Como a
ciência explica o envelhecimento e o fim da vida (republico, com correções).
William R.
Clark, catedrático do Departamento de Biologia Molecular, Celular e do
Desenvolvimento da Universidade da Califórnia, apresenta-nos à morte no nível
das células.
Ele liga sexo
e morte, uma associação de evidente mau gosto. A prova do raciocínio não o
exime do aborrecimento.
O sexo é uma forma perdulária de reprodução,
diz o autor. Pode até ser, mas os sete bilhões de pessoas no mundo – para ficar
só no exemplo humano – provam que também é muito divertida.
Ele diz que a
morte chegou cerca de um bilhão de anos após o surgimento da vida, quando todos
eram (e sabiam ser) imortais, como as bactérias e os vírus (algumas células
cancerosas também têm o potencial da “imortalidade”).
Foi assim:
Famintas por
hidrogênio, as cianobactérias fotossintéticas
aquáticas (que deram origem às plantas) fabricaram – sem querer – um gás
mortalmente corrosivo, capaz de destruir quase todas as moléculas orgânicas em
que se baseia a vida: o oxigênio.
Após essa “cagada”
de escala planetária, ocorrida há austeros 2 bilhões de anos, as bactérias
começaram a desenvolver especializações para se protegerem desse gás.
Sob pressão do
meio, as bactérias (reino das formas mais simples de vida: o Monera) resolveram mudar, o que gerou
novos reinos, como os proctotistas e
os fungi, que incluem seres tão
desprezíveis quanto os mofos e as amebas, além de consumados patifes, como o Plasmodium (causador da malária).
O que foi essa
mudança? A invenção do núcleo celular, com uma capa protéica protetora. Em seu
caminho evolutivo esses organismos duplicaram seu DNA numa maçaroca de “corpos
coloridos”, protegida por proteínas especializadas, chamadas histonas. Esses cromossomos passaram a ser lineares, em
vez de circulares, como nas bactérias e, as pontas, a ser revestidas
por estruturas especiais de DNA chamadas telômeros, para evitar que as
extremidades grudem na própria estrutura ou em outros cromossomos.
Duplicado e encapsulado
num núcleo – em vez de ficar balangando pra lá e pra cá no meio celular – o
material genético proporcionou vôos mais ousados à evolução, o que levou ao
aumento da célula (um proctotista
como o paramécio, por exemplo, tem tranquilamente um milhão de vezes o tamanho médio
de uma bactéria), e ao início de estruturas especializadas, como citoesqueletos – que propiciaram à
célula movimento – e microtúbulos,
para engolfar materiais extracelulares (expediente também chamado de alimentação).
Peço permissão
para citar longamente o autor, com uma ou outra licença poética:
Parece que algumas bactérias começaram a
achar que o interior de proctotistas maiores e mais avançados era um lugar
bacana para viver e criar uma família.
Elas se tornaram parasitas. Como a maioria dos parasitas bem-sucedidos, estas
bactérias ganharam confiança. Por exemplo, algumas bactérias aparentemente
desenvolveram defesas contra o oxigênio; umas poucas chegaram a desenvolver
meios não só de neutralizar o oxigênio, mas de usá-lo para produzir energia.
Isto deve ter impressionado certos proctotistas, que aparentemente assimilaram
por endocitose algumas destas bactérias que respiravam oxigênio. Em vez de
digeri-las para obter alimento, eles as converteram em partes permanentes da
célula protista. Não era o que as bactérias
tinham em mente, mas, no fim, todas as
células eucarióticas adquiriram parasitas intracelulares semelhantes.
Essas organelas,
produtoras de energia através de um processo químico envolvendo adenosina moléculas
tri e difosfato (há uma “sobra” de energia, utilizada para tocar o dia-a-dia), têm
seu próprio DNA, de filamento único e em geral circular, transmitido
exclusivamente por linhagem materna. Esse DNA não está associado a histonas e
contém genes de estrutura notavelmente procariótica. Creio que as provas são conclusivas
quanto à origem bacteriana dessas usinas, que não ignoram o nome mitocôndria.
Luca
Cavalli-Sforza descreve assim toda essa confusão:
Podemos encontrar milhares ou dezenas de
milhares de mitocôndrias em cada célula; no mínimo uma vai estar sempre
presente. Tem o formato de uma pequena bactéria e provavelmente é o que ela é:
uma bactéria que há mais de um bilhão de anos adaptou-se a viver em simbiose
com a célula e tornou-se um componente importantíssimo, assumindo exatamente a
função de central energética.
Um suprimento
assim formidável de energia abriu caminho para o crescimento da célula, apenas obstado
por uma propriedade geométrica: o volume
de uma célula aumenta em proporção ao cubo
de seu raio, enquanto a área da
membrana de superfície – local por onde os nutrientes entram e os dejetos são
expelidos – aumenta somente em proporção ao quadrado
do raio. Logo, o crescimento torna as células muito mais volumosas (e pesadas)
que grandes. Um cubo de 1 cm
de lado tem uma superfície total de 6 cm² e volume de 1 cm³. Um cubo com 2 cm²
de lado terá 24 cm² de superfície total e volume de 8 cm³. A razão
superfície/volume do primeiro cubo é de 6:1, enquanto a do segundo é de 3:1.
O leitor entendeu,
não é mesmo?
Ah, deixa pra
lá. O importante é aceitar que, se você é uma célula, é melhor se associar a
outras para enfrentar as adversidades do meio, em vez de tentar ficar do
tamanho do mundo.
Após muitos
arranjos, incluindo vários núcleos, ou várias cópias dos cromossomos (configuração
poliplóide), as células resolveram se associar em organismos pluricelulares.
Foi aí, em algum lugar pelo caminho dos moneras aos
proctotistas, há cerca de um bilhão de anos, que a morte que conhecemos – a
morte como uma conseqüência inescapável da vida – apareceu pela primeira vez.
Era a estréia da morte programada.
Disse,
algures, que os indivíduos unicelulares são imortais.
Serão mesmo?
Os primeiros moneras unicelulares
reproduziam-se assexuadamente em um processo simples chamado fissão. Nesta
forma de reprodução, uma determinada célula replica seu DNA de forma autônoma e
depois se divide em dois clones perfeitamente iguais, cada clone descendente
recebendo uma cópia do DNA. Estas células amadurecem e cada uma delas produz
dois clones idênticos e saudáveis. Assim, o organismo – o unicelular – nunca
morre verdadeiramente. Afinal, onde está o corpo? Pode haver morte na ausência
de um cadáver? Estas células são na verdade imortais.
Em
conseqüência, os organismos que se reproduzem por fissão simples, como acima,
não conhecem a senescência,
o envelhecimento gradual e programado das
células e dos organismos que elas compõem, independentemente dos acontecimentos
no ambiente. A morte do organismo por senescência – a morte programada – fez
sua aparição na evolução mais ou menos na época em que surgiu a reprodução
sexuada. Tanto o sexo como a morte programada começaram quando a grande maioria
dos organismos ainda era unicelular.
(...) do ponto de vista biológico, “sexo” e
“reprodução” são dois fenômenos inteiramente não-relacionados. O sexo refere-se
somente à troca ou recombinação de toda ou parte da informação genética – o DNA
– entre dois membros da mesma espécie. Reprodução é simplesmente isso – a
reprodução de cópias adicionais de uma dada célula. “Reprodução sexuada”,
portanto, significa troca de informação genética em combinação com a reprodução
celular.
Na forma mais
simples de vida, sexo é assim: dois indivíduos unicelulares se conjugam, permutando parte do acervo
genético. O processo de fissão garante que cada uma delas fique com cópias de
cromossomos ligeiramente embaralhados e recombinados, o que significa dizer que
aumentou a variação genética, uma maneira
de as espécies conseguirem se adaptar a um ambiente em transformação,
permitindo ainda o reparo ou a eliminação de erros genéticos.
O sexo rapidamente tornou-se a forma
dominante de reprodução entre todas as formas de vida subseqüentes. Por quê?
Para as bactérias que se reproduzem somente
por fissão, a imortalidade é garantida automaticamente; a imortalidade para
todos os outros depende de fazer sexo.
II. Sexo e
morte.
Existem
sutilezas envolvendo os paramécios e outros proctotistas ciliados, que terminam
por revelar o nó górdio da questão. Neles, surge, pela primeira vez, a segregação
de DNA a ser usado para fins reprodutivos
(conjugação) do DNA usado para orientar a operação diária da célula.
Assim,
determinadas cópias do DNA é separado e utilizado exclusivamente para a
reprodução. A outra parte (composta de células somáticas) é utilizada no metabolismo
do corpo, sofre inúmeras divisões (por fissão sem recombinação genética) e, no
afã de manter o organismo em funcionamento, acumula muitos erros de replicação.
Essas mutações
não são compensadas nem corrigidas por sexo meiótico; as células somáticas não
trocam nem recombinam DNA com outras. Sua função é garantir a sobrevivência e
transmissão do DNA guardado pelas células germinativas, segregadas e inertes,
até o momento da reprodução sexuada.
Já podemos ver
que a morte surge da separação entre DNA
somático e germinativo. Só as células germinativas conservam o potencial da
“imortalidade”. Elas podem deixar o corpo, combinar-se com outras células
germinativas e produzir uma progênie. Quando
isso acontece, o relógio da senescência da célula germinativa é zerado.
O DNA da célula somática não recombinado
torna-se não só redundante, como também irrelevante. Esse refugo genético,
leitor, somos eu e você.
Resumindo:
O impulso para
um tamanho cada vez maior foi obstado por uma lei da física (a célula fica
pesada e volumosa; a área relativa menor impede trocas eficientes com o meio:
alimentação e secreção ficam prejudicadas). Os organismos, pressionados,
acabaram descobrindo a pluricelularidade, associação entre organismos
inicialmente independentes, com benefícios mútuos. Esse mesmo impulso levou à criação de DNA extragerminativo
(somático). O advento do sexo na reprodução fez o que era necessário para
destruir o DNA somático no final de cada geração.
Isto porque o reparo de DNA somático (não-reprodutivo) é
espinhoso, caro e, no final das contas, não vale e pena. O DNA somático teria de ser alterado, de modo
a refletir a composição do DNA reprodutivo novo e produzido sexuadamente. Isto já seria difícil no DNA macronuclear de
um ciliado unicelular; em animais pluricelulares, está fora de cogitação. É
mais fácil simplesmente destruir o velho DNA somático e recomeçar. Se o DNA
está em células separadas, as células também morrem. Infelizmente, estas
células somos nós.
A essa altura,
creio poder apresentar esta tese do autor, um susto: a morte não é um correquisito automático da vida. Determinadas
células tumorais, por exemplo, comportam-se exatamente como organismos
unicelulares primitivos: proliferam assexuadamente, por fissão simples, e nunca
se “cansam”. Produzem cópias de si mesmas indefinidamente, bastando alimento e
oxigênio ilimitados (desde que evitada a superpopulação). O “relógio” delas está
perpetuamente zerado; elas não envelhecem nem morrem. Como as células
germinativas, elas são potencialmente imortais.
O mais famoso
conjunto de células cancerosas do mundo, chamado HeLa, já produziu, num cálculo aproximado, cópias num total de 2
elevado a uma potência de 15.000 zeros!
Como é que se zera o relógio? Através da reprodução com
embaralhamento genético. Uma célula somática poderia zerar seu reloginho, desde
que tivesse as estruturas genéticas que reparam o DNA, corrigindo os erros
acumulados. Assim, poderia gerar cópias novinhas de si mesmo, sem erros, e se
“tornar perpétua”.
Isto é
possível para células indiferenciadas, como as células iniciais dos embriões,
mas não para aquelas que formam organismos desenvolvidos, como nós. Nestes, as
células expressam segmentos diferentes do acervo genético. Os demais loci ficam inacessíveis, para sempre
(diz-se, da parte acessível, que fica aberta
para se expressar).
Estou
simplificando demais a questão, por modéstia ou falta de conhecimentos (tenho
certeza que alguém vai aparecer com um monte de exemplos de relógios zerados,
das maneiras mais loucas), mas é mais ou menos isso, sim senhor.
Final.
Imortalidade
de quem?
A
“imortalidade” de uma bactéria, ou de uma célula cancerosa, incapazes de saber
o que seja morte, não faz o menor sentido. A nossa dependeria de um mecanismo
perfeito de reparo dos erros acumulados na reprodução das células somáticas,
necessária à manutenção da vida (a reconstrução diária dos órgãos e tecidos).
Imortal, mas
com modificação, é o código genético, apenas, em nós como nos vírus e bactérias.
Já andaríamos
bem se garantíssemos vida digna, com duração razoável, a toda a humanidade, sem
extermínio das demais formas de vida ou exaustão dos recursos ambientais.
O expediente
da associação de células, que garantiu sucesso diferenciado aos nossos
ancestrais, e permitiu que emergisse uma consciência, cobrou seu preço. A
separação entre células encarregadas de construir e operar um vetor para os
genes, e as células reprodutivas, portadoras do projeto de novos vetores, levou
à necessidade de destruir o material genético desgastado, cumprida sua
finalidade: passar à próxima geração o acervo genético.
No final,
fatigados, encaminho-nos todos ao inefável descanso, legando aos filhos (portadores
de uma determinada apresentação de nosso pool
genético) o mundo. O autor faz uma abordagem inteligente do problema, levanta
muitas questões, força-nos a pensar.
Nesta tentativa
de resumo gastei meses, porque queria entender do que se trata. Naturalmente, o
texto é muito mais rico que estas notas, simplórias. Terei de estudar um pouco
mais o tema, absolutamente fascinante.
Campo Grande,
31 de março de 2007.