Na Paulista, pressa à pé (os carros, vitimados pela luz vermelha e pelo engarrafamento, não podem se dar a esse luxo). São Paulo não tem jeito. Corre-corre sob chuva fina. Os negócios evoluem. Vim a negócios, mas cabe diversão. Vou ao zoológico, e a alguns restaurantes. Talvez consiga ver algumas peças de Samuel Beckett, em cartaz. Quem sabe veja "Esperando Godot", se eu conseguir ficar mais um pouco... Avenida Paulista, 6 de abril de 2006. |
quinta-feira, 6 de abril de 2006
Avenida Paulista
terça-feira, 4 de abril de 2006
Os relógios
Consultando minhas gavetas, constatei que quatro dos meus relógios de pulso são citizen. Não procurei essa marca, nem qualquer outra, e me resignei a essa desnecessária repetição.
Um relógio foi comprado na 13 de Maio, em uma relojoaria, por ser do leve titânio, e recolher a energia luminosa para seu uso particular. Sua proposta é de economia; foi aceita.
Noutra ocasião, uma vendedora fez-me ver que eu precisava de um relógio com medidor de temperatura. Estava de viagem para Ushuaia, último endereço antes do Pólo Sul. Na agenda também constava um deserto, ora gélido, ora tórrido. Temendo essa oscilação, comprei o relógio, que teimosamente aponta para um promédio entre minha temperatura corporal e a ambiente. Foi comprado na 14 de Julho.
O terceiro comprei num mall center em New Jersey, próximo ao aeroporto de Newark. Era uma tarde cinza e gélida, adequada à devoção consumista. O mall era daqueles labirintos infindos, repletos de mercadorias mascadas pela indústria asiática. Pareceu-me que eu precisava de mais aquele relógio, talvez por suas placas pretas em cerâmica, talvez por seu preço. Comprei-o e ele povoa com destemor minhas gavetas de guardados.
Não me lembro por que (diabos!) comprei o quarto citizen, se ele não passa de um relógio pesado, com calendário manual (detesto calendários em que todos os meses têm iguais 31 dias).
Talvez a explicação para tantos citizen esteja no meu primeiro citizen, pintado de amarelo, adquirido por minha mãe numa loja de departamentos num Shopping Center de Salvador, nos começos de fevereiro de 1986.
Calendário digital, mostradores analógico e digital, alarma, despertador e cronômetro, o reloginho me acompanhou por mais de quinze anos, até sumir. Era confiável, leve, discreto, elegante e, mais ainda, leal: tudo que se aprecia, em relógios ou pessoas. Nunca me roubou horas; não me sonegou dia algum, nem tentou a emenda do século findo. Enfrentou com galhardia a assombrosa aproximação do novo milênio, de maus presságios, para as pessoas inclinadas aos maus presságios.
Mais do que o excesso de citizen, horrorizou-me a constatação de que diferentes relógios de mesma marca ajustaram entre si a astúcia, e cada qual testemunha horário diverso dos outros três, sem régua possível de correspondência que me indique horário neutro, isento da superstição dessas agulhas rebeladas.
Assim, se um me indica o nascer do sol, outro diz que o café da manhã é passado, que até cabe um almoço.
Um terceiro sugere um mundo autônomo, feito de tarde ida, e café contra o sono. O quarto, se alcançado, mira exemplos de horários nunca pesquisados, pouco estáveis, de difícil apreensão. Horários de Marte; horas talvez lunares.
A fiscalização desses fragmentos horários é tarefa aborrecida. O tempo, em distintas partidas, solapa a noção de causa e efeito, destruindo qualquer possibilidade de encontro, de convergência.
Essa assincronia me trouxe agravos, e pensei dar cabo dessa leviandade perdendo os relógios sob o peso de uma montanha.
O tempo escapando entre os dedos não é sensação confortante. A desnecessária repetição de atos que outros presidem com alegria; a petição de quereres embargada no desautorizado discurso das setas horárias: tudo transcorre incerto, sem governo ou probidade. O pôr-do-sol abjurado por mecanismos viciados, cingidos internamente por códigos de falecimento.
O que esses relógios querem de mim? Terão percebido a proximidade do horizonte de eventos, a capturar luz e matéria? Estariam tentando retardar, com essa concertada anarquia, a marcha do espaço-tempo para a aniquilação?
Não sinto o tempo nem mais nem menos que qualquer outro condômino do planeta. Não uso desmedidas porções de tempo, não o desperdiço, não o desprezo nem o venero. O tempo é apenas insumo frágil, perecível, para a indústria nossa do dia.
Não tenho, como Drummond, vastas reservas de tempo, futuros, pós-futuros, esperando que meu desejo e miopia as tornem manhãs. Nem consigo postar-me fora do tempo, no conduto de algum túnel einsteniano.
O tempo é pauta mínima para a consumação da vida. Considero-me realista, sei que a segunda lei da termodinâmica jamais será vulnerada. Físico algum sequer pensaria nisso. Então a desordem, o caos, seguirão rindo de nossos esforços de ordenar o mundo, mesmo que apenas mentalmente. No vasto campo em que o mundo se experimenta e se permite um soluço, grassa o escandaloso desequilíbrio termodinâmico chamado vida.
Se os espelhos de Borges súbito se punham a divergir da realidade espelhada, muito pior a conduta desses marcadores do tempo. Sem qualquer instrumento de calibração que me permita pô-los de acordo, resta aquiescer ao desmantelo na medição de meus dias. Se tento triangular as medidas, calculando a posição da dimensão temporal pela relação entre os relógios, já me vejo impedido pelo malicioso empenamento, pela expansão, contração e tremor do tecido temporal.
Vigiar o tempo é empresa do orgulho, mais difícil e improvável que a amizade do vento.
Os infaustos relógios de Dalí, sua notável tendência para o derretimento, não atentam contra a realidade como meus quatro relógios citizen. Para meu grande azar, sem eles não saberia as estrelas, não teria acesso ao sol, vegetaria numa bruma transorária em que a ambigüidade do passado se confundiria com a impraticabilidade do presente e do futuro.
A vida se tornaria fatigante exercício da postulação de tempos, cada vez mais arbitrários.
A rigor, meus relógios não me sonegam o tempo: apenas deslocam-se em interna fantasia, fazendo do mundo um suflê de incerteza e caprichos. É perigoso não observar o tempo; devemos ainda tolerar sua platitude. Poderíamos investir contra a primazia do tempo, mas incorrendo em sua ira, com graves conseqüências para a estipulação de causa e efeito; antes e depois se tornariam atributos irrecuperáveis, empobrecendo qualquer possibilidade de ação.
Reúno meus quatro relógios sobre a mesa. Meço o tempo. Não há acordo possível, e tempos distintos arruínam a função de onda com que os físicos descrevem o comportamento da matéria. Incerto, inauguro tempo interno, invariável, e absolvo-me de um mundo amotinado, em benefício de uma proposta de sonho.
Em 2003.
P.S.: O relógio de titânio, dos quatro o mais forte, foi o primeiro a ruir, superado por forças cortantes da confusa noite de Brasília. Previno-o quanto àquela cidade, leitor, sua tendência para o insólito.
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