sábado, 10 de dezembro de 2011

Sobre medicamentos

Marcia Angell, ex-editora-chefe do New England Journal of Medicine e professora em Harvard, escreveu um libelo incomumente direto e incisivo contra a indústria farmacêutica, particularmente a dos EUA.   


Em meio à leitura estive na farmácia da esquina. Pedi loratadina 10 mg. Me ofereceram uma de marca, por algum motivo mais barata. E também uma coisa chamada desloratadina, supostamente melhor que a própria. Inocente, não?

Marcia tem algumas coisas a dizer, a respeito:

i. a indústria farmacêutica vende remédios nos EUA a preços inaceitáveis, alegando altos custos de pesquisa e desenvolvimento. Essa alegação é rigorosamente fraudulenta. A P&D de novos medicamentos é feita, quase exclusivamente, por pesquisadores e laboratórios públicos ou de universidades, à revelia e sem qualquer ajuda da indústria. Remédios inventados por esses pesquisadores, quando servem a condições médicas raras, sequer são considerados para produção, porque o número projetado de compradores é pequeno. A indústria também não gosta quando a clientela é muito pobre: por que diabos você acha que não temos vacinas/medicamentos contra dengue, malária, esquistossomose, doença do sono e outras enfermidades típicas de países pobres? 

ii. Os laboratórios, em vez de inovar com medicamentos que salvariam vidas (e custariam bilhões de dólares), se especializaram em produzir medicamentos de imitação, idênticos aos em uso, mas alegando novas terapêuticas, ou nova dosagem, ou novas cores. Isso mesmo, novas cores: nos EUA, uma patente de medicamento pode proteger até mesmo uma nova cor (lilás, ao contrário daquela pílula azul, puro veneno), e isso é o bastante para entrar numa lista de proteção, editada por uma entidade privada!

iii. O que a indústria faz é gastar quantias indecentes com publicidade e compra de parlamentares, agentes reguladores, médicos e pesquisadores. É, você leu direitinho: eles compram todo mundo. O Congresso faz leis marotas, que estendem a patente com os mais bisonhos motivos e os mais bizarros resultados. Mês passado venceu a patente do Lipitor, marca de estatina, após décadas de prorrogações e uma montanha de dinheiro para a Pfizer.  As leis também manietam a agência reguladora (FDA), outrora a ciosa xerife dos conluios desse monopólio, e agora uma escrava dócil dos desejos da indústria. Médicos e pesquisadores são contratados como "colaboradores", quando na verdade estão recebendo subornos, da mesma forma que (no Brasil) um candidato pode contratar milhares de cabos eleitorais, a serem pagos após as eleições, garantindo assim (ao menos) o voto dessas almas mortas.

iv. As universidades, os pesquisadores e até os NIH (laboratórios públicos dos EUA) são forçados a licenciar seus achados para a indústria farmacêutica em troca de royalties irrisórios, uma fração simbólica dos lucros bilionários. Quer um exemplo? Uma empresa pagou 35 milhões de dólares aos NIH sobre vendas de 9 bilhões de dólares do taxol. Isso depois de o governo ter gasto uma montanha de dinheiro: a) na pesquisa do medicamento (NIH); b) na compra do remédio, pelo programa Medicare.  

v. Nos EUA os médicos são obrigados a uma educação continuada, ao contrário do Brasil. Parece bom, não é mesmo? Ocorre que os cursos de atualização são integralmente pagos pela indústria interessada, que impõe seus remedinhos aos médicos, inclusive com a contratação de medalhões da medicina que fingem conduzir pesquisas neutras. A coisa é tão escandalosa que os papers usados nas aulas e palestras são produzidos por essa indústria, para favorecer seus produtos. Outros materiais dirigidos aos médicos, com pesquisas sobre eficácias terapêuticas (a chamada fase IV), são produzidos por empresas de marketing, juntamente com as próprias pesquisas!

vi. Você acha que já basta? Em 2001, nos EUA, a indústria distribuiu 11 bilhões de dólares em "amostras grátis", uma das formas mais manjadas de manipulação de médicos e pacientes. Deve ser o único ramo do capitalismo que acredita em almoços grátis. Ou não? Tem mais: programas respeitados, como o 60 minutes, da CBS, transmitiram centenas de vídeos que pareciam material jornalístico, mas eram spots de anúncios de fármacos. Atores famosos também são convidados para talk shows e, "espontaneamente", mencionam problemas médicos, assim como o nome do remedinho milagroso. Sem querer, claro, mas ensaiados com o entrevistador e pagos pela indústria.           

Em resumo, a indústria das drogas não inova, apenas lança imitações de medicamentos existentes. A coisa é fácil, porque ela não precisa provar que a imitação é mais eficaz do que (e nem mesmo tão eficaz quanto) o medicamento em uso. Tudo que precisa é mostrar que é melhor que nada. É até possível aprovar drogas que são piores que aquelas em uso!

Foi assim que, quando o Prozac perdeu sua patente, em 2001, e o genérico fluoxetina passou a ser vendido por uma fração do preço daquele, a Elli Lilly patenteou uma dosagem semanal, mudou a cor da pílula para rosa e lilás, renomeou-o para Sarafem e ordenou que, dali em diante, todo bom médico o prescreveria para o recém inventado "transtorno de disforia pré-menstrual". E tudo por apenas 3,5 vezes o valor da fluoxetina. Prooonto. Está feliz, leitora? 

Não menos que 35% dos custos fixos da indústria farmacêutica é com marketing, inclusive a propaganda direta ao consumidor de produtos caríssimos e sem qualquer eficácia adicional sobre os genéricos, enquanto os custos com pesquisa e desenvolvimento são secretos. Eu disse secretos e, por secretos, eu quero dizer, bem, secretos.

A desloratadina que me ofereceram é apenas o metabólito da loratadina, algo em que ela se transforma no organismo. Eficaz por apenas 12 horas, e ao dobro do preço, trata-se de um assalto.

Está visto, essa indústria tem um lema: o consumidor que se...

Cuide.

Abaixo, Hélio faz uma (mais uma) defesa do bom senso e da razão. Confessadamente sou mais passional que Hélio, enxergando mais os prejuízos que os supostos benefícios da religião na história.

Quando digo religião, acorrem as regras infinitamente tristes e arbitrárias dos cultos, e os rios de dinheiro drenados dos incautos, necessários para manter as frotas de jatinhos e iates dos corretores da ignorância e ingenuidade do público.

Diz Hélio:



Já que dois amigos meus, Ives Gandra Martins e Daniel Sottomaior, se engalfinharam em polêmica acerca de um suposto fundamentalismo ateu, aproveito para meter o bedelho nessa intrigante questão. Como não poderia deixar de ser, minha posição é bem mais próxima da de Daniel que da de Ives.
Não se pode chamar de fundamentalista quem exige provas antes de crer. Aqui, o alcance do ceticismo é dado de antemão: a dúvida vai até o surgimento de evidências fortes, as quais, em 2.000 anos de cristianismo, ainda não apareceram.
Ao contrário, dogmas vão contra tudo o que sabemos sobre o mundo. Virgens não costumam dar à luz e pessoas não saem por aí ressuscitando. Em contextos normais, um homem que veste saias e proclama transformar vinho em sangue seria internado. Quando se trata de religião, porém, aceitamos violações à física e à lógica. Por quê?
Ou Deus existe e espera de nós atitudes exóticas -e inconsistentes de uma fé para outra-, ou o problema está em nós, mais especificamente em nossos cérebros, que fazem coisas esquisitas no modo religioso.
Fico com a segunda hipótese. Corrobora-a um número crescente de cientistas que descrevem a religiosidade ou sua ausência como estilos cognitivos diversos. Ateus privilegiam a ciência e a lógica, ao passo que crentes dão mais ênfase a suas intuições, que estão sempre a buscar padrões e a criar agentes.
Posta nesses termos, fé e ceticismo se tornam um amálgama de influências genéticas e culturais difícil de destrinchar -e de modificar.
Como bom ateu liberal, aplaudo avanços no secularismo, já que contrabalançam o lado exclusivista das religiões, que não raro degenera em violência e obscurantismo. Mas, ao contrário de colegas mais veementes, acho que a religião, a exemplo do que se dá com filatelia, literatura e sexo, pode, se bem usada, ser fonte legítima de bem-estar e prazer.