segunda-feira, 27 de março de 2006

O observador

Carlos Drummond de Andrade, em O observador no escritório, denuncia o ocioso estar-no-mundo. Ele condena o tempo, verdugo esquivo e sem rosto, a seu ver. Seus golpes, lentos ou acelerados, não apenas modificam, senão que produzem a nós, suas vítimas: 1951. Janeiro, 22 - Tarde de chuva fina, no centro junto à livraria, observo minuciosamente as ruínas do tempo, que me sorriem. Para não sofrer com o espetáculo, preferia fechar os olhos. Eles, porém, inspecionam por conta própria, máquina fotográfica a funcionar independentemente de mim. Chove no passado, chove na memória. O tempo é o mais cruel dos escultores, e trabalha no barro. Fernando Pessoa, por um de seus heterônimos, aprofunda o sentimento e surpreende - atrás de nossas fúteis máscaras, carnavalescas ou monásticas - o mal-estar genuíno, último, elemental: Lembro-me ainda, com uma precisão em que intercala o perfume vago do ar da primavera, da tarde em que, meditando todas estas coisas, decidi abdicar do amor como um problema insolúvel. Era em maio – num maio de verão suave, florido pelas pequenas extensões da quinta em várias cores esbatidas pela queda lenta da tarde começada. Eu passeava remorsos de mim entre os meus poucos arvoredos. Havia jantado cedo, e seguia, sozinho como um símbolo, sob as sombras inúteis e o sussurro lento das ramagens vagas. Tomou-me de repente um desejo de abdicação intensa, de claustro firme e último, uma repugnância de ter tido tantos desejos, tantas esperanças, com tanta facilidade externa de os realizar, e tanta impossibilidade íntima de o poder querer. Data dessa hora suave e triste o princípio do meu suicídio. Assombroso legado do poeta ao mundo indiferente, essas palavras, capitais, sempre me arrasam, por sua beleza trágica. Nunca iremos superá-las; sequer sondar sua profundidade. Abdico de um mundo justo ou, pelo menos, moralmente defensável - o mundo que todos os moralistas prometem, e são os primeiros a negar, com seus atos -.
Mas não abdico do amor, ainda que o saiba um impasse insolúvel. Campo Grande (MS), 25 de março de 2006.