Hélio, na Folha:
O
advento da imaginação humana foi uma verdadeira revolução mental, pois nos deu
o poder de simular cenários dentro de nossas cabeças e, consequentemente,
tentar alterar de forma consciente o futuro. Tomamos gosto pela coisa, daí que criamos
a ciência, que pode ser descrita como uma receita para fazer previsões. O
problema é que, apesar do inegável sucesso de nossas tecnologias, somos de um
modo geral péssimos em prognósticos.
É preciso qualificar um pouco melhor esta última afirmação. Há
diferentes tipos de previsões e, em algumas delas, nos saímos relativamente
bem, enquanto, em outras, nosso desempenho é vexatório. Como já coloquei em
outras colunas, colecionamos sucessos em certos ramos das chamadas ciências
duras, como a física e a química, onde não temos dificuldades para apontar a
data do próximo eclipse solar ou para fazer o cálculo estequiométrico de
reações entre diferentes compostos. A coisa muda de figura quando nos afastamos
dessas áreas para abraçar a economia, as ciências sociais e mesmo alguns
subcampos das ciências duras. As coisas tendem a ficar realmente difíceis
quando tratamos de fenômenos complexos/caóticos (não vou aqui entrar na
distinção entre os dois), nos quais mínimas alterações numa variável podem
modificar dramaticamente os resultados. Aqui, embora tenhamos nos acostumado a
ouvir especialistas, poderíamos muitas vezes dispensá-los sem prejuízo. Na
verdade, nós possivelmente sairíamos ganhando se ignorássemos seus conselhos.
Nate Silver, um especialista em previsões, acaba de lançar nos EUA um livro bastante esclarecedor sobre o assunto. É "The Signal and the Noise: Why So Many Predictions Fail --but Some Don't" (o sinal e o ruído: por que tantas previsões falham, mas algumas dão certo). Silver é um estatístico que fez fama, primeiro, desenvolvendo um algoritmo para apontar quais jogadores de beisebol darão certo e, em seguida, ao criar um site de previsões eleitorais que, no pleito de 2008, acertou os resultados da disputa presidencial em 49 dos 50 Estados, além do vencedor de todas as 35 corridas pelo Senado que tiveram lugar naquele ano. Saiu-se tão bem que o "The New York Times" incorporou seu site, o FiveThyrtyEight ( http://fivethirtyeight.blogs.nytimes.com ).
Silver inicia "The Signal and the Noise" mapeando o problema. Lembra alguns trabalhos clássicos como os de Philip Tetlock e John Ioannidis, cujos resultados não são muito abonadores para os futurólogos.
Num estudo publicado em 2005 ao qual já aludi neste espaço, Tetlock coletou durante 20 anos cerca de 28.000 previsões acerca da economia e de eventos políticos feitas por 284 experts em diversos campos e de diversas orientações políticas. A conclusão básica é que eles se saíram milimetricamente melhor do que o acaso.
O mais interessante, porém, foi constatar que os mais veementes foram os que mais feio fizeram. Tetlock os apelidou de porcos-espinhos. Os especialistas que conseguiram bater a média do grupo e superar os 50% de acerto esperados pelo livre-chutar foram os que coletavam suas informações em múltiplas fontes e chegavam a desconfiar de suas próprias previsões. Estes foram batizados de raposas.
Já Ioannidis, numa abordagem mais matemática, sustenta que a maioria das conclusões dos trabalhos publicados em periódicos médicos está errada. Isso ocorre devido a uma combinação entre limitações do método estatístico (inferência bayesiana) com os vieses dos pesquisadores. Para o autor, só uma minoria dos estudos (os maiores e mais caros) tem de fato poder estatístico para apoiar cientificamente as teses sustentadas.
Para Silver, várias combinações de causas explicam a grande diferença de desempenho entre os ramos do saber. O que ele faz ao longo do livro é explorar alguns casos de sucesso e fracasso recorrendo a áreas tão díspares como a meteorologia, a previsão de terremotos, a economia, o beisebol, o pôquer, o xadrez e o aquecimento global, além, é claro da política.
Não tenho aqui espaço para detalhar as valiosas informações que o autor traz em cada uma dessas disciplinas, de modo que me concentro na espinha dorsal de sua argumentação. Para fazer previsões razoáveis acerca de fenômenos complexos/caóticos, é preciso tanto dispor de dados de qualidade que servirão de "input" como ter uma boa compreensão da ciência envolvida.
É raro reunir essas duas condições, mas às vezes acontece. O caso emblemático de sucesso é a meteorologia. A física envolvida é bem conhecida. O problema é que os sistemas são tão dinâmicos que uma mudança diminuta numa variável qualquer altera tudo. É da meteorologia quem vem a expressão "o bater de asas de uma borboleta no Brasil pode originar um tornado no Texas" e ela é potencialmente verdadeira.
Não obstante, nas últimas décadas, a previsão meteorológica fez importantes avanços. Já dá para antecipar com precisão e antecedência de pelo menos 48 horas a rota de furacões e mesmo o boletim do tempo que passa na TV tem melhorado bastante. Se um meteorologista sério diz que as chances de chover são de 70%, isso significa que, se reunirmos todas as suas previsões que trazem essa cifra e as compararmos com o que de fato aconteceu, constataremos que em 70% delas houve precipitação e em 30%, não. A meteorologia tem sobre outras ciências a grande vantagem de contar com muitos dados que vêm quase sem ruído. Melhor ainda, ela tem a dádiva de receber diariamente o "feedback" da realidade, o que permite recalibrar continuamente os modelos.
A previsão de terremotos, que é outra ciência dura que envolve complexidade, não experimenta a mesma taxa de sucesso (na verdade, é um fracasso quase total) provavelmente porque não conhecemos bem a física envolvida. Nós vemos e até conseguimos reproduzir em laboratório os fenômenos que ocorrem na atmosfera, mas não temos nenhum acesso ao que se passa com as placas tectônicas, escondidas vários quilômetros abaixo de nossos pés.
Quando saímos das ciências mais rígidas para a economia e as ciências sociais, nós mais ou menos pulamos no inferno. Aqui, tanto os processos básicos se tornam infinitamente mais complexos (o homem passa a ser uma variável) como a qualidade dos dados cai drasticamente. PIB, inflação e vários outros indicadores, por virem na forma de números com vírgula, podem dar a impressão de serem objetivos, mas, na verdade, calculá-los não tem nada de trivial e envolve muita incerteza. Não são pequenas as chances de eles corresponderem apenas vagamente ao que ocorre na realidade, o que, evidentemente, complica bastante qualquer previsão que os tome por base.
E a questão do conhecimento/qualidade dos dados é apenas parte do problema. De acordo com Silver, outro importante destruidor de previsões são nossos vieses cognitivos, isto é, nossa propensão evolutiva a cair em determinadas armadilhas.
A mais grave delas é que temos uma tremenda dificuldade para pensar de forma probabilística. Psicólogos como Daniel Kahneman, Dan Ariely e muitos outros já compuseram uma lista telefônica de exemplos dessa nossa incapacidade. Um de meus favoritos é o experimento em que médicos treinados julgaram uma doença que mata 1.286 pessoas de cada 10.000 --12,86%-- como mais grave do que uma com taxa de mortalidade de 20%. Aqui, eles se deixaram enganar pela concretude das 1.286 vítimas contra a abstração da frequência de 20%.
O viés antiprobabilístico faz todo o sentido. Nós não evoluímos para ser cientistas, mas para sobreviver aos perigos do dia a dia. Diante de um tigre de dentes de sabre, não podemos nos dar ao luxo de calcular chances. Sobreviveram apenas nossos ancestrais que traduziam a percepção do perigo numa ação concreta e inequívoca como fugir.
Num mundo em que os tigres de dentes de sabre foram extintos e a ciência apareceu, porém, a incapacidade de pensar probabilisticamente é um problema. Ela faz com que não percebamos as limitações e as sutilezas do método estatístico e interpretemos muito mal seus resultados. Tendemos a ver o 90% de chance de chover como quase certeza de que devemos sair com uma sombrinha e não como uma previsão de que não choverá em 10% dos casos. Daí os injustos impropérios lançados contra a moça do tempo.
Para Silver, a situação tende a piorar na era da internet, na qual temos um acesso até há pouco impensável a cordilheiras de dados, sem, entretanto, dispor dos meios para separar o sinal do ruído. Mais do que nunca, diz ele, precisaremos de boas teorias para ordenar essas montanhas de informações. No que diz respeito a nossos vieses, o autor afirma que a única saída é nos esforçarmos para reconhecê-los. Sabendo em quais circunstâncias tendemos a errar, podemos tentar nos corrigir. É isso o que torna as raposas de Tetlock melhores futurólogas do que os porcos-espinhos.
Não se deve, contudo, nutrir ilusões. Se o advento da imaginação nos liberou para domesticar o futuro e inventar a ciência, precisamos também saber limitá-la, para que não nos tornemos vítimas de nossas fantasias e delírios. O primeiro viés que precisamos admitir é o de que, embora tenhamos horror à incerteza, o mundo está repleto delas. Precisamos antes de tudo tentar compreendê-la e, quando possível, mensurá-la.