sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Adriano Pires e Abel Holtz

Em 2013, para o então ministro Guido Mantega conseguir fechar as contas, foi feito o primeiro leilão do pré-sal no regime de partilha. Naquela ocasião, o governo, sempre em tom populista e ufanista, anunciou que leiloaria a maior reserva de petróleo do mundo, o chamado Campo de Libra. Como seria uma joia da coroa, o governo estipulou o bônus de assinatura em R$ 15 bilhões. Uma pedalada de primeira.

Apesar de toda a propaganda que antecedeu o leilão, só apareceu um consórcio, formado por Petrobrás, Shell, a Total francesa e duas empresas chinesas. As razões para haver um só consórcio e, consequentemente, para o insucesso do leilão foram as de sempre: instabilidade regulatória e insegurança jurídica. Mas o governo atingiu seu objetivo: arrecadar R$ 15 bilhões e fechar as contas de 2013. O fim justificou os meios.

É sempre bom lembrar que a grande sacrificada foi a Petrobrás, que acabou ficando com 40% do consórcio, quando, de acordo com a Lei da Partilha, poderia ficar com apenas 30%. Mas isso foi necessário, pois, caso contrário, não haveria nenhum vencedor do leilão e o governo não atingiria o objetivo de arrecadar os R$ 15 bilhões. Este ano, o governo também precisa fechar suas contas, e, como a Petrobrás está quebrada, a solução foi apelar para uma nova pedalada, desta vez no setor elétrico.

Em 2012, no auge de suas políticas populistas e eleitoreiras, o governo publicou a Medida Provisória (MP) 579, que tinha como objetivo reduzir as tarifas por meio da renovação das concessões de usinas hidrelétricas. Na propaganda do governo, isso seria possível porque essas usinas já estavam amortizadas, então os consumidores seriam agraciados com tarifas menores, contemplando só a operação e a manutenção dessas usinas. Na época, Cesp, Cemig e Copel resolveram não aderir à MP 579, alegando, com razão, que prejudicariam seus acionistas, pois a tarifa oferecida pelo governo causaria total desequilíbrio econômico e financeiro nas empresas. As empresas do grupo Eletrobrás foram obrigadas a aderir à MP, por ordem de seu acionista majoritário, o governo federal, mesmo em prejuízo dos acionistas minoritários.

Passados dois anos (principalmente após as eleições de 2014), o governo, por meio da MP 688, muda a MP 579 e pretende cometer mais uma pedalada contra os consumidores de energia elétrica. A pedalada vai ocorrer se o Congresso Nacional aprovar a MP 688, permitindo que o governo promova o leilão das 29 usinas hidrelétricas da Cesp, Cemig e Copel.

Para atrair investidores e arrecadar R$ 17 bilhões, o governo resolveu que nós, consumidores, pagaremos uma espécie de imposto pelos próximos 30 anos. A mágica é passar da tarifa de R$ 36/MWh, definida pelo próprio governo na MP 579 como valor necessário à operação e manutenção das usinas, para R$ 137/MWh. Ou seja, um aumento de quase 300%. Com isso, cria-se uma taxa de retorno acima dos 9%, para interessar os investidores, e nós financiaremos o governo para que ele possa receber os R$ 17 bilhões e "fechar as contas".

Pode ser que o atual quadro político financeiro e a bagunça regulatória obriguem o governo a repetir a pantomima do leilão de Libra, e veremos a constituição de um único consórcio, com a presença da Eletrobrás, para vencer o leilão de todas as 29 hidrelétricas. Três observações importantes merecem ser feitas: 1) estes R$ 17 bilhões não acrescentam nenhum novo MW ao sistema elétrico; 2) o governo está nos obrigando, na forma de um imposto mascarado, a pagar mais uma vez usinas que já estariam amortizadas; e 3) essa pedalada significa um aumento de tarifa de cerca de 3% a 4%. Com a inflação mais despacho térmico e câmbio de Itaipu, calculamos aumentos médios de 20% nas tarifas ao longo de 2016.


Conclusão: o setor de energia continua sendo usado pelo governo com o único objetivo de arrecadação fiscal, sem nenhuma preocupação em resolver as questões regulatórias.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Samuel Pessoa

(...)
É mito que o gasto social tenha crescido no período Vargas e sido reduzido na ditadura militar. Há crescimento suave e contínuo desde a República Velha até o fim do regime militar, forte crescimento após a redemocratização, um salto em FHC e outro maior com Lula.

Por exemplo, o gasto público com o ensino fundamental entre 1932 e 1964 foi constante, na casa de 0,8% do PIB. De 1964 até 1970, subiu para 1,5% do PIB e atingiu 1,7% em 1984. Com a redemocratização, há um salto no gasto público com o fundamental para 2,5% do PIB em 1986, nível em que permaneceu até 2004.

O mesmo ocorre com a taxa bruta de matrícula. No final do Império, as taxas de matrícula no fundamental eram da ordem de 7%. Cresceram ao longo da República Velha para 27%. De 1933 até 1984, cresceram lentamente, até atingir 104% em 1984 (a taxa bruta pode ser maior que 100% em razão de alunos que cursam o ciclo fora da idade correta).

Para o ensino médio, a melhora substantiva ocorreu logo em seguida ao golpe militar, quando as taxas cresceram de 7% para 32% em 1977. O segundo salto do ensino médio foi de 1994 até 2003, quando cresceu de 40% para 80%.

Nos anos 1950, as taxas brutas de matrícula no fundamental eram da ordem de 55% e o gasto público total com educação, da ordem de 1,5% do PIB. O gasto público por aluno no fundamental era de 10% do PIB per capita; no ensino médio, era de 100% do PIB per capita, e, no superior, de 1.000% do PIB per capita.

A escola pública dos anos 1950 expulsava os filhos dos pobres ainda no fundamental, em razão das elevadíssimas taxas de reprovação, e em seguida gastava com os filhos dos ricos dez vezes mais no médio e cem vezes mais no superior.

Minha colega do Ibre Juliana Cunha construiu série do gasto total com Previdência desde 1920. Não há nenhuma descontinuidade perceptível na série até a redemocratização, quando há forte aceleração. É conhecido que o grande salto no gasto social foi a universalização da saúde com o SUS e a criação da assistência social não contributiva aos idosos, ambos após a redemocratização.

No governo FHC, o gasto social cresceu 0,17 ponto percentual do PIB por ano, e, no período petista, até agora e em razão da bonança econômica, o crescimento foi de 0,29 ponto percentual.

Assim, o que diferencia FHC do PT no governo não é o crescimento do gasto social, mas sim o excesso de intervencionismo estatal no petismo, para estimular o desenvolvimento econômico. É a mesma diferença que há entre a República Velha e o período do nacional-desenvolvimentismo.

Aprendemos nos últimos anos que gasto social e intervencionismo estatal não cabem ambos no Orçamento do Estado brasileiro. Márcio Holland (...) reconhece (...) que a crise atual não tem causas externas nem resulta do ajuste fiscal do ministro Levy. Antes tarde do que nunca.

domingo, 25 de outubro de 2015

Gustavo Franco

(...) A inflação é: (a) um aumento generalizado nos preços; ou (b) a perda do poder de compra da moeda?

Se você escolheu a opção (a), está diante de um fenômeno social complexo, pois é preciso pensar como é que o padeiro se comunica com o barbeiro e com os produtores de tomates, pepinos, aço e computadores, e também com as companhias aéreas e restaurantes, para todos aumentarem seus preços mais ou menos na mesma velocidade.

Talvez eles leiam os mesmos jornais, de onde aprendem sobre os andamentos da moeda e do crédito público, pois afinal, se existe uma única coisa a unir esses personagens da vida produtiva brasileira, é que todos querem moeda em troca de seus bens e serviços. A moeda é a “cafetina universal”, para usar uma expressão de Shakespeare, que Marx gostava muito de repetir.

É claro que isso nos leva à opção (b): é claro que a inflação também é a perda de poder aquisitivo da moeda, as duas alternativas estão corretas, um velho truque docente, muito usado nos vestibulares.

(...)

Seria chocante se dissesse (...) que o papel-moeda é uma tecnologia de pagamento que tende ao desuso, ao menos desde os anos 80, e que os contadores dos bancos centrais desse planeta não sabem ao certo se a moeda emitida nessas instituições tem a natureza de uma dívida.

Nos cruzeiros de 1942 estava inscrito nas cédulas que “se pagará ao portador desta a quantia de ...”, e vinha escrito o valor da cédula. Uma promessa pagável com o próprio instrumento, uma estranha redundância. A inscrição depois foi substituída por “valor legal” e, anos mais tarde, por razões hoje compreensíveis (talvez um desabafo), os dizeres passaram a ser “Deus seja louvado!”

Veja no balanço do Banco Central a conta “meio circulante”, que diz respeito ao papel-moeda em circulação: o saldo é R$ 196 bilhões para setembro/2015, tratando-se claramente de um passivo não exigível, embora não pertença ao patrimônio líquido. Veja, agora, a estatística para a “Dívida Líquida do Setor Público” e seus componentes. Lá está a “base monetária”, dentro da qual está o “meio circulante”.

Bem, o papel-moeda não é bem dívida do Estado, e esta, por sua vez, quando encarnada em títulos da dívida pública, ou dívida mobiliária, parece moeda, daí se falar em “quase moeda” pois, afinal, é muito líquida e é com ela que o Estado paga suas contas.

Não seria razoável pensar a moeda e títulos da dívida pública como uma coisa só, apenas expressões diferenciadas do “crédito público”, um atributo intangível que pulsa conforme a qualidade do governo?

Acho muito apropriado definir o meio circulante como uma espécie de ação preferencial ao portador, emitida pelo Estado, em pequenas denominações e que o Banco Central distribui pela rede bancária em troca de papel-moeda velho e, às vezes, em troca de outros tipos de dívida do Estado.

Outra maneira de ver é tomar a moeda como dívida, mas na forma de um instrumento perpétuo e sem juros. Visto assim, é fácil ver que o Estado preferirá sempre se financiar com esse tipo de obrigação. Porém, a sociedade necessita muito pouco desse instrumento e cada vez menos. A ideia de “rodar a guitarra” e abusar da emissão desses papéis, ou de moedas metálicas, está cada vez mais obsoleta, pois a demanda é muito limitada. A guitarra do século 21 é a dívida.

Aqui no Brasil, desde 2011 o TCU obriga o Banco Central a divulgar o tamanho de suas receitas decorrentes do poder de emitir moeda. Foram R$ 12,7 bilhões em 2014, equivalentes a 0,23% do PIB, já deduzidos os custos de produção desse acréscimo (R$ 487 milhões). Não é muito e não se vislumbra como isso possa crescer.

Pois bem, diante dessas definições, a ideia que o papel-moeda vai acabar, por conta do plástico e do tag, para não falar de milhas ou do bitcoin, parece especialmente grave diante da ansiedade recente em torno do monstro que dá título a este artigo. Na presença dessa criatura alienígena recém-chegada, segundo se diz, o governo não terá alternativa senão imprimir vastas quantidades de papel-moeda para pagar suas contas, inclusive a dívida pública.

Mas como se dará tal coisa se o papel-moeda está destinado à extinção?

(...)

De fato, a vida ficaria muito mais difícil para a bandidagem na ausência de dinheiro em espécie, pois tudo transitaria por bancos deixando rastros para os agentes da lei. Foi assim que pegaram o doleiro Youssef, por exemplo, e se desenrolou o novelo do “petrolão”.

Quanto ao financiamento do Estado sob dominância fiscal, todavia, não vamos escorregar na nossa ansiedade: é tudo uma questão de preço. Pague-se mais juro que o povo aceita mais dívida, e esse tem sido o caminho percorrido faz muitos anos. O Brasil não tem a maior taxa de juros do mundo porque seus poupadores são campeões mundiais de ganância, mas porque tem o Estado mais endividado do mundo em proporção à riqueza do país. O monstro não é de outro planeta, nem é desconhecido: mora em Brasília há muitos anos e vinha emagrecendo até 2008. A partir daí, Dilma Rousseff, seguindo conselhos econômicos da pior espécie, resolveu terminar a dieta, e a criatura recomeçou a crescer.

Quanto mais dívida, mais juros, simples assim. Não há nada de novo nesse assunto de dominância fiscal, apenas mais clareza sobre como a política fiscal esmaga a política monetária, o que é um grande progresso.

Saint Giles Le Bains - Reunião