sábado, 19 de agosto de 2006

Stálin

Simon Sebag Montefiore, o jovem historiador britânico de quem tomo emprestadas as citações que seguem, nega o caráter enigmático de Stálin, embora reconheça sua “inescrutabilidade de esfinge e modéstia fleumática”. Passeando por suas páginas, não me escapou que há, sim, muito de enigma nesse nosso personagem. Haveremos de resolvê-lo? 1. Retratos. Loquaz, sociável e excelente cantor [gostava de entoar hinos religiosos, não sem fervor], esse homem solitário e infeliz arruinou todas as suas relações de amor e de amizade ao sacrificar a felicidade à necessidade política e à paranóia canibalesca. Marcado pela infância e de temperamento anormalmente frio, tentou ser um pai e marido amoroso, mas envenenou todos os poços emocionais. (...) Acreditava que a solução para todos os problemas humanos era a morte e foi obcecado por execuções. Esse ateu devia tudo aos padres [não por nada jesuítas] e via o mundo em termos de pecado e arrependimento. (...) Sob a calma lúgubre dessas águas insondáveis havia redemoinhos mortais de ambição, ódio e infelicidade. Dono de um humor de verdugo, disse a respeito da fracassada tentativa de suicídio de seu primogênito: “não conseguiu nem atirar direito”. Egotista exigente, nunca lhe ocorreu dar “felicidade” a quem quer que seja. Estafava as pessoas, que dele fugiam, com grande perigo para a manutenção de suas cabeças sobre os ombros. Era emocionalmente atrofiado e carecia de compaixão, mas suas antenas eram super-sensíveis. Era anormal, como todos os políticos. Stálin dialoga com sua mãe, Keké: “Por que você me batia tanto?” “Por isso você ficou tão bom”, respondeu ela, antes de perguntar: “Iossif, o que você é agora exatamente?” “Bom, lembra do czar? Pois é, sou uma espécie de czar.” “Você teria feito melhor se fosse padre”, disse ela, comentário que deleitou Stálin. Ignoro se o diálogo acima é verossímil. Impressiona o nível de ódio latente, apenas sugerido. Mas tudo isso é ninharia frente ao homem por inteiro. A grande dificuldade quando de lê sobre um monstro, ou mesmo sobre pessoas normais, é que, mesmo diante de evidências, as pessoas recuam e não concluem o que deve ser concluído. Ou só o fazem parcialmente, como se vê das citações. Uma grande perda de tempo. Do começo. Lênin tomou de assalto o estado russo, contando com a colaboração de conhecidos criminosos, muitos sonhadores e alguns idealistas. Difícil é explicar como aquela monarquia inepta, sem apetite nem vocação para governar, não ruiu antes. A “vanguarda” dos bolcheviques, composta de muitos jovens que estavam com as mãos sujas de sangue da brutalidade da luta, via-se como uma minoria isolada e combatida, que governava nervosamente um império vasto e arruinado, também cercado por um mundo hostil. Não tardou e Lênin descobriu que o desdém que devotava aos operários e camponeses era mútuo. Ele propôs órgão único para governar e supervisionar a “criação do socialismo”: o Partido. Então, improvisaram um sistema peculiar: O órgão soberano do Partido era o Comitê Central (CC), compostos por cerca de setenta membros, eleitos anualmente pelos congressos do Partido, que depois se tornariam menos freqüentes. O CC elegeria o pequeno Politburo, um supergabinete de guerra que decidia as diretrizes políticas, e um secretariado de cerca de três secretarias para governar o Partido. 2. O que foi a Revolução Russa? (...) uma mistura fervilhante e estimulante de intriga conspiratória, bizantinismo ideológico, educação acadêmica, disputas entre facções, casos amorosos entre revolucionários, infiltração da polícia e caos organizacional. Stálin – sete vezes exilado – era um revolucionário profissional. Os czares eram policiais ineptos. Inadvertidamente, ao parecer, patrocinavam férias de leitura em distantes aldeias siberianas, com apenas um gendarme de plantão em tempo parcial. Ali os exilados se conheciam, se correspondiam com seus camaradas em Petersburgo ou Viena e tinham casos com garotas locais. Quando lhes era conveniente, atravessavam a taiga até o trem mais próximo e “fugiam”. Foi assim que Koba (Stálin) evadiu-se seis vezes. Ali seus dentes começaram uma didática trajetória rumo à deterioração. É notório que ele fazia jogo duplo, delatando seus colegas para a Okhrana, polícia secreta czarista. Com isto, comprava favores (que incluía penas marotamente leves e fugas incrivelmente facilitadas), livrava-se de alguns rivais e aprendia a manipular suas vítimas - “companheiros”. Em 1922 Lênin teve uma idéia não muito iluminada. Manobrou para nomear Stálin secretário-geral do CC para dirigir o Partido. O secretariado de Stálin era a casa de máquinas do novo Estado, dando-lhe os poderes imensos que ele exerceu no “caso georgiano”, quando ele e Sergo anexaram a Geórgia. Somente Lênin podia ver que Stálin estava emergindo como seu mais provável sucessor e então ditou secretamente um testamento em que exigia sua demissão. Sua agonia final – providenciada por Stálin, a não sermos ingênuos – abriu a este o caminho para o alto. O testamento foi ignorado. Sendo o mais feroz, Stálin não teve dificuldades para afastar os demais pretendentes, principalmente Trótkski, intelectual judeu fundador do Exército Vermelho. O lance de “genialidade” veio quando, ao perceber que a trajetória de Hitler na Alemanha, a partir de 1933, era um caminho que levava, em linha reta, toda a Europa para a incineração, ele começou um expurgo em escala inimaginável. Em resumo, matou todo mundo que poderia, remotamente, constituir uma ameaça a seu poder, quase total (não nos ocuparemos da farsa brancaleônica de colegiado representada pelo CC e pelo Politburo, com membros agrilhoados por dossiês e outras patuscadas). Era fácil demais para ele aterrorizar todo mundo, já que heróis até o meio dia, à uma da tarde evoluíam a espiões, traidores e sabotadores. Fácil assim. De repente, um marechal herói de guerra era delatado por algum subalterno, preso e torturado até confessar crimes só imagináveis por mentes doentias ou pueris. A seguir Stálin sacava outra autoridade, depois outra e assim matou os mais valorosos e também muitos bandidos e alguns genocidas, como ele. Ele sempre escolhia um carreirista sedento de poder para dirigir esses massacres intermináveis. Ao cabo de alguns anos esse torturador era sacado – caía como dente de tubarão – sendo imediatamente substituído por outro açougueiro na chefia da polícia secreta e ramificações. O terror de intensificou inacreditavelmente em 1937 e anos seguintes, o que coincide com a iminência da mais devastadora guerra européia. Isto é um desafio. Como divertimento inicial, na noite de 8 de novembro de 1932 Stálin provocou ciúmes maníacos em Nádia, sua segunda esposa, revolucionária que ambicionava carreira própria. Após uma discussão acalorada na frente dos príncipes comunistas, Nádia subiu para o quarto. Tinha histórico depressivo, mas o que se passou na madrugada foi que Stálin a matou com a minipistola alemã que o irmão presenteara a ela. Os hematomas no rosto do cadáver atestam que Stálin não conseguiu induzi-la ao suicídio, tendo dado uma mãozinha ao destino. Para quê? Tirar uma mulher de gênio forte do caminho não era tarefa que um revolucionário genocida negligenciasse impunemente. Brevemente, os convidados daquela noite iriam começar a liqüidar uns aos outros. 3. Stálin freqüentemente é visto como uma vítima indefesa frente ao gênio de Hitler. Não é assim. A julgar pelos resultados, o grande jogador era Stálin. Hitler era o histérico indutor de loucuras que necessariamente terminariam em tragédias, como o Estado-Maior do exército alemão sempre soube. Mas as sobrenaturais vitórias iniciais de Hitler destruiu a salutar resistência a ele no interior do Estado alemão. Seja dito que o miraculoso rearmamento alemão, e as vitórias iniciais foram incentivadas reservadamente pelas potências vencedoras da 1ª Guerra Mundial - EUA, França e Inglaterra - obcecadas pela idéia de conter a maré vermelha, cujo epicentro era o império de Stálin. Apenas uma atitude a tal ponto maníaca explica por que Hitler tornou-se mágico, santo, estrategista miraculoso, invencível. Seus desejos mais temerários se transformaram em imperativos categóricos, mesmo para o Alto Comando alemão. Até 1942. Não tenho elementos para demonstrar que o verdadeiro estratega era Stálin, não Hitler. Algumas coisas: Stálin sabia do maciço ataque alemão, anos antes que ocorresse (o "pacto de não-agressão" Molotov-Ribbentrop - depois renegado com sarcasmo por Stálin "hein, Molotov, lembra daquele seu pacto?" - foi uma brilhante estratégia de adiamento do ataque, encetada por Stálin). Ele foi avisado por inúmeras fontes, mas tinha enxergado no ataque um meio de conseguir todo o poder. Conseguiu. Deixou Hitler carbonizar o império vermelho, para garantir o poder absoluto (ele deve ter calculado que os alemães acabariam massacrados). Deve, ainda, ter antecipado a entrada do jogador principal (EUA), as fanfarronices militares de Hitler e a impossibilidade da Alemanha resistir em duas frentes superpoderosas. Mas, e se os EUA não tivessem apoiado violentamente o esforço de guerra soviético? Sobre os escombros do império vermelho, Stálin teria sido fuzilado por seus camaradas, com grande entusiasmo. Como, no fundo, ele não era um gênio, é obrigatório que tivesse informação valiosíssima sobre os movimentos dos EUA. Teria sido, Stálin, uma “criação de si mesmo”? Pouco importa. 4. A morte de um demônio. Doze horas após o derrame, Stálin ainda roncava num sofá, úmido de sua própria urina. Apesar de seus cuidados paranóicos quanto a ser envenenado, Béria havia “batizado” seu vinho (georgiano) com warfarina, substância da moda na época, com a interessante propriedade de diluir o sangue da vítima. Mais uma vez, Montefiore: Béria “vomitava seu ódio a Stalin”, mas sempre que as pálpebras do generalíssimo tremiam ou seus olhos abriam, Béria, aterrorizado com a hipótese de que ele se recuperasse, “ajoelhava-se e beijava sua mão”. (...) Quando Stálin mergulhou de novo no sono, Béria praticamente cuspiu nele, revelando sua ambição irresponsável e falto de tato e prudência.
Béria era o último dente de tubarão da engrenagem. Já estava desgastado, em fase de desgraça oficial, e seu público destino era ser substituído por outro gentil genocida, mas dessa vez a vítima sacou primeiro (guardadas as diferenças, eu teria feito o mesmo, só que muito antes).
Enquanto os melhores médicos soviéticos estavam na prisão, os incompetentes chamados para acudir Stálin não tinham coragem de operá-lo. Béria exigia uma “garantia de vida” para o enfermo. Um respirador artificial foi trazido – após iniciar-se o padrão moribundo de respiração – e jamais usado, o que ornava com o surrealismo daquele “tratamento médico”. Após cinco dias habitando um sofá rodeado por seus camaradas, Stálin empalidece subitamente, sacode a cabeça e vomita sangue, efeito da warfarina no estômago.
Lábios azulados, já praticamente sem pulso, ele começou a se afogar nos próprios fluidos. É de sua filha o relato do mergulho final: “Seu rosto estava pálido”, escreveu Svetlana, “seus traços ficaram irreconhecíveis [...]. Ele literalmente se sufocou até morrer enquanto observávamos. A agonia da morte foi terrível [...]. No último minuto, abriu os olhos. Foi um olhar terrível, louco e irado e cheio de medo da morte.” De repente, o ritmo de sua respiração mudou. Sua mão esquerda se ergueu. Uma enfermeira achou que era “como uma saudação”. Ele “parecia estar apontando para algum lugar acima ou nos ameaçando a todos”, observou Svetlana. O mais provável é que estivesse simplesmente agarrando o ar em busca de oxigênio. Váletchka, criada pessoal de Stálin há 18 anos - mais provável instrumento de Béria no envenenamento - caiu pesadamente de joelhos sobre o corpo. Até sua morte, sustentou que “nunca houve homem melhor na Terra”.
A História é amoral, muito amiga de farsas e repetições ociosas. Ora não temos o companheiro Fidel?

quinta-feira, 17 de agosto de 2006

Lula sabia

Todo mundo que compra Playboy diz à esposa que é "por causa das entrevistas". Compro por causa das entrevistas, está claro, mas raramente me ocorre lê-las. Neste agosto mesquinho, deparei com a seguinte entrevista: Playboy: o Senhor acha que o presidente Lula sabia do mensalão? FHC: impossível não saber. Acho que ninguém acredita que ele não sabia. Ainda me lembra uma foto de FHC e Lula, na porta de uma fábrica em São Bernardo, distribuindo panfletos aos operários. Iniciavam os vacilantes anos 80, se não me engano. Ali, fazendo apologia a greves e outras infantilidades sindicais, dois futuros presidentes, prováveis 16 anos de mandato (a acreditarmos nas pesquisas), quase o mesmo tempo de ditadura... A história é mesmo estranha, e às vezes capricha. Enquanto isso Fidel (quase meio século de escabrosa ditadura) se prepara para um encontro com a mãe de todos os déspotas.