sábado, 21 de junho de 2008
Uma sátira
I.
Divulgo agora, talvez na esperança de compartilhar com pessoas de conformação moral e espiritual mais elevadas que eu, essa experiência profundamente perturbadora. Divulgo, talvez, para livrar-me desse peso; para tentar ficar em paz com minha consciência.
Durante muito tempo não consegui dormir, após tomar conhecimento dessas contundentes anotações. Hesitei ao longo de alguns anos, talvez à espera de vir a compreender seu significado.
Conheci Winston na faculdade. Era um cara comum, se o termo não for ofensivo, conquanto ostentasse orgulhosa inteligência. Aos poucos, Winston se revelou uma pessoa amistosa, afável, de intelecto irrequieto.
Eu diria que nos tornamos amigos. Não sei se ele consentiria essa afirmação, algo pretensiosa.
Se mais não digo, é porque nada de notável havia nessa amizade, exceto a visível superioridade de Winston.
Ele dirigia as conversas, brincava com idéias, doutrinas. Ciências aplicadas, fundamentos de filosofia, matemática, astronomia. Discursava, defendia e atacava posições. Apaixonava-se por idéias e, quando finalmente eu supunha compreendê-las, elas já tinham caído em desgraça, ou estavam esquecidas.
Eram monólogos, às vezes áridos, às vezes acalorados, e acontecia de eu estar por perto, ocasionalmente. Eu ouvia, tentando aprender, esforçando por esconder minha ignorância.
Faço aqui a divulgação desse libelo contra o cristianismo, e as religiões em geral. Trata-se de uma sátira, escrita sem pretensões literárias, para divertimento de seu redator, suponho.
Agora que se passaram tantos anos do desaparecimento de Winston, e como é voz corrente que ele está morto, faço a divulgação da única e discutível herança dessa esfuziante mente.
De minha parte, não acredito na morte de Winston. As circunstâncias de seu desaparecimento, na ilha sul da Nova Zelândia, a extensa viagem à Ásia, tudo leva a crer que Winston planejou mais uma patranha, e esteja alocado nalgum ponto da orla desse oceano que ocupa metade do globo.
Seu corpo nunca foi encontrado. Seus bens (por volta de duzentos mil dólares) foram liquidados meses antes da viagem e convertidos em moeda americana. Após ingressar regularmente na Índia, fez uso de passaportes falsos, como se descobriu numa extensa investigação.
Passou ao Paquistão, depois Java, Bali, Sumatra, e outras ilhas da Indonésia, Timor Leste, Nova Guiné, Austrália e Nova Zelândia. Não é impossível que esteja, neste momento, num barco de pescador, a caminho de sua milésima ilha nesse largo oceano.
Desapareceu no dia 6 de maio de 2002, nas montanhas que vigiam Queenstown. Foi avistado pela última vez se dirigindo para Milford Sound, de carro.
Para mim, que encontrei guarida na fé cristã, é penoso percorrer as linhas desse relato ímpio. Alguns poderiam enxergá-lo como uma pequena diabrura, produto de uma alma sequiosa de encontrar algo em que acreditar. Às vezes penso sentir pena de seu pobre autor, mas quem sou eu para julgar o imprevisível vulcão de idéias que assolava, a intervalos, aquela mente?
Tremi ao pensar no destino dessa infeliz alma. Se Deus, a quem ele despreza, não se cansa de demonstrar misericórdia, também é um Deus de retidão e justiça. Nem me tranqüiliza pensar que Deus tem um plano para Winston: temi pela força necessária para demovê-lo de sua incredulidade zombeteira.
Não espero compreender a mínima fração da mente de Deus, mas sei que tudo que Ele faz é incensurável e bom para nós, que estamos a sua mercê, saibamos ou não.
Tampouco tentarei esboçar uma resposta aos injustos ataques desferidos contra o sentimento religioso, e a fé cristã. Por várias razões: a primeira é que a sátira foi construída de forma despreocupada, sem qualquer apoio científico ou filosófico. Logo, não requer resposta; a segunda é que a sátira é inexpressiva literariamente, como o próprio autor admite, o que dispensa qualquer réplica; a terceira (e verdadeira), é que não me acho capacitado a debater o que foi escrito, seja qual for sua real envergadura e significado.
De Winston, nascido e criado em lar piedoso, filho de praticantes do protestantismo, talvez possa ser dito:
“O que é curioso é que, divorciado da teologia calvinista, ficou sendo um calvinista sem teologia, isto é, um homem com todos os prejuízos dos sectários dessa fé, tormentos e escrúpulos de consciência, aversão ao catolicismo, intolerância, repugnância pelos judeus, apesar de parecer mais um profeta do Antigo Testamento do que um adepto cristão”, duras palavras aplicadas a Carlyle.
Daí, paradoxalmente, emerge a necessidade de publicar essa sandice: para que pessoas mais bem aquinhoadas possam entender e refutar quanto foi dito, se entenderem necessário.
Não digo isso em demérito ao autor, não.
Passei muitas noites em vigília, invocando Deus, rogando a sua inesgotável benevolência para com os homens carecedores do dom da fé.
Então percebi que devia publicar a sátira, como forma de alertar as pessoas, nesse iludido início de século, de que o discurso científico ou filosófico não são panacéia para todos os males do homem. Existe um espírito, sustentáculo do livre-arbítrio, insuflado por Deus, insuscetível de apropriação pelo cálculo.
Ele se alimenta da virtude que emana de Deus, de sua luz. O amor de Deus, seja qual for o nome Lhe for dado, flui generosamente para a humanidade, salvando-a de si mesma.
Fórmulas matemáticas são boas aproximações descritivas do mundo extensível; teorias científicas são ferramentas importantes para se pensar a matéria, sua constituição e comportamento, mas nada disso provê o homem da matéria-prima da vida: o amor divino.
Jamais alcancei a natureza e os fundamentos das idéias que davam entrevista naquela mente. Mesmo agora, é com assombro que corro os olhos pelo manuscrito que ora apresento.
“Ensaio.
Concebo a idéia. Não consigo saber como um portento desses me ocorreu, mas o sólido fato é que estou prestes a declarar uma nova utopia aos homens.
Bilhões de seres humanos darão a vida defendendo essa minha idéia, enquanto outros bilhões se lançarão como demônios sobre quem a professar, e rios de sangue correrão na batalha pela verdade.
Não sei como expor isto que é mais que um conceito, um sistema filosófico. É uma nova forma de encarar a vida e a morte; uma alternativa a diversas ordens de -ismos; às crenças humanas em geral.
Seu enunciado ainda não formulei; sua mensagem central luta por abrir caminho em minha equívoca consciência. Suas mensagens auxiliares também estão em gestação, e receio que nunca serão apresentadas ao mundo.
Entanto adivinho quão essencial é essa fortuna, e já vejo bilhões de crânios pulverizados por defenderem pequenas heresias, versões ligeiramente amaneiradas dessa fecunda idéia, por outros bilhões de seres ofendidos em sua pureza e ortodoxia.
Vou apresentar uma idéia, revolucionária como algumas outras, radical como poucas. Uma idéia seminal, violenta: um insight fundamental.
É provável que alguma divindade entre como ingrediente, e a teodicéia exija antagonistas rubros, sagazes e falcatos. Apraz-me que o pólo divino seja ambíguo, e que o demoníaco seja desenhado com algum grau de definição moral. Não sei se adoto deus único, formado por quatro partes indissociáveis, ou deuses múltiplos, funcionando em regime de plantão. Um deus único é conceitualmente viável, mas veja-se a tragédia do judaísmo-cristianismo: começou com Jeová “Eu Sou o que Sou”, depois foi incorporando Jesus, e o Espírito Santo, numa confusa povoação do estado divino.
Um deus formado por duas pessoas é arranjo logicamente possível, mas isto é bem pouco para os nossos propósitos. Quem acreditaria em um deus dual? Um deus formado por duas partes, ainda que indissociáveis, levantaria suspeitas de impasse, e suscitaria a noção do duplo, que tanto horror traz à limitada mente humana.
Já um deus ternário apresenta diversas vantagens. Não seria facilmente reduzido a dois pólos, nem teria contra si a maldição do número par, uma classe de número insuficientemente mágica, como se sabe. Também contaria, o seu resultado, com os favores de uma dízima periódica, irracional e infinita, esses últimos atributos encontradiços em deuses, arcanos ou modernos.
Por outro lado, se é vantajoso ser trino, quando se é Deus, surpreendem-se inúmeras virtudes em ser quaternário.
Conheço deuses do Oriente e do Ocidente. Aqueles tendem a ser numerosos, ao custo de uma sensível diluição de seus poderes sobre os hospedeiros. Estes conhecem arianismos, austeridades e paternalismos, no sentido que um urso polar emprestaria ao termo. São muito inclinados a sentir ciúmes.
Todos eles mandam matar com facilidade; presidem guerras com alegria, enforcam crianças e queimam as colheitas dos ímpios, em nome do amor, da bondade, da edificação humana. Sobretudo do amor.
Com quatro seres informando nosso deus, poder-se-ia designar um como guardião de cada dimensão conhecida: as três espaciais e a temporal, atendendo-se às exigências das relatividades especial e geral.
Quatro também são os pontos cardeais, e o crente saberia que Deus é onipresente.
Quatro, ainda, são as categorias apriorísticas de Kant: quantidade, qualidade, relação e modalidade. Isso deveria bastar para revelar a insondável profundidade do número escolhido, sua feliz adequação à composição divina.
Com quatro entidades na Unidade, a eventual crucificação de um deles – e deuses são especialmente suscetíveis a assassinatos conspícuos e a extinções provocadas pelo ingrato esquecimento – não desfalcaria de forma comprometedora a divindade, que três remanesceriam, compondo um verossímil colégio de desígnios a governar, com alguma plausibilidade, o mundo.
Deuses são sinceros nos assassinatos, posto que barrocos: às vezes como algozes, às vezes como vítimas. Não há deus que não se jacte de perpetrar ou sofrer periódicos massacres. Que culto coletivo estaria completo sem um revigorante banho de sangue, um implacável pogrom contra uma minoria (os portadores de sardas, os leitores de Playboy, por exemplo)?
Com Tolstói, dir-se-ia que todos os agnósticos são muito parecidos entre si. Já os crentes, cada qual tenta ser o mais parecido com as idéias a que nomeia Deus.
Os cínicos argumentariam que os crentes são preocupantemente parecidos com o oposto das qualidades divinas em que fingem acreditar. Este não é um tema fácil.
Enfim, quis acreditar um deus que, ao contrário dos deuses em uso, públicos ou secretos, pudesse ser intuído de forma não-contraditória.
Também não me decidi se prestigio a igualdade, a caridade, ou a supremacia do mais forte, como áreas de concentração dessa minha teoria. Se Wittgenstein (II) elegeu a inconsistência da linguagem; Schopenhauer (aos 31 anos) a vontade e sua representação; e Nietzsche (não sem antes detonar a “vontade” em Schopenhauer) a vontade de potência como contribuições filosóficas fundamentais, não vejo por que não possa apresentar essa minha idéia, a um tempo religião, sistema de poder e princípio de sólidas bases científicas.
A primeira, reivindicada pelo socialismo e suas atrozes variantes, pugnava que os seres humanos são sobretudo iguais, querendo nos fazer acreditar que disso derivaria um sistema econômico viável.
Os regimes políticos daí advindos provaram ad nauseam a falácia da igualdade, da maneira mais inimaginável. Erigiram-se, invariavelmente, regimes brutais, em que as pessoas não passavam de insumos baratos e irrelevantes. O estado comunista usou, moeu e descartou seus súditos, enquanto o tirano de plantão vivia de expurgos cada vez mais surreais.
A história desse delírio coletivo ainda está por ser detalhada.
Pretenderam inúmeros cristianismos, a maioria sediada em alguma versão de textos alegadamente sagrados, que a caridade é, entre as medidas humanas, a mais excelente.
A partir do original caridade, erigiu-se o amor em pedra de cantaria desse sistema religioso. Caridade (ou amor) é apenas iuma ideia utilitária, aposta excessivamente óbvia para qualquer profeta sequioso de arrebanhar asseclas.
Cristão seria aquele que ama o semelhante, que doa desinteressadamente, não revida agressões, despreza a riqueza e não pretende o poder, entre outras angelicais normas de conduta (ou, então, o Novo Testamento é um vasto sistema de sarcasmo e duplilinguagem).
Desnecessário dizer, não tenho visto ser assim. Mas, diriam, se não temos flagrado muitos cristãos amando, ou, pelo menos, não assassinando descaradamente o amigo, o irmão, em troca de algumas moedas, isso não invalida o contributo de Cristo, que sofreu na cruz para nos salvar.
Não me sinto inteiramente salvo, e não consigo invejar os remidos. Diariamente eles cometem alguns crimes contra o próximo, antecipadamente perdoados por um Deus de conveniente misericórdia.
Está bem estabelecido que Deus é sempre bondoso conosco e nossa família, mas será que devia demonstrar tanta tolerância para com os ímpios?
Jorge Santayanna, poeta e filósofo, acreditava que o cristianismo é má interpretação literal de metáforas judias. Ele deplorou sua fé perdida, “esse esplêndido erro tão afim com os impulsos e ambições da alma”.
Eu diria que os impulsos e ambições da alma nada têm com as covardias e farsas cristãs, conforme o pressuroso Nietzsche.
Vejamos como a classe média brasileira está sendo instruída no tema. A citação é de uma revista semanal:
'A doutrina que se foi cimentando nos primeiros séculos da Igreja ensina que Cristo tem uma dupla natureza: é integralmente divino e integralmente humano. É divino porque é uma das três formas de Deus (...) e, como tal, existe desde antes da Criação.’
Mais à frente, reproduz-se esta notícia:
‘Os seguidores de Maomé não acreditam que Jesus seja o Filho de Deus, já que o Corão diz que Alá não gerou nem foi gerado, e repudiam a Santíssima Trindade, que violaria o conceito da unicidade de Deus. Mas consideram Jesus um dos grandes profetas e admitem a concepção imaculada – Maria teria engravidado de Cristo, ainda virgem, por intercessão divina.’
Com exceção dessa última parte, acho que os muçulmanos estão com a razão. Os gulosos cristãos, não se contentando com ter em Cristo um dos mais destacados procuradores de Deus, aventuraram-se a decretá-lo seu filho único, membro pleno do board que aporta sarjetas ou bilhões de dólares ao destino humano, num gigantesco bingo.
Reservo-me o direito de não endossar a concepção virginal e a volta de Jesus, temas assaz tormentosos, áridos e de difícil comprovação, após vinte séculos mentirosos.
Outro ponto de contato entre as minhas convicções e as dos maometanos envolve um pequeno detalhe do cristianismo, uma coisinha de nada: a crucificação. Sabe-se quanto Jesus sofreu na cruz para tornar-nos novamente aceito aos olhos de Deus.
Suspeito, contudo, que a crucificação não foi dolorosa o bastante para expiar, verbi gratia, meus pecados, horrendos.
Tivesse o redentor experimentado um câncer fulminante num filho; tivesse mergulhado num Alzheimer profundo; incorrido no destino inexorável de milhões que dependem da saúde e previdência públicas brasileiras, aí se poderia falar num resgate completo das nossas ofensas.
De molde que, como muitos não-cristãos, acredito que o episódio da cruz foi um grande mal-entendido. Parece que aos judeus também repugna a idéia de Deus sacrificando o próprio filho, ou que um inocente deva morrer pela conduta alheia.
Se bem que as objeções hebréias são inconsistentes, tivermos em mente o simulacro do sacrifício de Isaque por Abrãao. A religião foi a mais forte das paixões de Kierkegaard, e preocupou-o singularmente esse sacrifício. Sem conhecer detalhes dessa preocupação, arrisco dizer que o episódio, puramente literário, é outra das teratologias bíblicas, compradas sem critério no supermercado de idéias religiosas de então.
Tudo que Jesus disse, e está na Bíblia, disse-o quase cem anos depois de morto, o que apenas prova a excepcional indústria de seus diligentes médiuns. Se eu deixar para registrar observações sobre um artista, um político ou uma idéia qualquer na semana que vem, ou, melhor ainda, no ano que vem, é provável que um ataque fulminante venha a se parecer com um pequeno panegírico, ou que loas incondicionais e sinceras soem como agressões coléricas. Mas eu não sou divino, deve ser isso.
O fato notável é que, contemporâneos a Jesus, existiam milhares de profetas pregando nos desertos estéreis do oriente médio, Índia, China, Golfo do México, Califórnia, Peru, e na Mongólia.
É possível supor um profeta pataxó fazendo peregrinações ao Monte Pascoal, bradando contra o cinismo oportunista de pajés bem estabelecidos no sistema político da tribo, e anunciando boas-novas, alimentos para os pobres e carregamentos confiáveis de finas ervas.
Uma abordagem estocástica da história é suficiente para mostrar que, entre milhares de profetas, todos filhos de Deus ou seus bastante procuradores, qualquer deles tinha chance de passar à história como proprietários de verdades eternas.
Aconteceu ser um tal Jesus. Poderia ter sido João Batista, ou um egípcio qualquer, um persa, um txucarramãe, um maia. Bastaria posicionar-se na orla de um grande império decadente, e ter um bocado de sorte. O lado excitante disso é que não sabemos se, no futuro, centenas de bilhões de pessoas estarão dando a vida por algum mendigo que hoje perambula pelas ruas de São Paulo, pregando uma nova doutrina, que só será compilada, compreendida e purificada muitos anos após sua morte, conquistada num hospital conveniado ao Sistema Único de Saúde.
Tudo sopesado, fico com a firme impressão que Jesus encarrapitou-se num madeiro, adivinhando uma vaga no Olimpo, só para sacanear a nós, ateus de boa vontade do Século XXI.
Winston.”
Esse manuscrito foi mostrado para o padre Júlio. Padre Júlio deixou a batina há muito, para se casar, mas mantém vida piedosa. É uma das pessoas mais inteligentes que conheço, e dava aula de teologia na faculdade em que eu e Winston estudáramos. Tem, portanto, credenciais para opinar sobre o relato.
Um pouco constrangido pelo que leu, padre Júlio, judeu e católico, entregou-me a seguinte anotação, que utilizo para finalizar estas linhas:
“Chocante. Winston desfere golpes contra tudo em que as pessoas sensatas acreditam. Apesar disso, sustento a inocência do autor ou, pelo menos, a inocuidade de seus ataques.
Vejamos a superficialidade, a ligeireza desses desatinos:
‘Todos eles mandam matar com facilidade; presidem guerras com alegria, enforcam crianças e queimam as colheitas dos ímpios, em nome do amor, da caridade, da edificação humana. Sobretudo do amor.’
Com ênfase doentia, Winston afirma, mas não prova. Não lhe ocorreu que a imputação de semelhantes crimes não pode ser assacada contra Deus?
Outro parágrafo: ‘Deuses são sinceros nos assassinatos, posto que barrocos: às vezes como algozes, às vezes como vítimas. Não há deus que não se jacte de perpetrar ou sofrer periódicos massacres. Que culto coletivo estaria completo sem um revigorante banho de sangue, um implacável pogrom contra uma minoria (os portadores de sardas, os leitores de playboy, por exemplo)?’
Está provado que Winston sequer pretendeu criticar as religiões. Parece que o propósito foi mesmo o de provocar o leitor, mediante chocarrices. Trata-se de mais uma emulação intelectual desse aventureiro do pensamento.
Uma aventura incômoda, é verdade, mas que sequer merece reprimendas, se pensarmos na irrisoriedade dos argumentos. Sua ferocidade, fingida, não deve causar senão sorrisos indulgentes. É assim que vejo o manuscrito do Winston”.
Creio ser justa a crítica; algo condescendente, mas sincera. Eis tudo.
II.
Um segundo texto me chegou às mãos, e ele é difícil. Não tive oportunidade de mostrá-lo ao padre Júlio. Pretende-se um breve comentário à obra de Sören Kierkegaard. É perturbador.
“O cristão Sören Kierkegaard apresenta interessantes contribuições filosóficas ao cristianismo. Ou muito me engano ou seu pensamento, compendiado por Borges, é um consistente programa para o agnosticismo:
Evangélico luterano, negou os argumentos que provam a existência de Deus e a encarnação de Jesus, que julgou absurdos do ponto de vista racional, e propôs para cada crente um ato de fé individual. Não aceitou a autoridade da Igreja e escreveu que cada pessoa tem o dever de optar.
Para ele, não há argumentos que provem a existência de Deus; não há arrimo racional para a encarnação de Jesus. Vamos admitir: o homem é honesto.
Essas ‘provas’ vinham definhando desde Kant, Hume e Locke, já um tanto livres da tutela clerical.
Proponho, em face das documentadas imposturas das religiões em geral, e da cristã em particular, um ato individual de repúdio à fé. Proponho a opção de cada um por nenhum deus, que todos se mostraram ociosos solecismos.
Quem se der ao trabalho de Edward Gibbon constatará a mutação de idiomas e ídolos a que chamamos história. Quem puder aceitar que os fatos da história são perecíveis não há de se importar com a superação da Trindade.
A quem não puder renunciar ao suborno do céu, apresento esse deus ora aprimorado: quatro entes integrados na fraternidade.
Ele dispensa a fé, por conformar sua natureza e verdades aos fatos empolgados pelo conhecimento científico, sem perder sua haura de glória, sua autoridade.
Não haverá fé. Não se concederá o benefício da dúvida a entidades perjuras. Se esse deus disser, por exemplo, que a densidade do universo é maior que o valor necessário para a contração gravitacional, a prova científica de um universo aberto será suficiente para sua incineração e eterna desonra.
Se, por outro lado, suas verdades, mesmo concordantes com a colheita empírica de fatos, tenderem a doutrina, qualquer que seja seu teor de humanismo, esse só fato o fará merecedor de todo repúdio, de toda traição humana.
Não haverá doutrina. Não se permitirá que humanos terceirizem pensamentos e afetos. Cada qual deve sentir por si mesmo, e ninguém terá permissão para colonizar a mente alheia, mesmo que para livrá-la de suposta ignorância.
Ficam expressamente abolidos, enquanto perdurar a humanidade, o pecado e sua horrenda expiação; as oferendas, e seu comércio; a intermediação de espertos e santos; a anuência a toda forma de violência, mormente as praticadas em nome do amor.
Não haverá guerras. A democracia não mais será imposta pelo genocídio. A filantropos como Hitler e Bush não se concederão sociedades flácidas, crédulas e ingênuas.
Convida-se a todos para gentilmente refletir sobre as riquezas humanas: tolerância e edificação solidária do homem, sem ilusões.
Não haverá proselitismo. Inexistem boas novas que não sejam patrimônio prévio de cada homem.
Esses alguns pensamentos a propósito da crítica de Sören Kierkegaard ao cristianismo.”
O texto, digitado em tipos verdana tamanho 14, contém as linhas gerais do pensamento de Winston acerca da religião anunciada (com sarcasmo) no primeiro texto. Não está assinado, mas entranha-se logicamente com a sátira, embora a negue e por ela seja negado parcialmente, como todo texto complexo. A noção de texto definitivo não pertence senão à religião e ao cansaço, diz Borges, acho que com essas mesmas palavras.
Kipling observou que ao escritor é permitido urdir fábulas, mas que lhe é vedado saber a moral da história. Winston, creio, não desmente essa tradição.
Carlos. 2.5.2006.
Muitas histórias
I.
Conheci centenas de pessoas em minhas viagens. A maioria se tornou amiga, embora só em alguns casos eu tenha anotado o endereço. Passados tantos anos, ofereço estes relatos. Ignoro que partes são verdadeiras, quais exigiram mais da imaginação.
Vou começar por Yvonne, moça mal saída da adolescência.
Yvonne tem o mais doce muxoxo já visto. Seus olhos são azul-turquesa, adolescentes, maravilhosos. A missão daqueles olhos é obrigar nossos corações.
Dormimos juntos. Isto é, eu no meu saco de dormir, ela no dela e, ao lado, todo o distinto grupo que me acompanhou pelo Red Centre (o interior da Austrália, seus desertos).
Nunca havia dormido assim, com estrelas por teto e limite. E que estrelas! Pareciam tagarelar momentosas notícias, e o que uma confidenciava, as outras logo refutavam, favorecendo suas próprias versões de um universo ilimitado. Não acredito em estrelas, com a possível exceção do sol, que é sempre correto em seus pronunciamentos.
Com serem dúbias e oscilantes, elas costumam não concordar entre si, o que mais evidencia os males da multiplicação desarrazoada.
Em vão esgotei meus números em busca de uma cifra: as estrelas não se economizam. O leitor deve se lembrar que eu só sei contar até 12 (embora seja capaz de intuir o 20), como relatado alhures. É pouco provável que conseguisse sindicar o céu, suas estrelas bastantes.
Dormi, com Yvonne ao meu lado, e isso me basta. As noites no deserto podem ser frias, alertou Borges. Aquela foi um fogo (o que atribuo à conjunção de astros), e me desesperei de meu saco de dormir. Naquela noite, Yvonne me defendeu do brilho intolerável das estrelas.
Alcancei dormir, e em meu sonho Yvonne narrava para mim a poderosa fabricação de estrelas azul-turquesa.
A alemã careca.
Não sei seu nome. Era do mesmo país da doce Yvonne, de vasta cabeleira em vivas chamas avermelhadas. Não quero mais lembrar de Yvonne, que me custou muitas noites e alguns delírios.
Pois essa alemã era careca, sem qualquer bom motivo. Sua enorme presença impôs um dilema: uma mulher pode ser careca e boa, simultaneamente? (Sim, porque a bondade das pessoas também me ocupa).
Receio que não. Arriscaria dizer que, sendo meio careca, será no máximo meio boa, não muito mais que isso.
Indiferente a esses cálculos, a alemã me distinguia com olhares que não é honesto pormenorizar.
O motorista do deserto.
Também não sei seu nome. Neste relato, será prudente omiti-lo, de qualquer forma. Era um sujeito branco, orgulhoso do aspecto “que me leve o diabo”: cabelos desgrenhados, roupa amassada, camisa aberta, barba por fazer, fala de Pato Donald.
Não quero me ocupar dessa criatura, que não está à altura da Austrália. Basta dizer que quebrou o ônibus no meio do deserto e lá ficou, aparentemente esperando uma intervenção divina, sem qualquer resultado. Turistas menos dóceis o teriam emparedado na primeira meia hora de imposturas.
De outra feita ele desligou o ar condicionado do veículo, seguindo ordens de origem viciada, e apropriou-se de uma garrafa de vinho alheia. O tipinho não vai longe, já se vê. Melhor deixá-lo esvair-se em sua insignificância.
Harvest
Harvest desmente o lugar-comum de que não pode haver americana linda e simpática. Ou é linda, ou é simpática, of course. Claro que é proibido que seja linda, simpática e inteligente.
Harvest nasceu no Maine, extremo norte da América, filha de um farmacêutico. Nos encontramos num ônibus que ia para o parque nacional Torres del Paine. Por seu jeitinho, pensei fosse argentina, ou chilena. A impressão inicial foi reforçada, quando reuni coragem para puxar conversa.
Ela fala espanhol, morou alguns meses em Antofagasta, norte do Chile, onde lecionava inglês. Harvest cativou-me e naturalmente subimos à base das Torres del Paine.
Relatei, alhures, essa aventura, que ora complemento. Ela subia com uns 30 kg de mochila, eu, com vergonhosos 10. Iniciada a subida, vi que teria chance de conhecer aquela menina, de tantos sorrisos.
Ela me presenteou com uma conversa encantadora, riu de minhas piadas e perdoou meu portunhol. Eu não tinha nada a oferecer, então sorri.
Após o encontro inicial, voltei a Natales, ela continuou no parque. Voltei no dia seguinte, direto para o refúgio Grey (não, não omita o r, leitor). Eu escalava uma encosta, quando súbito apareceu-me Harvest, descendo para o refúgio. Foi espanto e alegria mútua, e creio ter visto algumas lágrimas desafiarem o vento cortante.
Harvest veio ao Brasil, mas não me visitou. Em minhas recordações da viagem, a melhor colheita são seus sorrisos.
Fevereiro de 2005.
Jacqueline
Conheci-a na excursão entre Melbourne e Adelaide. Fui o último a ser apanhado pelo micro-ônibus, e lá estava ela, e também Christy, e a motorista loura e cheinha, e seu ajudante (não descobri para que diabos servia aquele ajudante, além de rir de todas as piadas).
Ela fala espanhol, mas acabamos por nos falar em inglês, não sei por que (o fato se repetiu na Nova Zelândia, e isso me rendeu uma descompostura de Vitória, a mexicana “e por que não me disse antes?”).
Jacqueline é suíça, tem um amigo que fala português. Tiramos muitas fotos, nos Doze Apóstolos, mas ela não voou conosco no helicóptero.
O jantar.
No meio do passeio de três dias pelo Great Ocean Road, entre Melbourne e Adelaide, ficamos em um hostel perto de uma reserva florestal. Lá chegamos no final da tarde, e subimos a um morro. Chovia muito, e emprestei meu impermeável azul para Jacqueline.
Não vimos nada de mais nesse morro, além de um horizonte uniformemente cinza. Na volta, as moças (e Juddy, a motorista) prepararam o jantar.
A salada foi construída com tomates, palmitos, muitíssimas folhas verdes e cogumelos secos. Outra salada possivelmente incluía atum e pimentões. Ao todo, eram quatro os tipos de salada.
Jacqueline se ocupou de uma delas, enquanto Juddy preparava pratos quentes, incluindo arroz. O ajudante (agora lembro de sua serventia) assava o aussie barbecue numa chapa a gás. Ultimados os pratos, reuniram-se os viajantes, numa bonita mesa que principiava pela Suíça, seguia pelo Brasil e finalmente abarcava oito nações e vastos continentes.
O vinho correu de boca em boca. Fartei-me com o vinho suíço, e fui convidado para outras vinícolas. Uma alemã baixinha, farmacêutica, forneceu metade do vinho da noite, cujos negócios avançaram inconclusos pela madrugada.
Cedinho, Michelle oportunizou-nos um pequeno escândalo. O namorado de Christy apressou-se a vir reiterar o recato da namorada. Michelle é um encanto, e sua calcinha aparente, e seu sorriso coquete eram motivo de alegria (para uns), e aborrecimento (para outras).
Michelle é uma inglesinha farta. Naquela madrugada, ninguém em sã consciência deixou de sonhar com aqueles seios.
A moça da ópera.
Fiz uma visita guiada à ópera de Sydney, que me rendeu uma foto.
Uma mocinha linda, com um vestido clássico, longo, levou-nos por seus encantos. Tinha um sorriso em que me permiti ver Nicole Kidman: dentes alvos, pequenos e femininos, ainda que não arredondados.
Ela tolerou meu gesto de fotografar a ópera, por dentro, mas a seguir passou sonora descompostura nos demais turistas, por idêntico delito.
Depois da visita ela se deteve à saída. Contentei-me com uma troca de olhares. Linda australiana.
Esther
Esther de Graaf é uma holandesa atlética, farta. Ela trocou-se na nossa frente, tendo antes a prudência de mandar que todos os marmanjos olhassem “para o outro lado”.
Surpreendentemente, esses marmanjos não olhamos para o outro lado.
Quanto a mim, sinto-me justificado, já que ela falou em inglês, idioma que, desafortunadamente, não domino. Tampouco os gestos que ela usou foram claros, para mim (e pelo visto, também para os outros caras).
Que delícia de holandesa.
O chinês
Na excursão por Kakadu Park, um chinês se notabilizou por pequenas brincadeiras, inclusive com Esther, que o espinafrou. Também chamava a atenção pela voracidade na hora dos lanches, e por tentar ser simpático.
No grande barracão repleto de camas, que nos serviu de abrigo dentro do parque, por uma noite, Samy (ou seja lá o que for) lépido subiu para seu beliche. Se subiu lépido, desceu feito um raio:
– something wrong! – ele disse, só porque a cama estava tomada de insetos e terra. Mas de onde ele tirou a idéia de que poderia dispensar um saco de dormir?
O dormitório, coletivo, era dominado por ferozes ares-condicionados, que passaram a noite telefonando para a Sibéria. Naquela noite, dormi com Esther, cada um num extremo do recinto.
II. Conclusão.
De que mais gostei? Das pessoas (das presentes e das ausentes, sua lembrança). De que menos gostei? Da comida na Austrália. Não confundir com a comida australiana.
A segunda coisa de que mais gostei? Um punhado de água colhida a um regato na subida às Torres del Paine, e também do cordeiro patagônico, assado à moda crioula em espetos junto a um fogo de chão, servido no refúgio Grey após 6 horas de trekking montanha acima; e também da caminhada na chuva, às 6 da manhã no 1º do ano, do outro lado do mundo. A chuva fina, o clima agradável, a pacata cidade de Nelson (ilha sul da Nova Zelândia), o café da manhã compartido com cinco nações, a certeza de ser personagem total de minha própria história.
Há certos encantos em Paine que não sei a que atribuir. Não são só torres de dois mil metros de granito matizado. Nem é o lago verde em sua base, onde grassam todas as patifarias e incontinências do vento. São muitas as felicidades da Patagônia, chilena e argentina, que não se reduzem a montanhas de alturas vertiginosas ou a gelos azuis de 700 anos que fazem amantes de uísque de todo o mundo suspirar.
Passando os olhos nesses relatos, constato certas aventuras que originalmente não constavam da memória, e emergiram após um investimento em formas mais propícias.
“O copioso estilo da realidade não é o único: há o da memória também”, ensinou Borges, estremando memória e realidade.
Sou menos criterioso. Contenta-me o testemunho da memória, enriquecido pela imaginação.
O programa forte do deserto australiano prodigaliza estrelas de brilhos desusados, e constrói noites febris, povoadas de amores poderosos.
Brasil (agora vai?)
NO SEGUNDO semestre de 1993, quem quer que apresentasse um cheque de US$ 80 bilhões teria comprado todas as empresas listadas na Bovespa, incluindo Petrobras, Telebrás e Vale. Todas.
Quinze anos depois, este mesmo cheque teria de ser quase vinte vezes maior, de US$ 1,6 trilhão.¹
Esses números, eloquentes, bastam para ilustrar o inédito e salutar momento por que passamos. Esse brutal salto na criação de riqueza, se ainda não invalida a máxima segundo a qual o Brasil é um suave fracasso, ao menos lança luz sobre o que realmente podemos fazer.
Podemos: eleger pessoas sensatas, e não os cretinos que, a intervalos, saqueiam a nação.
¹Gustavo Franco, in Folha de São Paulo de 21.6.2008.
domingo, 15 de junho de 2008
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