sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Domesticando o acaso

Aí está. Texto bom é pra ser reproduzido (Hélio, na Folha):

Desenvolvo hoje a coluna publicada na edição da última terça-feira do jornal impresso, na qual procurei entender melhor o fenômeno Celso Russomanno, comparando-o a um suflê. Sua candidatura, afinal, veio num crescendo até ficar bastante vistosa e com cheiro de aposta segura para passar para o segundo turno. A menos de três semanas do pleito, ele abrira 14 pontos de vantagem sobre o segundo colocado, segundo pesquisa Datafolha. Foi aí que, sem aviso prévio e já tendo contrariado as previsões de um bom número de analistas, a coisa murchou --e tão rapidamente que, quatro dias antes do pleito, ele ainda aparecia nominalmente como líder, mesmo que em situação de empate técnico com seus rivais. Terminou 7 pontos atrás do segundo lugar, fora, portanto, do turno final.

O que não faltaram foram hipóteses para explicar tanto a ascensão como a queda de Russomanno. Para a subida foram convocados religião, mensalão, desgaste dos políticos e partidos tradicionais, conservadorismo do eleitor paulistano etc. Para a queda, os suspeitos foram religião, falta de estrutura partidária, a campanha negativa iniciada pelos adversários. A crer no próprio Russomanno, a propaganda contra sua proposta de tarifa de ônibus proporcional ao trecho percorrido (uma ideia bem ruim, registre-se) teria sido fatal.

Mesmo sem acreditar muito em golpes decisivos, creio que esses e vários outros fatores tiveram seu quinhão de influência. Penso, contudo, que há uma outra característica, muito mais interessante, que torna o fenômeno difícil de interpretar e até mesmo de conceber. É o que os sociólogos chamam de problema micro/macro, ou como passamos das microescolhas dos indivíduos para os macrofenômenos que marcam o mundo social e vice-versa.

Quem lança luzes sobre essa questão de forma bastante didática é o físico e sociólogo Duncan J. Watts em "Tudo É Óbvio: Desde que Você Saiba a Resposta". Quase tudo o que sociólogos tentam explicar, de eleições ao sucesso do último livro de Paulo Coelho, está no nível macro, já que envolve grande número de pessoas. Mercados, governos, religiões, corporações e até modas só funcionam porque muita gente adere às suas lógica e regras, as quais só têm relevância porque são observadas por um bom público. Sim, é uma argumentação meio circular. Evidentemente, se uma propriedade está presente no nível macro, deve também estar, ao menos potencialmente, no nível micro, já que o resultado de uma eleição nada mais é do que a soma dos movimentos de cada eleitor individualmente.

As dificuldades do micro/macro não são exclusivas de cientistas políticos. Elas estão presentes em todos os ramos da ciência. Posso estudar um neurônio até aprender tudo o que há para saber sobre esse tipo de célula, mas isso ainda não será o bastante para que eu compreenda o funcionamento do cérebro e da mente. O conhecimento das partículas subatômicas não nos esclarece muito sobre a química orgânica, ainda que moléculas sejam feitas de átomos que são feitos de quarks, léptons etc.

As implicações dessa multiplicidade de escalas em que as coisas podem ser analisadas são particularmente interessantes para a filosofia e a epistemologia. O pressuposto do materialismo, abraçado pelas ciências e um bom número de doutrinas filosóficas, é o de que as propriedades de um objeto são causadas pela matéria. Outros sistemas, notadamente o de Platão, postulam uma dualidade entre forma e matéria e dão preponderância à primeira. Nesta nossa realidade corrompida, o desenho de um círculo é tão bom quanto sua participação na forma círculo, que tem existência real no mundo das ideias.

Deixemos, porém, a ontologia de lado e voltemos a nossos fenômenos micro/macro nas várias disciplinas. Eles têm em comum o fato de operar sob o signo da emergência, isto é, a propriedade de sistemas complexos que faz com que o todo exiba características diferentes das das partes que o compõem. Meu exemplo favorito é o do Boeing 747. Nenhuma peça do aparelho voa sozinha, mas elas estão colocadas para interagir de forma tal que o aparelho decole. A capacidade de voar surge com uma característica que está além da soma das partes, mas que ainda assim é determinada por elas. É um modo engenhoso de salvar o materialismo e a ciência como a temos feito até aqui. É verdade, porém, que a abordagem reducionista, que advoga pelo estudo exaustivo das partes, pode sair meio arranhada da aventura.

Se há uma diferença importante entre as ciências naturais e as sociais é que, nas primeiras, admite-se a natureza delicada da emergência e ninguém (ou quase ninguém) tenta deduzir o todo da parte. Há uma diferença nítida entre o gene e o genoma, o neurônio e o cérebro, o ecossistema e o bicho nele inserido. Já em matéria social, falamos em famílias, eleitorado, mercado como se fossem uma entidade indistinta das pessoas que as constituem. Perdemos, com isso, nada menos do que a emergência.

Um experimento mental proposto pelo sociólogo Mark Granovetter dá bem a dimensão de como as coisas podem funcionar. Imagine um protesto de estudantes que degringola em saques. Tínhamos 100 alunos em estado de elevada ambivalência: por um lado, estavam irritados com a última sacanagem do governo, que os impelia a quebrar tudo; por outro, sendo bons meninos, eram constantemente tentados a resolver as coisas de forma pacífica. Cada um dos 100 tinha de fazer a opção entre aderir à violência ou permanecer calmo. E cada um deles tem um limiar diferente. Na posição 1 temos o maluco que já vai para o protesto disposto a barbarizar. Na 2, temos o sujeito que saqueará se vir um outro a fazê-lo. Na 3, o que só adere se houver duas pessoas agindo com violência e assim por diante. Na posição 100, temos o sujeito zen que só se descontrolará depois que vir 99 colegas em estado de pura selvageria. Nesta situação em particular, a manifestação virou quebra-quebra por causa do maluco que destruiu a primeira vidraça.

Imagine agora uma realidade alternativa na qual o limiar do estudante na posição 3 era um pouco diferente. Em vez de aderir ao saque se visse duas pessoas agindo, ele precisava observar três violentos para seguir o mesmo comportamento. Bem, nesse universo, o ciclo foi interrompido, e o protesto não se converteu em pancadaria. Os dois indivíduos que se mostraram mais exaltados (o maluco e aquele na posição 2) foram rapidamente controlados pela polícia, que, queremos acreditar, agiu sem violência.
Temos, portanto, um caso em que uma diferença mínima, o limiar de ação do estudante 3 um pouco mais alto, indetectável pelos testes psicológicos hoje existentes, provocou um desfecho inteiramente diverso nos dois cenários. Tal é o poder da emergência.

Coisas bastante parecidas ocorrem com o eleitorado, que pode, no agregado, assumir comportamentos bizarros que não conseguimos atribuir a cada cidadão individualmente. Um exemplo quase assustador é o de um experimento clássico de Alexander Todorov. Ninguém vota considerando só as feições do candidato, mas o pesquisador mostrou que voluntários olhando por um mísero segundo para fotos de postulantes e apontando os mais bem apessoados conseguiram acertar 68% dos resultados de eleições para o Senado dos EUA. É um sinal bem convincente de que, por mais que tentemos negá-lo, a aparência é importante em eleições.

De modo análogo, poucos votam pensando apenas na economia, ainda assim o estado das finanças de um país é o melhor preditor das chances de reeleição de um presidente. O indivíduo pode não responder tão diretamente aos dados do PIB e da inflação, mas reage a como votam seus amigos e vizinhos que, ainda que não estejam preocupados com os números divulgados pelo IBGE, são sensíveis a pequenas mudanças na economia real, as quais, por sua vez, guardam alguma correlação com os macroindicadores. Os padrões são tão entrelaçados e complexos que, às vezes, uma mudança inicial imperceptível faz o suflê desandar.

É justamente essa instabilidade que torna a ciência política interessante. Estamos diante de fenômenos que são determinísticos (o eleitor sempre vota por razões em princípio cognoscíveis), mas, que, por sua complexidade, podem em algumas situações flertar com a imprevisibilidade. Não temos muita dificuldade para destrinchar os elementos básicos. Fatores econômicos e a narrativa que o candidato apresenta de sua própria vida são importantes. O mesmo vale para a estrutura partidária e as alianças. O ponto de partida, seja o recall ou a diferença de votos obtida no primeiro turno, também traz informação relevante. Mas tudo isso é só parte da história. Detalhes aparentemente insignificantes, como a palavra empregada pelo candidato para referir-se ao adversário e a linguagem corporal usada no debate, podem em certas circunstâncias fazer a diferença. É por isso que os staffs dos postulantes mais competitivos, tentando domesticar o acaso, isto é, precaver-se contra o imponderável, vem apostando em campanhas cada vez mais insossas e previsíveis.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Hobsbawm e a negação da história

Demétrio Magnoli, na Folha:

"Eu entendi isso, Edward. Esse esqueleto nunca sorrirá novamente." Leszek Kolakowski, filósofo polonês exilado, concluiu com essas palavras sua réplica ao historiador Edward P. Thompson, que o acusara de trair os ideais socialistas.

O ano era 1974, seis depois da invasão da Tchecoslováquia pelas forças do Pacto de Varsóvia. Thompson rasgara sua carteirinha do Partido Comunista britânico em 1956, na hora da invasão soviética da Hungria, mas interpretava o stalinismo como apenas um deplorável desvio no curso da história rumo ao radioso futuro comunista. Kolakowski, porém, sabia mais - e tinha um norte moral melhor.

Eric Hobsbawm nunca renunciou à sua carteirinha do partido. Aos 23 anos, ele assinou com Raymond Williams um panfleto de apoio ao pacto Molotov-Ribbentrop, entre a URSS de Stálin e a Alemanha de Hitler. Na maturidade, atravessou impávido as fogueiras da Hungria e da Tchecoslováquia.

Em 1994, aos 77 anos, pouco depois da queda do Muro de Berlim, publicou "Era dos Extremos", uma interpretação do século 20 consagrada a desenhar um sorriso no esqueleto já enterrado do stalinismo.

Hobsbawm, notável narrador do século 19, autor da trilogia das "eras" que desvendou para o grande público a trama da história contemporânea, entregou-se então à falsificação deliberada para restaurar o argumento imoral de Thompson.

A "era dos extremos" é uma tese paradoxal, cuja síntese emerge na sua introdução: "A vitória da URSS sobre Hitler foi uma realização do regime lá instalado pela Revolução de Outubro. Sem isso, o mundo hoje (com exceção dos EUA) provavelmente seria um conjunto de variações sobre temas autoritários e fascistas, mais que de variações sobre temas parlamentares liberais."

O totalitarismo stalinista, assegura-nos o historiador, podia ter seus defeitos, mas representava o socialismo e, sem ele, a humanidade teria sido tragada, em definitivo, pelo vórtice do fascismo.

O tribunal final da História, constituído por um único juiz, o próprio Hobsbawm, oferece um veredicto de absolvição dos processos de Moscou, do gulag, da supressão absoluta da liberdade. A matéria pútrida do "socialismo real" salvou-nos, a todos, de um destino pior, que era tecido pelo capitalismo em crise.

A narrativa inteira se organiza persuasivamente ao redor da tese, investindo na aposta segura de que o leitor médio carece das informações indispensáveis para refutá-la.

O regime de Stálin destroçou o comando das forças armadas soviéticas nos expurgos dos anos 30, aumentando a vulnerabilidade do país à invasão alemã. A URSS não triunfaria sobre Hitler sem a vasta ajuda militar americana.

No primeiro e crucial ano do conflito, a aliança firmada pelo pacto Molotov-Ribbentrop converteu a URSS em fornecedora principal de matérias-primas e combustíveis para a máquina de guerra nazista. A história de cartolina de Hobsbawm é uma contrafação da história da Segunda Guerra, inspirada diretamente pelas narrativas oficiais fabricada por Moscou no imediato pós-guerra. O esqueleto precisa antes mentir, para depois sorrir.

A trilogia das "eras", narrativas eruditas escritas em linguagem cristalina, foi a porta de entrada de centenas de milhares de leitores para as delícias da história. "Era dos Extremos" singrou no oceano de autoridade das obras precedentes.

No Brasil, país onde Hobsbawm tem mais leitores do que na Grã-Bretanha, o livro beneficiou-se de uma recepção laudatória, patrocinada por intelectuais inconformados com as marteladas críticas dos berlinenses daquele 9 de novembro de 1989. Fora daqui, porém, nem todos aceitaram sorrir junto com o esqueleto de uma mentira.

Num ensaio de 2003, o historiador Tony Judt escreveu o epitáfio incontornável: "Hobsbawm recusa-se a encarar o mal face a face e chamá-lo pelo seu nome; nunca enfrenta a herança moral e política de Stalin e de seus feitos. Se ele pretende seriamente passar o bastão radical às futuras gerações, essa não é a maneira de proceder".

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Tutty Vasquez

Com todo respeito à fama que conquistamos lá fora por causa do futebol, da bossa nova, do café, do carnaval, da caipirinha, do Paulo Coelho e da Gisele Bündchen, o que o Brasil tem de mais inigualável na atualidade são as urnas eletrônicas. 

Modéstia à parte, poucas coisas no mundo - entre elas, talvez, o iPhone 5 e o time do Barcelona em seus melhores dias - parecem tão bem boladas quanto o nosso sistema de votação. 

O Brasil funciona em dia de eleição como uma Ferrari ou um relógio suíço: tudo acontece sempre de maneira muito rápida e precisa entre a captação e a apuração de quase 140 milhões de votos! 

Com a revelação dos primeiros resultados oficiais menos de duas horas após a divulgação das pesquisas de boca de urna, os analistas políticos de plantão nos canais de jornalismo ficam praticamente sem tempo para quebrar a cara em prognósticos na TV. 

Ninguém nos Estados Unidos, onde o escrutínio é praticamente uma carroça eleitoral, entende como pode o brasileiro levar 30 segundos para votar e duas horas preso no trânsito para chegar ao trabalho. 

Quem dera tudo por aqui funcionasse como as urnas eletrônicas!