domingo, 30 de janeiro de 2005

Rangi

Tomei um ônibus que se dizia magic mas era apenas um ônibus, se bem que animado. Seu motorista (lembro que costumava se chamar Rangi) era um maóri entrado em carnes. Bastará dizer que sua silhueta sugeria que ele fora botado por uma ave gigante e malvada? Rangi era igual de frente, lado ou costas: a mesma linha suavemente inclinada, ganhando proporções épicas no centro. Mas Rangi é gente boa, com toda certeza. Guiou-nos por toda a ilha norte da Nova Zelândia, com grandes proveitos. Primeira parada, a caverna. Em Waitomo estão estacionadas cavernas com vermes que brilham no escuro. Você forma um trenzinho com os companheiros de passeio, cada qual sobre uma bóia (uma câmara de pneu de carro, normalmente. Alguns precisaram de uma de trator, mas isso é irrelevante para a economia geral da composição). O vagão que ia à minha frente era uma linda francesa. Que me lembre, foi a primeira francesa a me agarrar (quem vai à frente agarra firmemente as pernas de quem vai atrás). Não quero lembrar da inglesa que ia às minhas costas. Pois esse animado trenzinho (num sentido alheio a toda fraude) segue flutuando sobre um rio subterrâneo de águas poucas, turvas e geladas. Cada vagão se desloca vagarosamente sob um céu de estrelas verminosas. São grandes constelações em cada salão, até chegarmos à cachoeira. Lá, cada vagão despenha sobre a água escura, de costas, sobre seu flutuador, com grande estrondo e formação de ondas no escasso rio (alguns formaram verdadeiros vagalhões, privando brevemente de água o rio). Terminada essa etapa, de novo juntam-se os vagões, para margear por paredes de argila e pedra, navegando águas pouco esclarecidas. Ao término, uma cratera invertida, no teto, e uma escadaria. Perfurada por raios de sol sob intensa neblina, essa escada compõe um retrato de poesia concreta. Nenhuma câmera fotográfica profanou essa magia, que permanecerá na memória, fomentando o trabalho onírico. Rotorua. “Mas meu Deus do céu! Acaso agora é proibido respirar?”, foi a exclamação de uma inglesa ao chegarmos a Rotorua. O leitor não deve se preocupar em demasia em identificar quando chegou a essa cidade. Deixe-se guiar pelo faro. Sabem aquele forte cheiro dos mangues? Multiplique por dez e espalhe por toda uma cidade: é assim Rotorua. “Cagaram no mundo?”, indagou um japonês, indelicado (não entendo uma palavra de japonês, mas foi isso mesmo que ele disse, tenho certeza). Mais ao sul, Rangi gastou um tempão explicando a próxima paisagem, uma garganta com um rio ao fundo, que se resolvem em uns cento e vinte metros. Todos os motoristas de ônibus da Nova Zelândia e Austrália se pretendem comunicadores (e alguns o são); gastam horas explicando tudo, mesmo que a platéia tenha se evadido pelas ruas do sono. Rangi enfatizou que a próxima paisagem, à esquerda, seria uma profunda escavação do rio. Com esse lado do ônibus bloqueado por uma parede de curiosos, pensei rápido e concluí que à direita haveria paisagem semelhante, já que entráramos numa ponte. Numa fração de segundos virei a cabeça, a tempo de ver uma enorme placa, cobrindo todo o horizonte, onde quase se podia ler: “a paisagem é à esquerda, otário!”. Essas algumas das aventuras na ilha norte da Nova Zelândia. No dia 30 de dezembro aportei à ilha sul, para novas aventuras.

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