terça-feira, 5 de julho de 2005

Espanha, uma viagem

1. Chegado de inopino à Espanha, adverti que seria razoável comprar um guia, um que fosse. Encontrei, na promoção “tudo por um 1 Euro” do Corte Inglés, um simpático livrinho intitulado “dormindo como um rei (na rodoviária)”. 2. Tapas e queijos
Todos procuram um bar, chegado o fim da tarde. Ele se aproxima depois das 20 horas, numa Europa primaveril. Após acondicionar a máquina fotográfica, a segunda máquina fotográfica, a mochila cheia de acessórios fotográficos, os óculos os mapas o lenço o chapéu e o corpo numa cadeira, uma pergunta a queima-roupa: “quieres tapas?” “Quiê quié isso”, volvi. O camarero, sem mais aquela, distribuiu tapas a todos ao alcance de suas mãos ligeiras. Na tevê se enfrentavam Málaga e Sevilha, que acompanhei impassível, enquanto o chope era vertido. À saída uma placa explicava toda a filosofia: “aqui tapeamos, y bien”. Repercuti com a espanhola Rocio, com quem converseu na Cartuja (uma catedral) o acontecido, instando-a a jamais pedir tapas, quando no Brasil. 3. Perdi-me nas ruas do bairro judeu de Santa Cruz, que começa ali mesmo, na Basílica de Sevilha. Fui até a casa em que morou um filantropo chamado Pôncio Pilatos, cônsul romano no início da era cristã, e depois até a mais antiga casa de tapas da cidade (desde 1670, conforme a garbosa placa à entrada), onde tapeei a fome com uma competente porção de bacalhau. Se outro dia fiz um arrastão pelos museus da cidade, hoje mergulhei de cabeça nessa Sevilla, tão necessária. De manhã, a catedral Macarena, a muralha ao lado e o Hospital das Sete Chagas, sede do parlamento Andaluz. Depois, as colunas romanas, num lugar mal arrumado, e volto à basílica, para fotos. No almoço, paella com mariscos (deliciosa); depois, a Plaza de Toros, interessante, e a siesta, lá pelas 15 horas. A partir daí internei-me no bairro de Santa Cruz, tendo antes o cuidado de passar no Corte Inglés. Para os minuciosos, presto contas: passe de ônibus até a Macarena: 1 E; entrada na Mararena: de graça; Plaza de Toros: 4 E; paella no centro: 9 E; um livro intitulado El Nacimiento del Mundo Moderno: 1,5 E; tapa de bacalhau (absolutamente deliciosa), omelete com jamon e suco: 5,5 E. Depois, frutas e água em Santa Cruz: 3,20. Entrada no Hospital da Caridade: 4 E. Caminhar por becos labirínticos e ruas insensatas, de 1 metro de largura: de graça. Total da aventura: 29,90 E. 3. Se a sureña El Calafate tem La Vaca Atada, restaurante dos mais aconchegantes, a cosmopolita Barcelona tem La Vaca Paca. Em comum uma sugestão velada de pampas e vaquinhas nutritivas. 4. No alto da serra, na Igreja de Montserrat, a 2 horas de Barcelona, entrei na fila que me deparou logo após um pátio vigiado por aparatosas janelas. Não sabia para que servia, nem o tempo de espera, mas parecia importante, bem ali na entrada do templo. Entrei. Todos visivelmente ansiosos, e um diria que se avizinhava um êxtase. Desafortunadamente, aquela fila era a dos que necessitam ser açoitados duas vezes ao dia. Aconteça o que acontecer, mantenha-se longe de filas, a não ser em repartições que gozem de boa reputação. As montanhas Montserrat lembram, nos ângulos mais favoráveis, a rocha Uluru, na Austrália central. Em minha ignorância geológica cheguei a ver o mesmo aglomerado sedimentar da meseta australiana. Montserrat, é claro, está acima dessa ilusão. 5. Gaudi: Há algo na Sagrada Família que não pertence ao realizável, ao humano. Tentei saber de onde provém seu poder de entesourar em nós o belo. Parece que é algo alheio à fadiga das gruas e do concreto. A evidência de Gaudi na orgânica matriz, árvore total não isenta de sandices. Sua simples postulação levanta vastos estamentos de fé e dúvida, bem acima de nossos precários rascunhos de mundo. O sagrado, o sublime, num assombroso inventário de delírios. 6. Madrid: tarde redonda e branca, a desejar poemas. Drummond percebeu o impasse, bem antes: “A tarde talvez fosse azul, não houvesse tantos desejos.” Conclusão. Ganhei o mundo, a alma acumulou largas milhas, e já agora se expande em seus labirintos. 25.06.2005