terça-feira, 24 de junho de 2008
segunda-feira, 23 de junho de 2008
domingo, 22 de junho de 2008
O Egberto
Egberto, esse rapaz impreciso, descuidado dançava. Não era obeso. Tampouco se pode dizer que era magro. Passava pelas farmácias e pesava-se sem dor na consciência ou promessas de regime. Nem caluniava o órgão público de aferição das balanças. Nas minhas contas (e teremos de crê-las), Egberto era um rapazola nos idos dos 30 e alguns anos, sem neura nem psiquiatra. Também não consta fosse alcoólico, crente ou funcionário público. Era pacato, vivia de magro ordenado que não era tão magro assim, supria a feira, algum lazer, a escola dos filhos. Que tinha Egberto, para merecer algumas linhas?
Egberto dançava. E não sabemos desde quando. Dançar não capitula crime, não ofende nem acende vinganças. Portanto não sabemos desde quando ele se encontrara com os requebros, que, no caso dele, não eram indecentes. Quase não atingiam a escala do sensual, tão madura e sem culpa era sua dança.
O que impelia Egberto para o delito, já mais de uma vez condenado pela esposa? Num povo pândego e prazenteiro como o brasileiro, que mal haveria no gingado inocente e, por vezes, inconsciente, do Egberto? É preciso que se diga: em bailes e ocasiões propícias, com a amada esposa dançava Egberto, para o divertimento conjugal. Nada além de uma dança, a comum dança de salão sem exibicionismos. Não despertavam inveja a ninguém. E então, como é o negócio da dança?
Bem, Egberto, ao sentir-se (ao sentir-se, sem os abomináveis complementos que nos condicionamos a acrescer, sem razão) dançava, e nessa dança sentia-se (complemento não precisa). Quando só, sem doença, dançava. Quando triste, sem motivo, dançava. Mesmo quando recolhia as compras à volta do supermercado, sem testemunho ou remorsos, dançava. Egberto, essa dança. Quando alegre, se as companhias permitiam, dançava.
Egberto não era mulherengo. Os maledicentes afirmam que jamais conheceu outra mulher, após o casamento, o que eu não confirmo nem nego. Egberto, inocente, de tanto amor por sua mulher, dançava. Às escondidas.
Egberto, como resolver-te? Espadanando surpreendia-se Egberto, sem querer, sem poder, chalaceando o duro andar. Oscilava músico interno entre os egbertos latentes, semi-assumidos, hemi-assimilados, em direção ao Egberto, conhecido cidadão de uma cidadania laica.
Havia veneno no olhar da esposa? Não creio. Apenas que o eterno bailado adernando aquela massa de corretor imobiliário não era o normal ponto de união de um casamento quanto ao mais harmônico. Como detê-lo? E havia necessidade? Também Teresa não sabia de pronto responder.
Certa noite, desce Egberto à razão, com estranha aura de espanto, maravilhamento, incredulidade: havia sonhado. Com música, um concerto nunca objeto de contrato.
No palco desenvolvia-se um chou como que de um AC/DC em ponto de fusão com Pink Floyd e uma clássica orquestra, secundados por um Kiss-Queen, aparato sonoro vastíssimo, num palco em domínios de arrostado Zeppelin. A certa altura, a guitarra começou o terrível arranjo, longo, ravélico, que anuncia ventos de helicóptero. Ao longe ensaiavam, alçavam homens vietnâmicos ao céu escanhoado por luz estimulada. Súbito deu-se autorização e a aproximação tornou-se inevitável. Notas perdiam-se, ingressavam os demônios crocitando seus rotores. Iroquois seguidos por Black Hawks garroteando sob estrondo tribal a porta procênica. Soubemos que também não tocariam o palco. Desovaram seus rebentos a poucos metros da incrédula claque, havia perigo. Baby-guns acariciavam o solo, também ouviu-se, embora o tablado permanecesse firme ao som do melhor dia de nossas vidas. Estrias de arrepios coletivos varavam a platéia, conduzindo-se ionizada sobre as cabeças. Como começar o espetáculo? Não o presenciei do início (cavalarias aladas confirmavam o perigo). Talvez tenham principiado pela derrubada de mais um tijolo do muro, talvez um tanque tenha expulsado um violinista pelo nariz, e este tenha permanecido em longo solo de resistência até que o canhão o fez desaparecer sob o fogo de Dante (muitas coisas são possíveis). Veículos leves adentraram como cães ligeiros, perfumaram com ondas de rádio-ataque a espinhosa caixa cênica. Muitos se profissionalizaram. Uniformes eram verdes por todo lado, e havia demasiado munição anti-pessoal. Teriam minado todo o palco? Não me arrisco a dizer. Penso que houve correntes de generais cruzando os universos de palcos possíveis com essa granada nas mãos.
O reconhecido sino do AC/DC compareceu numa versão maior, tomado em empréstimo à comuna de Sarajevo, com badaladas embicando troares lanhosos, e acho que foi rendido por um dos tanques retintos de pisar músicas.
Guitarras começaram então solos muito além do princípio dissonante, evoluindo para uma competição férrea, estabelecida, entre seus vários distorcedores, cada qual com seu timbre maciço, brioso, escatológico. Discursos múltiplos, concorrentes, proferiram, sem que uma mensagem se definisse. Solos fremiam, urravam, fendido que estava o ar, militarizado.
Egberto conduzido queria saber, queria ver, e ouvia a precipitação da platéia. Quem teria reunido tão formidável mó? Haveria guerra? Onde os planos, as partituras, os mapas?
Pausas se quiseram no contemplar do nosso herói, enquanto baixos de alta tonelagem discursavam duros, intransigentes, a fala algo blues que as demais cordas a seu tempo arengavam: o que o estaria condenando a uma terra tão conflagrada? Como sobreviver, se ao par de tanto riscos, a multidão a cada momento dava provas de estar mais inclinada para a dança? Tinha certeza de que não poderia sair vivo daquele concerto. Até então não lhe ocorrera que algo como um hipnotismo coletivo poderia facilmente pôr a perder o que pensara em construir ou pelo menos manter: a própria vida.
Por fim tomaram todo o palco. As últimas dúvidas dissiparam-se. O derradeiro número começou como os demais, aos poucos, não se sabe quem, por quê. Apenas começou, e logo estabeleceu-se uma aragem de som profundo que ascendia a escala decibélica sem modéstia. E já qualquer orquestra estava a somar esforços com os metais, a cordas de qualquer banda, e a percussão parou de brincadeira (até então abstivera-se de solapar os limites do ouvido humano). Agora as coisas caminhavam sem detença para uma explosão final e, enquanto esta não se dava, cordas de todo calibre e timbre se estavam reunindo em algum ponto do roteiro da guerra, violinos, craviolas, violões e guitarras de várias espacialidades; celos, baixos analógicos, e a percussão.
A começar de pianos-fortes (que ninguém sabe quem trouxe), a percussão se prontificou a demolir o planeta de uma vez. Quantos ninhos de bateria havia no palco, tambores japoneses, pratos de todo raio, caixas chinesas, qualidades de toda monta de membranas fibrosas ou metálicas, ninguém sabia, e entraram a percutir solos alucinados, enlouquecidos.
Por fim reunidos se fizeram tremendos, com falas gritadas, exasperadas, acordantes, dissonantes, replicantes, até atingirem a escala do inefável, maciços deslocamentos de ar, a força (proibida para a espécie humana) dos decibéis a arrancar elétrons de suas órbitas normais, os cérebros cozinhando em ressonância nas ondas encapeladas maremotantes (estava próximo o fim).
Como o hipopótamo cor-de-rosa de Machado, exatamente em seu estertor, outorga o trabalho onírico a Egberto uma transmutação, e a banda, a multidão, moldam-se em lençóis, em penumbra, na voz da filha, que a essa hora sem dançar cantava.
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