sábado, 7 de janeiro de 2006

Camboja

O Camboja, na antiga Indochina, é um pequeno país com fronteiras com a Tailândia, Vietnã e Laos. Foi palco do maior genocídio do século XX, em proporção a sua população. Estima-se que até um quarto da população foi exterminada, por um demônio chamado Pol Pot. Esse demônio teve o suporte dos EUA, presumo que devido ao rotundo fracasso na guerra do Vietnã. Em vários museus da cidade, pilhas e pilhas de crânios, embranquecidos, descansam dos horrores que viveram. O taxista que nos levou por esses assombros teve pai e tio assassinados pelo sistema (chamado Khmer Vermelho). De modo algum ele é exceção. Abateu-me severamente a imagem de três meninas, fotografadas pouco antes de morrerem. Eram criancas, e nada suspeitavam da existência de demônios. Em seu rosto, e no dos demais, a expressão implorando clemência. Eles parecem pronunciar uma única frase, expressamente proibida para vítimas de demônios: "não me mate". No rosto de uma das meninas, uma expressão de raiva e perplexidade. Era uma menina. Provavelmente não sabia que era proibido viver, um crime político que não desdenha os requintes da tortura. Nunca me esquecerei dessa vítima, um ser humano, sem chances contra a insaciável necessidade de assassinar. Siem Riep, 7 de janeiro de 2006.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2006

Incidentes na Índia

1. O "pacote". Um sorrindente Zahir nos atendeu em sua agência de turismo. Demonstrando domínio do assunto, ofereceu-nos um pacote que incluia Jaipur, Agra, Khajuraho e Varanasi, perfazendo 10 dias e 500 dólares. Após pagarmos, e ao contrário do que vinha sustentando, ele informou que vouchers, passagens aéreas e de trem seriam entregues somente no dia seguinte, pelo motorista que nos conduziria a Jaipur e Agra. No dia seguinte esse motorista apareceu uma hora depois do combinado, e somente após um telefonema ameaçador disparado contra Zahir. Rumanos para a agência, em busca dos documentos prometidos, mas ignorados pelo motorista. Lá, recebemos vouchers dos hotéis e fomos informados de que as passagens aéreas e de trem nos aguardavam, impacientes, em Agra. No hotel em Jaipur ninguém suspeitava de nossa ida. De qualquer forma, o estabelecimento estava lotado. Levaram-nos a um pardieiro, sem energia elétrica. Preferimos ir ter ao birô de turismo, onde prontamente vimos brotar a vaga no hotel que anteriormente a desconhecia. Em Agra (foi difícil conter a emoção: "vi Agra! vi Agra!") o hotel aceitou-nos de primeira. Após conhecermos o Taj Mahal, rumamos, de trem, para a cidade que fica a meio caminho de Khajuharo. Após pagarmos um táxi, e visitarmos essa cidade de escassos encantos, desistimos da continuação, por trem, até Varanasi. Fomos de avião, pagando à parte e, com isso, o pacote ia se desfazendo, enquanto os custos subiam. Nessa cidade, o hotel era inqualificável, e pagamos por um bom hotel no centro, a 60 dólares a diária. De volta a Déli, pensamos em gratificar Zahir por esses sucessos. O Júlio se entusiasmara com a idéia de capá-lo ("o menino tinha boas intenções", ele insistia), mas eu lembrei-lhe que não seria honesto, além de pouco cristão, deixar de crucificar o patife. Irredutíveis, acordamos em capar e crucificar nosso amigo Zahir, simultaneamente. 2. Ovos fritos. O primeiro café da manhã na Índia foi no quarto. Nada a ver com um acesso de romantismo, incabível. O moquifo em que nos instalamos só servia comida no quarto. Pedimos café, torradas e ovos fritos, estes últimos bem passados, fritos de ambos os lados, firmes, entre outros adjetivos para ovos decentemente fritos. Pois vieram se derramando na bandeja, o garçom deliciado ante a contrafação. No segundo dia, idem, no mesmo hotel. Idem nos terceiro e quarto dias, embora se multiplicassem os adjetivos, em sonoro inglês, para ovos bem passados. Lá pelo quinto dia, diante de um garçom exultante, conduzindo uma inundação amarela numa bandeja rasa, o Júlio foi embora, aviar as malas. Eu fiquei e, com lhaneza, expliquei-lhe como gostaria que viessem os ovos. Funcionou, porque, segundos depois, vieram ovos verdadeiramente fritos, embora o garçom tenha necessitado de aconselhamento psicológico após o episódio. 3. O trânsito. Existe uma diferença entre o trânsito da Índia e o dos muitos países que já visitei. Aqui, os motoristas usam uma técnica similar à dos morcegos: guiam-se pelo som, mais que pela visão. O mais importante para os veículos é sair derramando-se num enfurecido buzinasso. Aos poucos, o rio de veículos descreve um pandemônio, que assalta os tímpanos e perturba as mentes. As ruas comportam tsunamis sonoros, transformando até o mais pacato transeunte num assassino em potencial. Carros, ônibus, caminhões, tuk-tuks, riquixás, bicicletas, pedestres, vacas, porcos, carneiros, búfalos e cachorros: uma alentada reunião de seres bem pouco afins. O trânsito rege-se por uma hierarquia em que os maiores estão no topo e um riquixá, por exemplo, não merece o menor respeito. Todos eles tiram finas dignas de videogame. Todos buzinam como se o mundo estivesse próximo do final e a buzina fosse a única hipótese de salvação. Todos sentem o perigo, mas a necessidade fala mais alto. Cansei de ver-me a milímetros de pesados caminhões na estrada, e de tirar fina, a cada instante, de camelos, pedestres, riquixás. As estradas não têm asfalto e proporcionam, a cada instante, um atentado contra nossas vidas. 4. O flautista No Hotel de Varanasi o flautista interrompia seu concerto para, ao celular, checar com o próprio compositor quais seriam as próximas notas. Por pouco não surramos o bandido.

India: um epílogo

Meus caros: encerro a Índia. Não me foi leve. Não me agrada a miséria, já denunciada. Inda mais a indigência exibicionista hindu. O ar poluído, alérgico, não ajuda, e tampouco a comida, vária ração de desafortunados pedaços de frango. Dos indianos? Não sei. Dada a experiência, resolvi poupá-los de um comentário que, de qualquer forma, revelaria preconceito. Talvez a Índia tenha um futuro, e ele até seja radioso e feliz. Sei que o povo que vi nas ruas não o tem. Varanasi (Benares), 4 de janeiro de 2006.

Varanasi

O excesso humano inviabiliza a cidade, postada nas orelhas do Ganges. O rio, que já chega sujo à cidade, é insultado por tremenda carga de esgoto, e também acolhe os fumegantes ossos dos mortos cremados às suas margens.

A cerimônia. O morto, envolto em tecidos, é confiado a uma pira e coberto com madeira. Logo o fogo inicia seu antigo ofício. Os mortos ardem sem reclamar, normalmente, entregando serenamente alvos ossos. Em alguns casos, porém, uma perna pode se apresentar e o morto, atendendo a estranha convocação, parece dar um passo à frente. O decoro manda que seja contida, restituindo-se a militar perna a sua posição de conformada honra. Pode acontecer de o crânio, privado de seu costumeiro adorno, exibir massa encefálica, que brota dos muitos buracos da face.

De minha posição, num terraço visitado pelos fumos da morte, vi um pé, caído, ser reconduzido às ciumentas chamas. Após um tempo - que eu não saberia precisar - vi um sadhu, considerado homem santo, ser reposicionado nas chamas, e um seu braço se apoiou brevemente numa haste em brasa, enquanto crânio e torso bebiam, com volúpia, vívidas chamas purificadoras.

Um pouco mais de lenha pode ser acrescentado se, porventura, o falecido acusar frio ou falta de luz. Se, acaso, ele reclamar, pés fujões podem ser recapturados. Mesmo um morto muito precavido pode, naquele ardor, perder a cabeça, já amiga das chamas, obrigando redobrada vigília.

Consumado, o corpo emite luz. Alcança equilíbrio em sua entropia final. Nova Déli, 5 de janeiro de 2006.

India: evite, se puder

Nova Déli, Jaipur, Agra, Khajuraho e Varanasi. Para minha saúde física e mental, é o bastante. A civilização hindi não convence. Suas cidades parecem ter recém-saído de uma guerra e um terremoto, simultâneos e arrazadores. Em toda parte, ruínas, devastação e miséria. Nada se salva. Nada pode ser feliz num país que cambaleia no limiar da fome e da morte. O hinduísmo reivindica muitos achados religiosos, mas ajudou a guiar a India a uma permanente hecatombe. (Alguém disse - acho que foi o Júlio - que o filme Mad Max poderia ser filmado na India, sem o artificialismo de cenários. Discordo. A India precisaria melhorar substancialmente para poder retratar, sem sustos, um mundo pós-hecatombe nuclear). 1.000.000.000 de famintos, morrendo entre vacas, porcos e macacos nutridos, mas intocáveis. Jurado de morte, o hindu existe, copioso. Para quê? No caminho entre Déli e Jaipur vi silhuetas de prédios corporativos em construção. O fog e a miséria do entorno conspiravam para fazer-me ver fantasmas bruxuleantes, que ardiam por entre esqueletos de futuras sedes de negócios. Não entendo os hindus. Após alguns dias em sua companhia, talvez não queira. Sua horrenda escalada no subcontinente não os favorece. A densa trama de pessoas desarvoradas compõe um quadro de repulsiva repetição. Na India, não há chance para o homem. Viver com menos de um dolar por dia. Há um sofisma irredutível nessa frase, que remete diretamente às mansões da morte. Alguns vêm à India para confirmar suas fantasias místicas. Plenos de fervor prévio, não enxergam o impossivel show de horrores que a Índia prodigaliza. Vacas disputando o lixo com mendigos; pessoas que fedem a urina e suor de meses; astutos porcos e patos esperando mendigos defecar para comer-lhes os excrementos. A civilização se contorce e produz sub-humanos. Não parece afetada pela dor que, impropriamente, sinto. Comerciantes, hotéis e empresas de turismo, todos respeitáveis, praticam respeitabilíssimos golpes contra seus clientes. Vendedores de qualquer coisa espreitam em cada esquina. Nuvens de indigentes se aglomeram a sua volta, varejam sua alma e dela extraem uma percentagem. Cada sagrada vaca injeta na atmosfera 600 litros/dia de metano, por meio de sagrados puns. Os indianos têm milhões de indolentes vacas, cheias de bernes, carrapatos e vermes. Após errarem pelas cidades, terminam carneadas por cachorros. Sua cozinha, um interminável desfile de migalhas de frango abusadas por pimentas ilícitas, completa o dissoluto quadro dessa civilização, que já foi mais bem representada. "Esta miséria", pensei, "é tão horrível que sua mera existência e perduração, embora no seio de uma civilização remota, contamina o passado e o futuro e, de algum modo, compromete os astros. Enquanto perdurar, ninguém no mundo poderá ser valoroso ou feliz". Déli, 5 de janeiro de 2006.