sexta-feira, 4 de novembro de 2005

Impressões avulsas (quase diário)

Consta que os blogs são diários virtuais. Se for verdade, ofereço as notas que seguem, sem outra intenção que submeter a esforços a amizade do leitor. Impressões avulsas (do longínquo ano de 2001): a) Notícia literária. 1. Bons livros chegaram-me às mãos. Para citar alguns: duas versões da obra máxima de D. H. Lawrence: O Amante de Lady Chatterley, um incursão memorável ao erotismo do início do século XX; diversos contos mágicos do gênio Guimarães Rosa, entre os quais, A Terceira Margem do Rio e A Menina de Lá. Poesia Pura. Ainda, O Vermelho e o Negro, de Stendhal; Um Conto de Duas Cidades, de Charles Dickens (magnífico). Leituras e releituras intensas de Machado de Assis e Jorge Luís Borges. 2. Borges é de uma loucura preciosa e risonha. Quanto ao Bruxo do Cosme Velho, impossível estimar nossa dívida para com esse mago das eternações. Teve ainda a continuidade do Ulisses, de Joyce, para sempre intérmino, e a impagável trinca Mark Twain, G. K. Chesterton, e Ítalo Calvino, cômicos irresponsáveis, maravilhosos e imprescindíveis. 3. Inúmeros contos de Franz Kafka, o gênio literário máximo do século passado, li e reli, entre os quais: Na Colônia Penal, o hilário A Sentença (hilário num sentido kafkiano, em que o cômico está contido no trágico), e Antes da Lei, o texto que abre o filme O Processo, versão Orson Welles, filme total. 4. Que dizer de Faulkner? O Som e a Fúria, e Santuário foram lidos em conjunto, para melhor apreciar a estranha prosa desse escritor. Foi também o ano da leitura do Werther, essa explosão de amor romântico do mestre Goethe. A extrema má impressão deixada pelo Fausto foi superada com essa obra. Penso que a tradução deve ter feito muito mal ao pobre Fausto. 5. Tem uma pá de outros livros lidos, mas já não me lembro, e não vou torturar minha biblioteca em busca de uma confissão. 6. Convém anotar (para satisfazer as almas inclinadas a contabilidades) alguns títulos e autores: Daniel C. Dennett (A Perigosa Idéia de Darwin e Tipos de Mentes), obras filosóficas no bom sentido da expressão. Devo-lhes muito. John R. Searle (Mente, Linguagem e Sociedade, outro filósofo da atualidade); Ana Arendt (As Origens do Totalitarismo, leitura intérmina, infelizmente); Clemente Nóbrega (Glorioso Acidente, repositório das grandes idéias contemporâneas); Robert Gilmore (Alice no País do Quantum, fábula bem-humorada sobre os paradoxos e perplexidades a que nos conduz a Mecânica Quântica); Michio Maku (Hiperespaço, uma prosa instigante sobre a natureza hiperdimensional do mundo. Desafia a imaginar um mundo com mais de quatro dimensões, a partir de um mundo igualmente fantástico, de apenas três dimensões); George Smoot e Keay Davidson (Dobras no Tempo); Brian Greene (O Universo Elegante); Geoffrey F. Miller (A Mente Seletiva, que apresenta a outra teoria de Darwin, conhecida como seleção sexual); John Maddox (O Que Falta Descobrir). Maddox é editor emérito da prestigiosa Nature. 7. Li, ainda, todos os volumes de S. Jay Gould que consegui derrubar de velhas prateleiras, talvez pra me livrar logo desse mala. São livros fragmentários, mas que apresentam conceitos interessantes, como o da neotenia humana, e nos dá uma aula sobre as médias de rebatidas no Baseball americano). Vou ser franco: depois de ler todos os livros de R. Dawkins, é até covardia ler outro autor sobre os mesmos assuntos. Dawkins aguarda releitura. 8. Dois outros livros precisam ser destacados: O Bico do Tentilhão, de Jonathan Weiner, descreve a evolução de tentilhões acontecendo, ao vivo e em cores, matematicamente mensurada, no arquipélago de Galápagos; trata-se de uma devastadora demonstração de como funciona a Teoria da Evolução. Uma grande injúria a certos dogmas religiosos. b) Filmes. Assisti a um caminhão de filmes em 2001. Mas o que importa mencionar são alguns diretores. Ingmar Bergman (Morangos Silvestres, Mary e Alexandre e outros); Woody Allen (O Testa de Ferro, Celebridades, Todos Dizem Eu Te Amo e outros); Orson Welles (autor das duas obras máximas do cinema: Cidadão Kane e O Processo); Akira Kurosawa (Dersu Uzala, Rapsódia em Agosto e outros); Stanley Kubrick (Laranja Mecânica, 2001, Nascido Para Matar e outros); Luis Buñel, Pedro Almodóvar, Robert Altman, e vários outros. Sim, o cinema nacional. c) Viagens. 1. Inaugurei o ano no balneário de Camboriú. Logo depois parti para a África do Sul, para uma visita de 15 dias. Nunca tinha posto os pés em hotéis tão luxuosos. Mas a viagem, como um todo, desapontou. A Cidade do Cabo é muito bonita, e guarda qualquer coisa de Rio de Janeiro (talvez o tema da montanha e do mar); tem uma vida cultural interessante (pelo menos aos olhos de um turista em primeira visita); inúmeras atrações, como a subida à Montanha da Mesa e o Cabo da Boa Esperança. Tudo bem bonito. A rota dos jardins também agrada, com suas cidadezinhas ao estilo inglês. As gargantas e vales que se vêem depois bem valem a viagem. Mas o Kruger Park e a Cidade Perdida, definitivamente, não impressionam. The Lost City (leia-se hotel Sun City) não passa de uma Las Vegas em miniatura e, no Kruger, o turista se farta de ver pequenos antílopes (dik diks, kudus), zebras de todas as estampas, muitas girafas, elefantes, alguns rinocerontes, mas nada de leões, leopardos, e mesmo búfalos. Minha idéia de África envolvia savanas selvagens, habitadas por felinos, manadas intermináveis de antílopes, paquidermes e outros pequenos animais, todos em feroz interação na luta pela vida. O que cheguei a ver foi um entediante desfile de animais, alguns aparecendo mais que outros. Ao chegar a São Paulo, tive ganas de sair em comitiva até o Simba Safári, a ver os big five, provisoriamente indisponíveis na África. 2. Jericoaquara. Chegamos a Jeri num pau-de-arara, como perfeitos retirantes. Pau-de-arara, no caso, era um caminhão de dois eixos, sem portas na cabina, com uma carroçaria de inesgotável altura, sem escadas para subir, repleta de bancos de madeira. Chegamos pela madrugada, lá pela uma da manhã, e embarcamos no caminhão, da maneira mais desconfortável possível. 3. Quando o caminhão ligou o motor, minha ilusão de cochilar mais um pouco se desfez: mesmo hoje, seu barulho ainda atormenta. Parece que o horrível veículo deixava os gases escapar diretamente do motor, sem um único estágio de escapamento, de modo que o barulho era nauseante. 4. Quando a estrada começou a colear na caatinga costeira sobre dunas cada vez mais altas, entrei a sentir a emoção da chegada a esse lugar. A escuridão era profunda, e o céu alardeava suas mais brilhantes estrelas. 5. Submetido aos feitiços da Alva, o sertão estava ali: o derramamento de estrelas, a relva contorcida, cabanas paupérrimas, e o pau-de-arara levando retirantes de todo o mundo, insensatos em seus projetos de paraíso. 6. Quando chegamos, alguns foram direto para a padaria; outros, como eu, derivaram vagarosamente para a cama, calma. Depois me disseram que o quente é a padaria, à uma e meia da manhã. No maior mico da viagem, perguntei a dois portugueses se, porventura, eles prestigiaram a padaria... 7. Jeri me pareceu a meca do pôr-do-sol. Num dos lados do vilarejo de pescadores, ergue-se majestosa duna de areias brancas, do alto da qual dá-se o espetáculo da união do astro com o mar, também afogueado no consumir de vasta tarde. Não me esqueço do esplendor agreste de Jeri, de suas glórias feitas de sol, mar, céu, e doces, absolutamente maravilhosos, de coco. 8. São Paulo. Finalmente a cidade me impressionou positivamente, após longo tempo de estranhamento. Eu, que a conhecia de passagem, sempre correndo de Guarulhos até o centro e vice-versa, fui conhecer facetas mais favoráveis desse aglomerado brasileiro. Tomei um ônibus para turistas na Barra Funda e fui conhecer – de graça! – os principais museus da cidade. 9. O que mais me agradou, de longe, foi a Pinacoteca do Estado. Pequeno, aconchegante, repleto de belas obras: um museu para quem gosta de arte. Não é um daqueles supermuseus europeus ou americanos: inimigos dos pés e muito inclinados a zombar de pobres turistas, como eu, com escasso tempo. A Pinacoteca, com sua despretensão e estilo, é o grande programa cultural de São Paulo. 10. Outra coisa chama a atenção em São Paulo: as pessoas. Impressiona a maneira de ser paulistana, parece que sempre profissional, freqüentemente cordial, sem dever nada a ninguém. E tem a fala. Rápida, concisa, uma urgência pouco contida de comunicar, elaborando a tendência de inserir um i no meio das palavras, logo depois de alguma vogal desavisada: um falar de quem incorporou a Itália à matriz luso-africana. Tá entendeindo? Ãrrãim. 11. O paulista, parece, é dono de sua cidade, de seu tempo: acostumou-se ao fenômeno da densidade humana, incorporou-o à sua personalidade e jeito. A grande “curtição” em São Paulo são as pessoas, a pizzaria, o shopping: elementos de uma cultura discutível mas existente. 12. Freqüentei teatros e shows todas as noites de minha estada, de uma semana. Assisti a Marisa Monte, Les Miserables, algumas comédias e outras tragédias. A peça de Victor Hugo me pareceu interessante, falada e cantada em português. Já a havia assistido em Nova Iorque, e a produção local não deixou a desejar à da Broadway. Os efeitos especiais eram diferentes, e as músicas soaram estranhas, como todo musical em português. 13. Quanto ao show de Marisa, a casa de espetáculo era tão grande, mas tão grande, que eu devo ter escutado as músicas com alguns minutos de atraso, exageros à parte. Mas juro que consegui enxergar que era ela mesma que estava no palco, e não sua irmã, por exemplo. Pelo menos me pareceu. 14. Natal e Fernando de Noronha: Natal foi um caso de amor para com uma cidade: seu calor vigoroso encontra temperos na brisa marítima. Conheci Natal na adolescência. Desde então me encanta essa cidade costeira, suas praias, suas dunas móveis, sua areia alva, o sol num trabalho sempre sério e competente. Na época eu era aficionado por aviões. Um apego a jatos militares, caças, aeronaves de espionagem, modelos aeronavais: uns mundos adolescentes, repletos de armas voadoras. Minha tentativa de ingressar na Academia da Força Aérea foi rechaçada, para grande contentamento da nação. 15. Natal era o mar, o imenso, silente e misterioso mar, com sua túnica profunda, cingida por navios intrépidos, e a areia do entorno costeiro, alegre. Quando vi pela primeira vez a praia de Ponta Negra, em 1986, foi um transporte de êxtase. Nunca havia visto semelhante concerto entre terra e mar, céu e terra, gente e natureza. Desde então tenho visto muita praia, muita montanha, inúmeros rios e mares. Mas aquela emoção, autêntica em um adolescente, permaneceu. 16. O sol de Natal é recomendado para pessoas melancólicas, por sua generosa alegria. O ar dessa cidade deve ser sorvido a bons haustos, acompanhando uma água de coco, numa tarde preguiçosa de domingo, enquanto o mar é singrado por navios ciganos. 17. Quanto à Esmeralda do Atlântico, alcunha de Fernando de Noronha, era sonho antigo conhecê-la. E a realidade não ficou devendo ao sonho. 18. Cheguei num turboélice barulhento. Do alto, um choque de beleza. Noronha não é qualquer lugar. Se parece com a sucursal do paraíso na terra, lugar para se testar os limites dos sonhos, exultar. Só isso. 06.01.2002

quinta-feira, 3 de novembro de 2005

Os mascateiros

Os mascateiros Mosche e Daniel se cumprimentam no meio da interminável planície russa. O texto não é meu e, se o ofereço ao perseverante leitor, é porque muito o estimo. - Aonde você vai, Daniel? – disse um. - A Sebastopol – disse o outro. - Então, Mosche o olhou fixamente e afirmou: - Você mente, Daniel. Diz que vai a Sebastopol para que eu pense que vai a Nijni-Novgorod, mas o certo é que vai mesmo a Sebastopol. Você mente, Daniel!” Não revelo onde encontrar essa delícia. Digo apenas que está no primeiro dos quatro tomos da tradução para o português das obras completas de Borges.

quarta-feira, 2 de novembro de 2005

Palavras

Os peixes do ar serão talvez diáfanos. Victor Hugo. Os Trabalhadores do Mar. Palavras: sou seu humilde criado para serviços leves. Podem enxergar cabotinismo na minha declaração de afeto. Toleima. Sou um trabalhador das letras mesmo que elas me repitam errado. Sou amigo das palavras – da maior parte delas, porque algumas me detestam –. Às vezes fico de birra com uma; por outras, sou alvejado com indiferença. Drummond elegeu glicínia uma palavra bela. Tentei dafnes, tílias, e quantas margaridas, sem qualquer resultado. Não me importam os significados – arbitrários – que lhes atribuímos. Pouco se me dá o sentido dos termos ironia, política ou ética. Carente de organização e método, me escondo na barafunda de jornais me iludo com as bulas e seus venenos me divirto com as listas telefônicas me engano com o manuais. Palavras missões de mim segregam estesias, ganham conformidade: uma vida humana em signos. Atribui-se a Voltaire a frase “Segurar uma caneta é estar em guerra”. Mãos sobre o teclado indagador pesquisam excruciantes segredos; viajam num retângulo saturado de sinais que prelibam abismos. Cada tecla, um desafio; cada dedo vota um medo, tenta esquivar-se da pergunta. Desconhecidas empresas aguardam incautos servidores palavrados. Eus emissões de mim são discriminados na acerba contingência das palavras. Acendrado pelos quereres me ponho a perder na vastidão de códigos indecifráveis. Sou um operário das letras mesmo que elas me emendem errado. Palavras simples hauridas à dor: estou em guerra. Uma genuína e inútil guerra. II. Palavras tiradas à dor insones, vulneradas, palavras sensadas, sabidas a flor. Palavras sonos, no olor matinal, quando em nós o dia estréia sua luz sensível. Palavras sonhos tenros parafísicas, moinhos, cenestésicas, palavras hauridas à flox. Somos o preconceito das palavras, sua instável plataforma. Arbitrários, vagos, desonestos, elas nos habitam inseguras, tomando-nos em discurso febril. Palavrinhas guardei no queijo, comidas em indolente repasto: consideram-me insensato, consumado repósito de erros. Sou cultor de palavras mesmo que elas me entendam errado. Em constructos aparentes e caros, pobre morada edifiquei sobre palavras. Se elas me ruem, se me fogem, nem por isso escapo de seus significados. No arenito inscrito à orla de vasto deserto periga sem fundação meu temerário prédio. Meticuloso, calculo a carga que as palavras precisam suportar para emular a realidade. Sobre um vasto sistema de signos, dançam a vida, a morte, os perigos, os sentimentos, a exuberância do existir continente. Sem palavras, arrisco ao léu garatujas. O esgar da mente contra o pano limpo do céu do Brasil (que Brasil). Noticia o estrelório meu silêncio conhecido pervagam-me ondas, rumores de belas letras. Estrelas aparelharam palavras para a difícil travessia da noite. Em meu catre suspiram conspiram teorias, intuem-se. Deixo-me às sombras, acidentado, escalavrando o pouco que me sou, contando as fraturas da dimensão em que vivo. Evanescentes eus recebem missões: soldado, escriba, prisioneiro: é preciso focar-me pastorear as palavras...

terça-feira, 1 de novembro de 2005

Crítica a "Napoleão", de Paul Johnson


Napoleão era dotado de um soberbo senso de realismo, um conhecedor de pessoas. Désabusénunca fez amigos “para toda a vida”, sem dúvida por saber do que são capazes os “amigos”. 

Brilhante, surfista do poder, aproveitou-se da cratera aberta no peito da sociedade francesa pela Revolução Francesa para se infiltrar nas veias do poder. Foi ousado – abriu fogo contra os rebelados parisienses quando percebeu que a nação já não suportava essas rebeliões, diárias – e soube dissolver o Diretório, coisa que todos os detentores ou aspirantes ao poder desejavam, desde o rei guilhotinado, mas ninguém sabia como fazer. Depois aceitou casar-se com Joséphine, livrando Barras de uma considerável despesa.

Barras estava à cata de rameiras mais novinhas e mais baratinhas. Dois dias depois das bodas, foi premiado com o estratégico comando das forças francesas na Itália. O fato não bastou para desencorajar o autor a dizer que o casamento nada teve a ver com a nomeação.

Aos 28 anos, ele se tornara o homem mais poderoso da República. O Diretório (sob Barras) fez o gracejo de pedir a Napoleão que invadisse a Inglaterra. Esperto, ele recusou esse passaporte para uma tumba no oceano, preferindo ir farrear no Egito, onde perdeu tudo e voltou “avec ses culottes pleins de merde”. Pelo menos o Egito era longe, o que agradava o ciumento e receoso Diretório.

Então, três personagens sinistros: Sieyès, Talleyrand e Fouché, arquitetaram o golpe do
 18 Brumário, que “foi uma coisa vil, pois todos os envolvidos estavam prontos a trair todos os demais, e nenhum deles cumpriu o que havia jurado fazer. Se Bonaparte se transformou em governante de excepcional deslealdade e falsidade, devemos recordar que ele provinha de um ambiente político no qual a palavra dada nada significava, onde não existia honra e o assassinato era rotineiro”.

Fortalecido, Napoleão armou pra cima do Diretório, cuja legitimidade se esvaía. Simulou ser atacado fisicamente no recinto, o que lhe valeu o direito de prender seus membros, ordenando uma nova Constituição, que dissolvia o Diretório, instituição central da política francesa desde o início da Revolução, e estabelecia um “consulado”, por emulação do império romano. Outorgada, a Constituição foi confirmada em plebiscito, com 3.571.329 sins e 2.570 nãos. Um lindo trabalho de falsificação de resultados eleitorais que fariam os olhos de um Bush ressumarem.

Daí impôs-se cônsul vitalício (1802) e finalmente imperador (1804). Sieyès escorregou para debaixo do tapete da história e hoje é lembrado por seu panfleto sobre o Terceiro Estado. Fouché, sacerdote corrupto e terrorista com Robespierre, transformou-se no chefe da primeira polícia secreta do mundo. Nunca demonstrou lealdade a qualquer pessoa ou a coisa alguma, mas contou com vasto orçamento e incontáveis informantes. Talleyrand seguiu chanceler de Napoleão, conquanto tenha estabelecido contato com as cortes inimigas da Áustria e Rússia e com alguns principados, funcionando na prática como agente duplo e recebendo as gratificações correspondentes. Até por essas traições, foi indicado negociador francês dos tratados pós-guerras napoleônicas. 


Pretextando Napoleão, reproduzo este sumário da ambição humana (p. 87-8): 
“É melancólico que os potentados da terra se vejam obrigados a recorrer às medidas mais mesquinhas dos débeis: tomar contra um amigo o partido do inimigo; juntar-se a acusações contra ele, ditadas por este último; não ter crédito em qualquer dos lados; voltar ao amigo ou afastar-se dele, conforme as peripécias da guerra; desejar secretamente que o amigo o desculpe pela necessidade, o pretexto dos mendigos; não conseguir jamais fornecer justificativa para sua conduta além de ‘misteriosas disposições da Providência’, que são o último refúgio dos indigentes morais... Foi isso o que os aliados da Inglaterra acostumaram-se a fazer durante toda a guerra desta contra a França. Quando a Inglaterra conseguia formar uma coalizão contra Napoleão, eles o denunciavam por sua ambição e entravam em guerra contra ele. Quando a coalizão era desfeita por seus exércitos, mudavam de idéia por ordens dele, denunciavam a Inglaterra e se juntavam a ele para lutar contra a aliada. Isso foi a ronda de suas histórias: alternância de coalizão e tergiversação; ora um discurso e uma guerra contra Bonaparte, que os derrotava; em seguida, um discurso e uma guerra contra a Inglaterra, que os comprava; novamente um discurso e uma guerra contra Bonaparte, que os derrotava outra vez; e então, como antes, um discurso e uma guerra contra a Inglaterra, que novamente os comprava. Enquanto isso, aceitavam tudo o que podiam obter, tanto do inimigo quando do amigo, tomando com avidez os pedaços de terra que Bonaparte lhes atirava por sua mesquinhez e, em seguida, embolsando os milhões de Pitt, pelos quais ainda pagamos até hoje.”
Não é linda a saga humana?

Napoleão, ao contrário de Hitler, tinha alguns méritos: era capaz de construir mentalmente o teatro da guerra a partir de uns toscos mapas; dono de uma visão tática superior e conhecedor intuitivo dos meandros da política, afetava-se administrador, ostentando certo verniz de estadista. Suas raivinhas, premeditadas, iludem alguns até hoje; “seu” código civil ainda é citado.

Sem embargo de algum dote de administrador, Napoleão presenteou aos EUA toda a “Louisiana”, um território tão vasto e estratégico que teria desequilibrado o jogo entre potências em favor da França, obstando, no nascedouro, a emergência dos EUA. Ela abarcava 828 mil milhas quadradas e em seguida se transformou em 13 estados norte-americanos. Bonaparte a vendeu por 15 milhões de dólares, ou dez centavos por hectare. Ele estava ocupado demais incendiando a Europa para se dedicar ao fardo de administrar essa riqueza geopolítica (da mesma forma como se recusou a administrar a segunda metade da ilha Hispaniola, conhecida como Haiti, com os resultados que se sabe).

Segundo Johnson, os Estados Unidos foram a potência que mais se beneficiou, de forma permanente, da era bonapartista. O que explica Napoleão é a singularidade monstruosa da Revolução Francesa ou, melhor, do Terror. O Terror devorou uma a uma todas as pessoas politicamente importantes da França. Mirabeau tombou vítima de doença; Danton e Lavousier foram as maiores perdas; Robespierre, o melhor descarte. Produziu uma corrente de ar ascendente de rara intensidade que levou um obscuro tenente ao posto de “imperador”.

Ao perceber, antes de qualquer outro, a viabilidade da salva de metralha sobre os revoltosos parisienses, demonstrou conhecer a fraqueza do Diretório (medo e aversão ao populacho) e abriu caminho para o alto. Os corpos despedaçados de alguns incautos testemunham sua pressa. Depois, foi escolhido a mão militar do
 18 Brumário, golpe de estado que objetivou implodir o Diretório, até onde meus conhecimentos chegam. Barras, herdeiro direto de Robespierre na liderança do Diretório, era um deslumbrado. Chegou a instituir um culto a sua pessoa. Foi o primeiro a usar Napoleão como mão militar de um projeto político débil e suspicaz. O tolo perfeito para ser usado pelo gênio matreiro de Bonaparte.

Tento situar Napoleão no estrito teatro político francês. Outros grandes genocidas, depois dele, não serão explicáveis no âmbito angusto de suas nações.

As guerras.

Napoleão começou a cair com a recusa britânica de aceitar suas conquistas e legitimá-las por meio de um tratado geral de paz. A marinha britânica era financiada pelo ouro proporcionado pelo Revolução Industrial nascente, e forçava os navios franceses a apodrecerem nos portos. Napoleão respondeu com o Sistema Continental, que consistia em um boicote universal aos produtos britânicos em todos os países “onde as armas francesas reinassem”. Nem na França as leis desse boicote eram cumpridas. Espanha e Rússia, em especial, não se entusiasmaram. A Espanha, império decadente, estava às portas de uma guerra civil, quando as facções em luta conceberam a idéia luminosa de pedir a mediação de Bonaparte. Desculpa perfeita para uma invasão aberta, que degenerou numa guerra de desgaste, apoiada languidamente pelos britânicos. 250.000 soldados franceses e todos os principais generais de Bonaparte, além do próprio, durante vários meses, não conseguiram erradicar certas espanholadas na península ibérica. Enfadado, Napoleão resolveu brincar com outro urso.

Campanha da Rússia.

Num claro paralelo com Hitler, 

“A impossibilidade de uma rápida vitória na Espanha ou mesmo qualquer vitória decisiva, foi uma das principais razões que levaram Bonaparte a lançar uma ofensiva contra a Rússia.”, diz o autor. O Sistema Continental era particularmente contrário aos interesses econômicos russos. Nas palavras do autor, “O comércio pelo Báltico era de vital importância (...) e já fora severamente perturbado pelas lutas da Dinamarca, relutante aliada da França, contra a Noruega, a Suécia e a Grã-Bretanha. Com efeito, a aliança da Dinamarca com a França acabara por levá-la à falência e a repudiar suas dívidas. Em 1811, a economia do Báltico estava arruinada e por isso o czar fazia ouvidos surdos à queixa de Bonaparte de que ele não fazia executar o sistema.” 
Napoleão podia mobilizar 650.000 soldados, alguns deles franceses, mas a Rússia é um continente, acostumada a zombar de superlativos.

Em fins de junho de 1812, Napoleão cruzava o Neva, com forças que a seguir se espalhariam por 100, 150 quilômetros. Somente os serviços de apoio comboiavam por mais de dez quilômetros, com 35.000 carroças, cavalos, gado para matança, ambulâncias e veículos para transportar de volta o produto das pilhagens. Havia 950 peças de artilharia e um comboio de cinco quilômetros de vagões de munição. Mas, ao final desse verão, o efetivo desse exército fora reduzido à metade (devido às intermináveis planícies asiáticas, escaldantes e quase sem água), e começara a prática de matar seus próprios cavalos. No caminho das forças invasoras, os aldeões queimavam as plantações, numa política não prevista de terra arrasada. Gabavam-se, ainda, do incivil hábito de assar os soldados desgarrados da Grande Armée. Kutuzov, com 70.000 infantes, 25.000 cavalarianos e cossacos e 600 canhões, tomou posição em Borodino, a apenas 100 quilômetros a sudoeste de Moscou. Bonaparte avançou a partir de Smolensk, com 160.000 homens e 550 peças de artilharia, numa batalha imortalizada pelo gênio de Tolstói. Bonaparte ganhou a batalha, mas perdeu 50.000 soldados, que não seriam repostos. O caminho estava livre para a capital, mas não para a vitória. Os russos resolveram purificar pelo fogo sua antiga capital, deixando aos franceses a opção de assarem seus cavalos para a refeição.

O Czar, que havia deixado seus dois exércitos vagando a esmo e alegrara-se com a purificação de Moscou, não capitulou. Em meados de outubro Napoleão sentia o peso de seu excesso de confiança. Com a proximidade das nevascas, e o previsível fechamento das estradas, comandou a retirada de Moscou, com o exército reduzido a 95.000 homens; a maioria dos cavalos perecera, algo desairosamente, nas churrasqueiras.

Bonaparte chegou a Smolensk em 9 de novembro, mas os alimentos deixados em depósito haviam sido devorados pelos desgarrados famintos, em número de 30.000. Seu exército, agora em debandada, contava 40.000 homens, numa contundente demonstração do poder de síntese das guerras. Em 5 de dezembro Napoleão tirou o dele da reta, anunciando sua urgência em partir para Paris, após perder mais 20.000 soldados na travessia do Berezina. Nessa aventura os russos fizeram não menos de 200.000 prisioneiros, cujo destino não é difícil imaginar.

Após esse desastre vitórias fugazes e derrotas acachapantes no teatro europeu fizeram de Napoleão um líder moribundo. Ao destruir o Império Austro-Húngaro, ele acabou abrindo caminho para a unificação e supremacia militar dos ávidos estados germânicos que, liderados pela Prússia, não tardariam a derrotá-lo, como ocorreu em Leipzig, em outubro de 1813. Bonaparte retirou-se, seu poderio militar colapsou e ele teve de lutar, pela primeira vez, em solo francês.

Entre 1812 e 1813, ele perdeu 1.000.000 de homens, e os franceses não estavam entusiasmados para pagar por seus delírios. A “abdicação” veio em abril de 1814, após uma batalha desesperada para evitar a invasão de Paris. Ali o império se dissolvia, formalmente. Luís XVIII, irmão do rei guilhotinado, foi restaurado ao trono, ao mesmo tempo em que Napoleão chegava ao exílio e recebia o título oficial de “imperador e governante de Elba”, obra do sarcasmo de Talleyrand.

Meses depois, cansado de servir de atração turística, da mesquinharia dos Bourbon, que não enviavam o dinheiro da pensão anual pactuada e vendo o rotundo fracasso do trono restaurado, Bonaparte fugiu da ilha, mediante estratagemas e mentiras. Iludiu a Nação, conseguiu reunir novo exército, com que começou nova guerra contra as potências européias, que de qualquer forma marchariam contra ele. Após algumas batalhas sobreveio Waterloo, que Napoleão quase ganhou, segundo o autor.

Creio que o general Grouchy honestamente vendeu Napoleão aos ingleses, já que seria desonesto um general não saber ler mapas. Com isto, abreviou-se a agonia de Napoleão, a essa altura com 45 anos de idade e 4 ou 5 milhões de mortes nas costas.

Ele partiu em férias finais para um penedo com 45 quilômetros de circunferência, no Atlântico Sul, cujo porto cultivava a amizade de navios militares e mercantes. Em Santa Helena a disenteria amebiana não era infreqüente. Ali viveu por 6 anos, em companhia de uma dúzia de serviçais e um seleto grupo de cortesãos (um animado círculo de ciúmes e intrigas), ao custo anual de meio milhão de napoleões de ouro ao contribuinte britânico.

Tendo resumido um resumo, e perpetrado impiedosas citações, quero agora dedicar-me a essa ótima morte, a de Napoleão. A República Francesa finge cultuar a memória de Napoleão, mas reservadamente deve lembrar que ele deixou a França menor que a encontrou, em 1799, além de ter doado ilicitamente um vasto território na América, sem outro proveito que ajudar um império rival a dominar o mundo. Seis dos cortesãos de Napoleão, além do camareiro, escreveram memórias, que “discordam grandemente entre si, muitas vezes em simples questão de fato”. O ponto é: Napoleão foi envenenado? Napoleão valia muito, enquanto mito. Até que surjam testes adequados, capazes de determinar com precisão aceitável se houve ou não envenenamento, devemos trabalhar com o material disponível, que é o contexto da morte. Encaremos assim: a Grã-Bretanha o queria morto, e não apenas pelo dinheiro gasto com seu exílio. Tratava-se de um homem perigoso, capaz de sublevar as massas francesas, induzindo guerras já desnecessárias.

Para a nova elite francesa, também não interessava Napoleão vivo, pelos mesmos motivos dos ingleses. O país tinha apurado até à borra a fórmula do homem-forte, do
 self-made-man, e seus grandes males: “o endeusamento da força e da guerra, o Estado centralizado e todo-poderoso, o uso da propaganda cultural para apoteose do autocrata, a mobilização de povos inteiros na busca do poder pessoal e ideológico”. Em meio a essa genuína e desculpável busca de um cadáver, única maneira de tornar Napoleão dócil e previsível, ele tem de ter sido envenenado. Do ponto-de-vista britânico, o corpo seria emblema da vitória final, demonstração indisputável do britannia rules. A França necessitava de um herói sem mácula, um gigante entre pigmeus. Evidentemente, o homem Napoleão, com seu fardo culpável de incompetências, covardias e mentiras era um estorvo. Necessário que a morte o absolvesse de seus crimes e imprudências. A morte operou esse milagre, como previsto.

A prova é que até um gigante (Victor Hugo), passou a fazer-lhe festas, gesto bem pouco honesto, mesmo para quem tinha um pai general do corso. Termino agora este resumo, sofrível. O leitor não traído pelo sono há de ter adivinhado certas inconsistências, certas ilicitudes não atribuíveis ao texto resenhado. Introduzi na biografia essas facilidades, essas ligeirezas com o fito de torná-la menos árdua, ainda que mais fátua. Hão de ter reparado como não me interessei pelos detalhes de Warterloo, nem por seus assombrosos antecedentes.

De fato, como aceitar que o genocida tenha voltado a enfeitiçar a nação, e imediatamente conseguido carne fresca para os canhões, sabidamente insaciáveis? Que ele tenha escapado da ilha com seus 1000 soldadinhos, nada de mais. Que tenha mentido para alguns caipiras ao sul de Grenoble, granjeando seu apoio, nada de mais. O que não dá pra aceitar sem luta foi a adesão de militares de alta patente e das massas, ocorrida em março de 1815, o que o permitiu adentrar Paris sem oposição. O general Ney, mandado para prendê-lo, aderiu (Posteriormente os franceses o gratificaram, com o enforcamento).

Os Bourbon fugiram, escandalizados com a própria covardia e oportunismo. O núcleo do poder se abria para um Napoleão surpreso, que dele abusou sem hesitação.

Advogo que as massas têm o direito de errar, já que pagam o almoço dos genocidas. Fernando Collor, por exemplo, ganhou o direito divino de confiscar uma quantidade impensável do dinheiro dos pobres e da classe média brasileira, com o louvor dos economistas e da elite, que casualmente não enfrentou esse dissabor. Não é mesmo um azar, caro leitor, que o roubo nunca tenha chegado ao Supremo Tribunal Federal?

Os presidentes americanos iniciam guerras sempre que surge alguma dificuldade interna. Não importa o país, não importa a desculpa: roda-se o globo e, onde o dedo parar, aí estarão os marines, em questão de semanas. É claro que se o dedo recair em alguma potência militar ou econômica, recomenda a prudência proceder a novo sorteio. Assim, os panamás, os afeganistãos, os iraques, as granadas estarão sempre às mãos.

No caso da escapadela de Elba, foram 100.000 mortos. Nada mau, para um passeio. Mas não teria sido preferível deixar Napoleão na confortável vitrina insular?

Não compreendo as escolhas das multidões, de forma que ora me detenho ante esse mesmerizador de massas, militar prolixo, homem de vasta fúria. Deixo de condenar Paul Johnson, autor do resumo que me serviu de base, por entender que suas ingenuidades e omissões são sinceras e estão na média dos historiadores cristãos, embora enxergue certa inconsistência entre os atributos
 historiador e cristão.

Outubro de 2004.


Homero

Li, inauguralmente, a Odisséia e a Ilíada, nessa ordem. Na página final da Odisséia, escrevi, com previsível inadequação: “Parece que Homero, seja quem for, fundou o imaginário ocidental. Eu me sinto assim. Até a religião, as preces em meio à batalha: o molde é muito claro. A confusão de deuses também. Por outro lado, percebe-se que a narrativa envelheceu em alguns pontos: modernamente, todo crime, todo assassinato, todo roubo e saque e pilhagem são feitos em nome do amor, da caridade, da fraternidade. Não me ocupa a questão homérica. Um compilador inventivo ou uma reunião de gênios, o que importa é a obra, apreciada há 2.800 anos. Harold Bloom opina que o escritor da Ilíada também escreveu a Odisséia, poeta de gênio. Outros pensam que não só os autores são diferentes como cada obra foi compilada por muitos autores, a partir de copioso material preexistente. E apontam falhas constrangedoras: o muro de Tróia deixa de existir a certa altura, para logo depois voltar, incólume, numa demonstração de inconsistência textual. Termino agora a Ilíada. Para ser sincero, não gostei. Absolvo-me de relê-la. Do que li, ofereço este impossível resumo: Canto ingente. Deuses vulneráveis, cheios de intrigas. Escuríssima noite sobre muitos, acertados pelas costas: cruores pouco edificantes. O tratamento dispensado por Zeus a Hera é constrangedor; a narrativa de deuses rancorosos, com problemas trabalhistas; a lista telefônica épica do canto II; as impiedosas repetições de cantos, tudo fatiga o leitor. O caráter marcadamente infantil dos deuses, a discutível moral, o final insatisfatório (para um épico), entre outras inconsistências, aborrecem o leitor moderno, justamente atarefado, e sugerem que a obra finalmente será entregue ao esquecimento. Não sei como as mulheres lêem, hoje, as presepadas machistas que infestam o texto. Entrego Homero às mulheres, recomendando sua aniquilação. Assim, se na Odisséia louvei o gênio, na Ilíada, solicitei o julgamento do porco chauvinista por um tribunal imparcialmente feminino. Acuso Homero de ter-se ocupado em demasia com churrascos suculentos e descrições minuciosas de ossos e carnes sendo esmagados para a diversão de deuses ociosos. Claramente, Homero merece um leitor melhor que eu. Campo Grande (MS). 30.5.2004.