sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Geirangerfjorden








O Gorila Invisível

Os psicólogos C. Chabris e D. Simons escreveram um alerta a respeito das nossas ilusões cognitivas no dia a dia. Esses logros são assim resumidos:
1.  ilusão da atenção: pensamos poder fazer duas (ou mais) coisas ao mesmo tempo, com a mesma performance com que faríamos apenas uma. Exemplo óbvio: dirigir e falar ao celular. Certa vez vi um cidadão, altas horas, dirigindo um carro com um celular numa mão e um cigarro na outra. O trágico é que sabemos que isso é inadmissível, porque vemos os resultados nas ruas. Mas essa proibição só se aplica aos outros, não a nós, que temos habilidades sobre-humanas. Essa ilusão nos faz pensar que temos o domínio total do que fazemos, quando podemos estar a um triz do desastre. O cérebro alterna o foco entre as tarefas, incapaz de dar conta de ambas a contento. Na verdade, podemos fazer muitas coisas ao mesmo tempo, se elas forem rotinas automatizadas.
2.  Ilusão da memória: algumas pessoas "se lembram" de acontecimentos com precisão arbitrariamente alta, quando na verdade elaboram e reelaboram memórias postiças, adaptáveis aos seus interesses, ou às inclinações da platéia. Há quem se lembre de eventos aos três anos de idade "como se fosse ontem", mas isso nem chega a ser impossível: é apenas ridículo. Nossas memórias estão sujeitas a distorções, mesmo quando temos certeza de sua exatidão. Os autores advertem: Cuidado com recordações acompanhadas de fortes emoções e riqueza de detalhes – elas podem ser tão equivocadas quanto as lembranças triviais, mas você tem muito menos probabilidade de se dar conta disso. (pág. 101)
3.  Ilusão da confiança. Algumas pessoas transmitem, ou tentam transmitir tanta confiança quanto recomendam os manuais de autoajuda – uma confiança do tamanho de suas ignorâncias – o que desgasta ainda mais o valor social dos sinais da confiança. Confiança não é sinônimo de saber, nem de capacidade. Pessoas muito confiantes podem ser apenas isso mesmo: muito confiantes. Não são melhores, nem têm mais conhecimento ou capacidade que aquelas receosas, indecisas, eventualmente inseguras. Atribuímos valor social aos sinais de confiança, e isto é o que basta para alguns se mostrarem fraudulentamente confiantes: não custa nada. Essa a base de alguns manuais de autoajuda, infelizmente.
4.  Ilusão de saber. Pensamos saber as respostas para certas coisas/fenômenos, só porque estamos familiarizados com eles. Sabemos que existe uma resposta, imaginamos que sabemos essa resposta mas, até que nos perguntem, seguimos alegremente inconscientes da escassez do nosso saber (pág. 149). Veja se consegue definir tempo, energia e espaço, para além do verbete de dicionário. Não consegue? Está tudo bem, não precisa ficar assim. Hoje, nem os físicos teóricos conseguem, em última análise, o que só evidencia a formidável quadra em que vivemos, às portas de uma nova Física, com dramáticas repercussões sobre tudo que sabemos. Lembro que a noção de vida nem sequer admite uma definição, a não ser fazendo escolhas difíceis, que remetem nossa perplexidade aos domínios da Física, que se afasta depressa dos modelos com que costumávamos adornar nosso raciocínio. Para terminar: você realmente sabe como funciona um zíper, um vaso sanitário ou a fechadura de cilindro, leitor? Não fique assim... Tomamos familiaridade por conhecimento e fragmentos de informação por verdadeiro entendimento da matéria. Pensamos saber muito mais do que realmente sabemos, a partir de suposições implícitas de como as coisas funcionam. Semana passada alguns economistas laureados calcularam em 60% a chance de um segundo mergulho da economia européia. Essa é a forma correta, uma previsão associada a uma probabilidade, sem qualquer certeza.
5.  Ilusão de causa. Fato: nossa mente é formada para detectar significados em padrões, inferir relações causais a partir de coincidências e crer que eventos anteriores causam os posteriores. Amiúde inferimos relação causal a partir de simples associação, por mais fracos que sejam seus termos. Dois fatores associados (comer mais vegetais e saúde, por exemplo) têm maiores chances de terem conexão causal, mas não há garantia de que tenham. Comer vegetais frescos não causa saúde. Correlação não implica causação. Contudo, supomos compulsivamente esta última, mesmo diante de mera ordem cronológica. As pessoas percebem um padrão que se encaixa em suas crenças e expectativas e inferem uma relação causal a partir de uma sequência de eventos, enfatizam os autores, que identificam três modos de ilusão de causa: i) padrões na aleatoriedade são interpretados, ao se repetirem, como previsões de eventos futuros; ii) eventos que ocorrem ao mesmo tempo têm uma relação causal; iii) eventos relacionados de alguma forma que aconteceram antes são considerados causas dos posteriores, ainda que inúmeros outros fatores intervenham. Porém uma associação de dois fatores pode ocorrer sem que nenhum deles cause o outro - essa associação por si só não suporta uma inferência causal.
6.  Ilusão de potencial. Achamos, e isso é a base da autoajuda desavergonhada, que podemos muito mais, seja lá o que isso signifique. Dizer que usamos só 10% de nosso cérebro é a forma mais comum desse desvio. Essa idéia, nula por imprecisão, sugere que, a um querer, ou treino, poderíamos multiplicar por dez nosso poder mental, transformando cada um de nós num gênio tardio, subitamente despertado por um ato de império, ou por algum treinamento. Quanto você usa, leitor, de seu fígado? E do braço? E da pele? Usamos 100% de nossos órgãos (ou eles já teriam atrofiado), mas o cérebro de Einstein tinha melhores conexões e produzia muito mais raciocínio de qualidade que o nosso, sinto dizer, embora usemos toda a habilidade disponível. Outra ilusão é que exercícios mentais poderão turbinar o cérebro, o que move toda uma indústria interesseira. Ocorre que caça-palavras, sudoku, xadrez e outros jogos mentais não servem senão para a recreação que proporcionam. Você pode ficar bom em xadrez, ou em videogame, mas isso será irrisório para a elevação de seu nível mental geral. Exercícios aeróbicos regulares são muito mais eficazes.
E contudo, não estou seguro quanto à classificação proposta, afora o óbvio valor didático. Desde Kant desconfio de todo e qualquer rigor demarcatório de idéias. No Direito vicejam infinitas classificações, com igual número de refutações, dissidências e desilusões. Seja como for, as idéias dos autores me parecem úteis para uma renovada empírica, mais nobre e rica - ou pelo menos mais precisa.
O livro conclui com algo sobre intuição (também chamada cognição rápida). Está na moda dizer que a intuição é superior à análise e à reflexão, porque mais rápida e fácil. Rápida e fácil, com certeza, porque não exige argumentação racional, demonstração de seus pressupostos. Mas a ponderação analítica, embora árdua, é a única abordagem para alguns dos temas mais relevantes da vida. E a lista de temas que a admitem só aumenta. Intuição não substitui a análise racional, sempre que esta for possível.
Concluindo, o Gorila Invisível quer nos fazer mais atentos aos nossos enganos, inclusive os que nos são mais caros, fornecendo subsídios para uma cognição mais equilibrada e argumentativa, ao ponderar as armadilhas das ilusões.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

A impostura dos royalties

Hélio Schwartsman comenta, na Foha, a novela dos royalties, com imposturas de parte a parte. O RJ extrai 80% dos hidrocarbonetos (petróleo e gás) no país, e considera, com certa razão, um roubo o que os outros estados pretendem. Lindbergh, senador por esse Estado, disse que a mudança nos royalties tiraria dinheiro da saúde. Fatos: os municípios e estados beneficiados tratam a verba como anabolizante da gastança. Alguns municípios, mesmo após os desvios, não têm onde torrar uma montanha de dinheiro, dentro da liturgia do orçamento público. Constroem estádios muito maiores que suas populações, aplicam em projetos lunáticos. E mesmo assim sobra dinheiro. O RJ torra tudo em salários e outras despesas correntes, de costas para o futuro. 

Fala Hélio:

Essa disputa entre os Estados pelos royalties do petróleo é um dos raros casos em que nenhum dos lados envolvidos tem razão, pelo menos a julgar pelos cânones da boa teoria econômica.

Como explica Flávia Caheté Lopes Carvalho em "Aspectos Éticos da Exploração do Petróleo", sua dissertação de mestrado, conceitualmente os royalties servem para compensar as próximas gerações pelo uso presente de um bem que, por ser exaurível, não estará disponível no futuro, quando valeria mais do que hoje. 

Quem destrinchou as bases matemáticas do problema foi Harold Hotteling (1895-1973) num texto clássico de 1931. A ideia central do autor é que é preciso pôr um preço extra na utilização de bens esgotáveis para estabilizar o mercado e maximizar, ao longo do tempo, os benefícios que eles podem produzir.É claro que apenas cobrar os royalties não basta para assegurar que o objetivo seja alcançado. Seria necessário também aplicar os recursos em áreas estratégicas, que preparem o país para o futuro no qual o petróleo não mais existirá. Tipicamente, o dinheiro deveria ir para rubricas como pesquisa, desenvolvimento tecnológico e educação. São, afinal, conhecidos os perigos da "doença holandesa", a desindustrialização provocada pela exploração de recursos naturais e pelas distorções cambiais dela decorrentes. 


O Brasil, contudo, deturpou inteiramente a ideia por trás dos royalties. Os Estados que hoje os recebem não pensam duas vezes antes de empenhá-los no pagamento de despesas correntes e até no financiamento da guerra fiscal, como vem fazendo o Rio de Janeiro. Tampouco consta que as unidades federativas prestes a tomar sua parte no butim estejam pensando muito seriamente em constituir fundos tecnológicos.Mais uma vez, vamos rifando o futuro de nossos filhos e netos em troca de mais um punhado de cargos e verbas para torrar.