Stieg Larsson escreveu uma trilogia desconcertante, toda ambientada no nosso por vezes risível século 21.
Lisbeth, a heroína franzina, é uma hacker capaz de esvaziar as contas de um bilionário sueco, pouco antes de entregá-lo a seus ex-sócios de um cartel cocaleiro, para a morte certa. Ela tentara matar um espião russo evadido (seu próprio pai) duas vezes. Na terceira parte da trilogia ela conseguirá, é a nossa torcida sincera.
Comecei por aí, fui progredindo à segunda e por fim cheguei à origem de todo o Mal.
Stieg lança uma grave acusação contra o gênero humano, embora muitos enxerguem apenas os petardos lançados contra os homens que não amam as mulheres, eufemismo para o ódio gratuito, sistemático e total contra vítimas indefesas.
A prosa não pertence à alta literatura, não pretende. Não precisa. Mas, uma vez que se comece a ler, é impossível não ir até a última página, e à primeira da próxima parte, em qualquer direção. A morbidez, a violência extrema, a sucessão do inacreditável, a covardia do homem comum, o insólito em cada parágrafo.
A certa altura, estamos às voltas com a polícia secreta sueca, e com o que parece ser a estrutura estatal mais bisonha e grotesca de guarda da Constituição dentre os países dignos desse nome: a Constituição sueca é guardada por uma polícia política!
Estado e igreja ainda não se separaram, o rei detém poderes absolutistas (como na vizinha Noruega) e eles não têm um tribunal constitucional... Todos os ingredientes para o florescimento de uma ditadura brutal, mas a Suécia é uma exuberante democracia: rica, próspera, esclarecida e exemplo entre as nações.
Em meio ao paradoxo, movem-se com desenvoltura um jornalista brilhante, e seus amigos, uma jovem sem nenhuma competência social e criminosos implacáveis, que capturaram parte do estado sueco, inerme.
Na vida real Larsson denunciou neonazistas e a extrema direita xenófoba, intolerante e sedenta de pogroms que assola a Escandinávia. No dia 22 de julho Anders Behring Breivik massacrou 77 noruegueses, jovens como ele. Descrito como fundamentalista cristão e ultradireitista - e também maçom, segundo ele mesmo, embora a filiação a essa seita permaneça secreta - esse facínora ilustra o tipo de demência social em cuja profilaxia Stieg se empenhava.
A novela resulta uma pungente denúncia da prática, tolerada e acobertada, de predação, em todas as suas múltiplas formas. Quando se conhece a intensa atividade anti-nazista de Stieg, percebe-se que a obra se lança contra toda forma de violência, inclusive a praticada por instituições bolorentas ou equivocadas do estado moderno. Mas é claro, seu alvo principal é o terrorismo racial, religioso e político. O mesmo que atacou na vizinha Oslo - cidade encarregada da entrega do prêmio Nobel da Paz - enquanto eu velejava na aprazível Lofoten.