sábado, 17 de maio de 2014

Aventura no Jalapão

Ao norte de Palmas, por uma estrada ingrata em poeira e lonjuras, situa-se o Jalapão, realidade geográfica que agrega dunas e rios, ajustados a um cerrado amarelo.

Lá nossos guerreiros quiseram férias. Pescadores, no ordinário, eles talvez iam velejar o rio em zodíacos, remando. Um velho Unimog quatro eixos os sacudia, na poeira.

Amigos de farra, pinga, batizados e safadezas, os integrantes dessa liga malvada não estavam de brincadeira. A farra atraía, a sem-vergonhice unia e a empresa ou o casamento dos filhos lhes davam ares de “família”.

Que era só fachada para a buliçosa cafajestada que congregava aqueles bandidos, sexagenários.

Libério, sessentão, usava cabelos brancos, dentes amarelos e anel de farmacêutico, para nada.

Altamir se dizia jipeiro e conduzia uma loja de artigos de pesca.

Katchaça, policial rodoviário e piloto de paraglider, não tinha realmente como explicar o patrimônio, já descontado o zelo com que assistia na casa das meninas.

Wilson, bem. Ora nos ocuparemos do fácil Wilson. Sorriso, vida, obra e (principalmente) ética fácil. O sorriso do Wilson, como tudo o mais, era de ameia; a ética, contexto-dependente. Roliço, mais pescoço que gente, o Wilson encerra uma ofensa àqueles que acreditam na humanidade. Ou pelo menos um desafio.

Wilson tinha um problema. Ao longo de sua vida, surgiam e desapareciam chácaras, o que é mesmo um aborrecimento. O autor destas notas, por exemplo, nunca teve acessos de chácaras em seu patrimônio, mas o Wilson sim, twice, à salvo da inveja, do rancor do Fisco. Aposto que o leitor nunca pensou profundamente uma chácara ou, se o fez, foi só em desfrutes.

Pois eu vos digo: era uma vez, um que se chamava Wilson e tinha uma chácara. Fatalmente, cedo ou tarde a propriedade contrairia um caseiro. Estudemos de perto esse caseiro adventício. Apresentado, guloso, mais indigente que gênio, ele tinha uma bananeira. Melhor: a chácara tinha uma bananeira, em frutos. Wilson namorou o cacho um tempão e, dado o gostoso dourado próprio aos frutos, previu colheita incontinênti para a próxima visita. 

Se o destino não fosse tão mesquinho. No agendado veraneio a senhora Wilson escorrega e quase se arrebenta no chão forrado de cascas de banana, que o caseiro ignorava.

Pra mim é difícil explicar o Vílson. É de quem mais gosto, o que não quer dizer tenha renunciado à necessidade de enforcá-lo. Culparemos o Wilson por tanto azar com chácaras? Seria excessivo e tedioso. Enforcaremos o Virso? Provavelmente.

Mas o Libério. Será honesto falar do Libério? Quem sabe sim. Não quero falar do excelente Libério, mas alguém terá de exercer essa fadiga (e denunciar o degenerado), antes que o tempo o faça santo e profeta (do ateísmo), acima do bem e do mal.

Elejo Libério o mais inadmissível do grupo, fosse mensurável a maldade desse bando de devassos, teóricos e práticos.

Consta que a expedição era ecológica. Logo, todo o lixo devia ser coletado, sem exclusão dos dejetos do banheiro. Outros que não depravados ateus teriam postado o banheiro químico no lugar mais discreto, com paredes respeitosas evitando olhares constrangidos para os negócios que ali sucedem, sem que ninguém tenha culpa. 

Um trono aberto – zona franca – se instalou bem no meio da praça recreativa que toda noite se improvisava em algum canto aprazível rio abaixo, e nele grassavam iniquidades.

Primeiro a reinar? Libério, o Amazônico, esse carnavalesco prenhe de escândalos ruinosos e difíceis. 

Em tempos ele fez uma dúzia de cirurgias, cuja necessidade permanece um mistério até para os médicos. Acontece que boa parte dessas cirurgias envolveu como direi, sem ofender famílias honestas e trabalhadoras? o edicétera liberiano. 

Libério operou em segredo, com médico desconhecido, fugindo ao tipo errado de notoriedade, especialmente em família. As intervenções tiveram sucessos variados, dependendo do ângulo que se olhe: uma deixou nosso Libério tão largo, e com o perímetro tão mal definido, que passou a ser chamado "estuário", e a decência exigia o uso de fraldões.

Um Libério assim expandido, em cueiros, não podia prevalecer num mundo em geral hostil. Uma cirurgia reparadora deixou Libério tão fechadinho que os frutos do esforço – se assim os pudermos chamar – eram finos como caneta esferográfica, e não ornavam com o aplicado glutão que sabemos.

Nas pescarias, ele arriava as calças com a sem cerimônia com que um petista coloniza e arruína uma estatal, e do barco mesmo cravejava o rio com poemas aromáticos. Data dessa época o apelido pouco lisonjeiro: "poeta". 

Com a sucessão de cirurgias, não sabíamos em que fase Libério estava, suas aspirações e com que diâmetro obrava.

Praguejando e lançando injúrias, do alto do trono unificado ele insultava o mundo com miséria montante. E a turma pirava: O rei vai obrar!

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Segundo na hierarquia, Saulo, o Horrível, se esforçou na gritaria e impropérios, mas não era páreo para a majestade liberiana. 

Pacheco se afetava fotógrafo, e excedia em nikons e acessórios. Num passeio, gostou de uns marimbondos, que gostaram mais ainda dele. 

Tal sorte de caganeira vitimou Juvenal que, bem, deixa pra lá.

Apesar de tudo, receio seja meu destino prestigiar Libério, em detrimento de iguais heróis que povoam estas páginas.

Conseguirá nosso homem se desincumbir de seus misteres, assinalar uma biografia? Certa feita ele "se permitiu" indevidamente num elevador lotado.

– Sinto que de mim saiu virtude – mofou, para o público entrevado na cabina.

Virtude, ele disse virtude!

Em outra feita, estacionou a sofrida CG 125 em local proibido. A essa altura já se sabe: Libério sóbrio é ficção; à pé, um alvo legítimo; de moto, uma obscenidade provida de cofrinho. Pois ele abandonou essa moto à saída de uma rotatória. Dois guardas, dentro da viatura, deitavam poemas ao talão de multas, à vista da absurda espingarda enferrujada, prontamente submetida a guincho.

Que dizer desses consumados pervertidos? Bêbados colossais, trataram de dar expediente no Jalapão, e não é possível precisar a licitude dessa bossa.

2014.