dias seguintes. A expectativa dos passeios era normal, para um recém-chegado, e ninguém duvidava de sua realização. As pessoas que atenderam Carlos prontamente ofereceram passeios, dos mais banais aos mais sofisticados. Nelas, genuíno entusiasmo, ao verem que lidavam com um apaixonado. No entanto, desde o primeiro dia, as coisas não saíam. Carlos conseguia se expressar na língua local, não com perfeição, mas o bastante para se fazer entender, mas nenhum passeio resultava possível. Havia uma moça bonita, muito jovem, que atendia Carlos na agência. Ela facilitava tudo e sorria, simpática. Quanto aos passeios, havia um problema. Esse problema mudava conforme o dia e a hora, e era de difícil apreensão. Ora estava nas intempéries, imprevisíveis, ora em misteriosas mudanças de humor dos guardas florestais ou dos pilotos. No início, Carlos absorveu bem esses reveses, confiante em que tudo fariam para superá-los. Mas, ao contrário das expectativas acalentadas nas muitas horas de solidão no albergue, as coisas não avançavam um milímetro, dia a dia. As promessas, veladas, de que tudo se resolveria, a depender de algumas obscuras mudanças de percepção, se mostraram estéreis. Às escondidas, Carlos travava contato simultâneo com várias agências, e de todas recebia respostas animadoras, de que logo estaria a bordo de um ônibus, a caminho de algum passeio. Mas bastava ele tentar conduzir a conversa para os finalmentes, valores e horários, para ser desconversado. - sabe o que é, não vai dar. Já está completo (não sabíamos que você estava interessado), mas amanhã é certeza, tá? No dia seguinte, Elsa normalmente não era encontrada para confirmar ou não o passeio, e os demais não estavam inteirados. Tampouco se poderia dizer que ela fazia por maldade. Ela parecia acreditar que mudaria Carlos; que o faria pronunciar as palavras certas, do jeito e na ordem certa. Ele queimava de ódio, à vista da injustiça que lhe faziam, sob os mais virtuosos pretextos. Ameaçou, disse que estaria de partida, a não lhe atenderem os rogos. Isso trouxe constrangimentos, especialmente a Elsa, que chorou ante essa incompreensão. “Por que ele se recusa a entender?” Entrementes, tratou de arrumar emprego nessa cidade, para ir sobrevivendo enquanto não se realizava o sonho dos passeios. Apesar dos discursos de igualdade, para clandestinos sobravam os piores empregos, com soldos minguados. Começou a trabalhar num albergue, e o que ganhava mal dava para pagar o quarto e a comida. Mantinha, contudo, boa parte do dinheiro destinado aos passeios, do que não abriria mão. A essa altura, Carlos perdera o emprego em seu país, pela longa ausência, e passava os dias a tentar construir uma estratégia que o levasse para dentro dos parques nacionais, dos passeios. Veio o inverno, e a interdição de parte desses passeios, o que paradoxalmente renovou as esperanças de Carlos. Poderia ser que, à mingua de interessados, e com a necessidade de ingressos nas agências, deixassem-no ir. Mas diversos acontecimentos fortuitos, alheios à vontade de Elsa e dessas agências, frustraram as esperanças. Ora os passeios eram cancelados, ora não estariam disponíveis por dias a fio. Veio um novo verão, e com ele hordas de turistas sorridentes, de todo o mundo. Magoava-o a circunstância de que todos vendiam pacotes para essas pessoas, inclusive Elsa, sem qualquer percalço. Os turistas chegavam e, minutos depois, estavam passeando, nos mesmos lugares proibidos a Carlos. Deve ser dito que Carlos não era maltratado por eles. No geral, tratavam-no com distinção. Muitos gostavam genuinamente dele, e Elsa... Elsa fazia tudo por ele. Quantas vezes ela teve de intervir para que o dono não o expulsasse da agência? Ela também perdoava os muitos casos de ‘infidelidade’, visto Carlos manter contato com quase todas as agências, na vã suposição de que um maior número de pessoas trabalhando na questão apressaria sua solução. Inúmeros telefonemas eram dados; na difícil pesquisa de passeios, era-lhe oferecido cafezinho, água e até lanche (ocasionalmente). Às vezes, os atendentes ficavam até mais tarde ao telefone, em negociações, e faziam enérgicos esforços para embarcar Carlos, sem qualquer resultado, além de renovadas promessas, para “breve”. Estanque em seu quarto, Carlos anelava rebelar-se contra essa covarde conjura de forças invisíveis. Gostaria de ser forte e mandar tudo ao inferno. Ou então fazer os passeios clandestinos que lhe ofereciam. Enquanto isso, receava. Seus escrúpulos não lhe permitiam desafiar a lei e adentrar sem permissão aos parques. Quanto a ir embora, temia depois se arrepender e querer voltar, tendo aí de reiniciar penosas negociações com as agências e com Elsa. A própria Elsa, também cansada dessa situação, às vezes falava em ir embora para Santiago, em abandonar tudo e aceitar a oferta de um curso de turismo. Mas ia ficando. Um belo dia Carlos acordou zangado. Uma zanga antiga, que vinha lhe consumindo os recessos da alma, e já devorara importantes domínios anímicos. Ele intuiu que devia ir, que não mais lhe aproveitava ficar. Sem uma palavra a Elsa, sem justificar-se com ninguém, ele pediu demissão, fechou a porta de sua pessoa, quitou a conta do albergue e comprou passagem para Punta Arenas. Lá, pegaria um avião de volta para casa. Estava livre. Era todo certeza, e já não sabia sofrer. É difícil saber como Elsa recebeu essa notícia. Ela continuou seu trabalho, resignada com o inverno que instalara em definitivo em sua vida. Campo Grande, 17 de abril de 2005 8. O incidente do ônibus. Saindo de Puerto Natales, tomei um ônibus para Punta Arenas, fazendo o sentido inverso da viagem de táxi que me trouxe a Natales. O caso é que o ônibus estava lotado, e eu não tivera oportunidade de tomar um banho. Sabem o que foi? Sem qualquer culpa de minha parte, sumira minha toalha. Sem toalha, sem banho (é um albergue). Ocorre que eu vinha de um dia inteiro em Paine, muita atividade física, entendem? Tentei roubar uma toalha, na varandinha próxima à bateria de banheiros, mas fui dissuadido por duas sentinelas, ciosas justamente de suas toalhas. Então, lá estava eu. Antes de subir ao ônibus, um cachorro pensou que podia me inspecionar, detidamente, mas eu mostrei que ele estava errado: mesmo para um vira-lata, toda aquela concentração de aromas foi demais. No ônibus, a senhora ao meu lado abanava a cabeça e prendia o fôlego por longos minutos. Toda aquela situação me comovia. “O que será que ela tem?”, perguntava-me. Depois, num esforço maior, ela tomava fôlego, aproveitando uma corrente de ar vinda de fora. Apesar disso, a viagem transcorreu bem. Notei que o motorista açoitava com incomum vigor o acelerador, como se estivéssemos indo em massa ter às portas do céu. Na chegada, comoveu-me o gesto dos passageiros. Espontaneamente, e sem nenhum constrangimento, eles me presentearam com toalhas, muitos sabonetes e até esfregões. A mais empenhada nessa doação era a mulher que se sentara ao meu lado. Aceitei os presentes, doados com tanto amor, e fui para o check in, intrigado com tanto desprendimento. Pus-me a pensar no banho que tomaria, após o vôo, em Santiago. Estava entusiasmado para fazer novas amizades no vôo.

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