terça-feira, 7 de fevereiro de 2006

Toronto

Nesta cidade acolhedora termino a aventura. Foram oito paises, numa sucessão vertiginosa de idiomas, religiões, culinárias e gentes. A India, já viram, não me fez bem. Resta defesa para pessoas fracas, como eu. A miséria brasileira entristece, incomoda. Já a India é o permanente suicídio da alegria. O Canada é moderno, rural, elegante e discreto. Sua vastidão gelada ignora fronteiras e vai até onde se exaure o Norte. A matriz do povo recebeu generosas contribuições de estrangeiros, sem prejuízo da harmonia. Fui às Niagara Falls, sob tempestade. Ficou clara a invasão de prédios e outras urbanidades indevidas a essa reunião das águas. Quem conhece Foz do Iguaçu sabe da necessidade de preservar esses jorros de alegria da natureza. Em temperaturas mais amenas, creio que me adaptaria muito bem a esse gigante amistoso e fácil. Toronto, 7 de fevereiro de 2006.

Dever Cívico

É sempre um prazer ler o blog do Josias de Souza. Abaixo, ele faz uma desabafo digno da nossa situação, pouco civica. Convido o leitor para um breve exercício de reflexão: Houve um tempo em que poucas experiências se comparavam ao prazer de entrar na cabine eleitoral. Lembra? Sentir, diante da cédula, aquela sensação gostosa. Os quadradinhos limpos, vazios, intocados, à espera do seu rabisco. Era um instante simbólico, o pedaço de papel esperando por uma atitude. E você, convencido da sua relevância, assumia compromissos consigo mesmo: dessa vez vou caprichar. Serei um eleitor exemplar. A realidade está aí mesmo, diante dos meus olhos, esperando que eu a modifique. A ditadura militar tinha ficado para trás. O país parecia ter voltado às suas mãos. Lembra? De volta à cabine eleitoral, você hesitava antes de marcar o “X” no quadradinho. Ficava indeciso: fulano ou beltrano? Partido “A” ou legenda “B”? E, finalmente, deitava sobre o papel a sua decisão. Como se fosse um testamento para as gerações futuras. Seu zelo podia consumir minutos intermináveis. O bastante para que o pessoal da fila começasse a fazer cara feia. Mas você queria cumprir com o seu dever cívico. E deixava a seção eleitoral com aquele semblante virtuoso. Sentia-se um rei. O voto era seu cetro metafórico. A urna eletrônica diminuiu o romantismo. Mas não suprimiu a solenidade. Você manteve a fé renitente na democracia. Continuou acreditando que estava participando de um ritual superior. Fechava os olhos para as evidências em contrário. Hoje, você já não se reconhece naquele eleitor piegas de antigamente. Lembra da frustração dos dois Fernandos. Vê com tristeza a metamorfose do Lula e do PT. E começa a refletir sobre o hediondo paradoxo em que se transformaram as eleições. O voto ficou cada vez mais corriqueiro e fácil. Ao mesmo tempo, a opção do eleitor nunca pareceu tão irrelevante diante do que fazem, no governo, os seus escolhidos. Onde você enxerga vocação política e carisma não costuma haver senão pretensão e picaretagem. Você começa a entender melhor o espírito da democracia. Descobriu que o seu papel na história não é o de protagonista, mas o de otário. Tenta resistir à desesperança. Mas não consegue. Já não vai à urna por gosto. Comparece porque a lei o obriga. Se pudesse, iria à praia ou ao shopping. Você agora já sabe: para que a hipocrisia continue funcionando, alguém precisa exercer o seu papel de otário. Você diz a si mesmo que não é um otário qualquer. Considera-se um otário consciente. Raciocina com os seus botões: os otários são necessários. Dão suporte à democracia. A hipocrisia passou a ser uma forma de patriotismo.