domingo, 15 de outubro de 2006

Dicionário do Josias

Josias (de novo o Josias) aprontando:
Dicionários são as masmorras das palavras. Mas a língua é solta e a segurança é frágil. As prisioneiras por vezes escapam do cárcere. Uma vez em liberdade, buscam o disfarce de novos significados. De tempos em tempos, são recapturadas. E voltam ao calabouço de cara renovada. Vários nomes, vocábulos e siglas vagueiam pela cena eleitoral de 2006 à procura da máscara mais conveniente. Enquanto as algemas do dicionário não os alcançam, vai abaixo uma tentativa de desmascará-los: - Alckmin: uma calva à procura de idéias; - Aloprado: indivíduo que busca no birô de ‘inteligência’ de campanha um álibi para a falta de miolos; pilhado em flagrante, atinge a perfeição, tornando-se perfeito idiota; - Brasil: o insolúvel levado longe demais; - Corrupção: com um r providencialmente dobrado e um p que, embora mudo, não consegue ocultar o rabo do ç, sempre à mostra, é uma palavra cuja terminação, ão, denuncia o desejo de expansão; - Cristovam: uma idéia à procura de votos; - Democracia: regime tão maravilhosamente perfeito quanto qualquer outra mentira; sistema político cuja mobilidade permite a um operário atingir o auge da desfaçatez burguesa; - Excluído: fatalidade embutida no modelo; revolta que trocou o inconformismo pelo cartão do Bolsa Família; - Heloisa: camiseta branca, sem slogam; pessoa capaz de falat dez vezes antes de pensar; - Lula: Molusco cefalópode, dibranquiado, decápode, loliginídeo, de coloração avermelhada, podendo mudar de cor segundo a conveniência; em situações de perigo, perde o olfato e a visão; - Povo: fera de muitas cabeças que, quando bem adulada, lambe e balança o rabo; multidão obsoleta que, desavisada de sua própria inutilidade, continua se reproduzindo desordenadamente; - PMDB: organização partidária com fins lucrativos; - PFL: legenda que busca um casamento, em regime de comunhão de males, com qualquer outra que reúna condições de chegar ao poder;
- PSDB: um tipo de social-democrata que ambiciona voltar ao poder para complementar a execução do programa do PFL; - PSOL: espécie de galinha que promete pôr o Sol; esquerda que, não tendo ainda vencido na vida, não pôde virar direita; - PT: partido que abandonou a ideologia para cair na vida; - Programa: peça de campanha que anota coisas definitivas sem definir as coisas; - Reeleição: estatuto que faculta a um jóquei cego o direito de continuar cavalgando, por mais quatro anos, uma mula sem-cabeça; - Tucano: ave piciforme, ranfastídea, da qual há quatro espécies brasileiras reunidas no gênero Ramphastos e uma espécie que, organizada sob o gênero político, confere às demais uma péssima reputação. (Escrito por Josias de Souza às 22h58)
Escrevi, tempos atrás:
Releio os malditos poemas que dormem em mim enquanto eu velo meus poemas prestam-se ao pesadelo, vivem a um triz do desmanchar-se. Às vezes arrasto alguns comigo para uma alegre fogueirinha, como nos ensinou Borges. Às vezes, apresento-os a pessoas. O que as pessoas têm com meus devaneios? Eu deveria deixá-las em paz. Apraz-me incendiar o bom senso com minhas farsas poéticas com meus achaques literários minhas invenções rudes e baratas. Alguns poemas, cansados da longa espera, revoltam-se e tornam aos dicionários. Ficaram magoados com a lenta taxa de mutação – uma ou duas palavras a cada cinco anos –, e nenhuma edição. O público não merece meus poemas. Meus poemas não merecem o público. Então faço algumas reformas. Convoco novas palavras, escondo velhas fórmulas que finalmente confessaram seu esquematismo. Oculto antigos erros; exibo, orgulhoso, novos. Redivivem meus poemas, mas não serão publicados.
Rainer Maria Rilke: As obras de arte são de uma infinita solidão: nada as pode alcançar tão pouco quanto a crítica.