Então temos o livro de Kahneman. Não
sei que dizer ante o calhamaço: 500 páginas, fora os apêndices, alentados.
Pra
começar, realmente acreditamos saber o que se passa em nossa mente; achamos que
um pensamento consciente leva ordenadamente a outro, mas esse não é o caso na
maioria das vezes: impressões, pensamentos e atitudes surgem em nossa
consciência "do nada", e muita vez sequer são percebidos.
Pediu-se a pacientes cegos, com danos ao córtex visual,
que identificassem círculos ou quadrados numa tela. Acertaram em média 50%,
índice de escolhas aleatórias. Em outro experimento, os pacientes deveriam
dizer se a face mostrada era amiga ou inimiga, o que foi identificado
corretamente em dois terços dos casos. Milagre? Chute? Não, aparentemente.
A
área fusiforme (especializada em
reconhecer rostos), intacta, estava analisando e julgando, inconscientemente,
os rostos mostrados, embora o córtex visual estivesse inativo (abstraio a
guerra entre localizacionistas e o
pessoal das redes dinâmicas – Nicolelis
e outros –; bem como a teoria das ilhas
de visão como explicação para o fenômeno). Blindsight, ou visão cega, é o termo para essa condição, largamente
conhecida: conscientemente a pessoa está cega – mas partes do cérebro ainda
enxergam, e julgam.
Segundo
a nova abordagem do inconsciente (Ran Hassim, da Hebraica de Jerusalém, entre
outros), os processos conscientes podem não passar de 5% da atividade mental
(para Gazzaniga, seriam 2%). Tudo o mais é inconsciente. Falar, por exemplo:
você não cata as palavras uma a uma. Simplesmente experimenta o fluxo de
ideias, e sua mente as recobre de palavras e gestos. Um segundo idioma
exemplifica o esforço inglório para tornar automático um vasto sistema de
mistérios.
“O que nos faz felizes?” rendeu
oportunidade de enfiar o pé na jaca, como visto. Retomo de onde parei, com Rápido e Devagar - duas formas de pensar,
de Daniel Kahneman, Nobel de economia em 2002, professor de Princeton.
O livro centra fogo nos vieses de intuição, origem de erros
sistemáticos que se repetem de forma previsível. Você acredita saber o que se
passa em sua mente, mas, diga, como detecta irritação na voz de alguém ao
telefone, ao final de três palavras? E como evita a colisão iminente, se age
antes de entender a ameaça? E o problema não se resume a memórias não declarativas, como veremos,
com sorte.
Vieses de intuição e heurísticas de
julgamento são dois dos objetos conceituais trabalhados na obra, que
persegue nominalmente três distinções: entre os eus experiencial e recordativo,
entre a concepção dos agentes nas economias clássica e comportamental e entre o
automático Sistema 1 e o oneroso Sistema 2.
I.
Começo pelo último. Dois sistemas. Rápido e devagar. Metáforas de agência, qual
o ganho?
Definamos:
Sistema 1, rápido, intuitivo, é mais
influente do que sua experiência lhe diz que é; e é o autor secreto de muitas
das escolhas e julgamentos que você faz. Sim, você. Seu âmago é a memória
associativa; está habilitado a construir uma interpretação coerente do que está
acontecendo a qualquer instante (parte desse sistema, sediado no hemisfério
esquerdo do cérebro, é o que chamaríamos "programa gerador de conversa
fiada", e seus produtos são encontradiços em horóscopos e papers de consultores de mercados, por
exemplo). Ele pode pensar muitas coisas ao mesmo tempo, desde que rotineiras, já subjugadas pelo
aprendizado; sustenta invencível desavença com os exigentes raciocínios
estatísticos.
De
uma vez por todas, vou exemplificar, seguindo o autor:
17 x 24 =
Seguinte: você detectou rápido o problema, descartou
automaticamente 12.609 e 123, por improváveis, mas não se deu ao trabalho de
calcular. Até aí, Sistema 1. Se precisasse, calculava metodicamente e obteria o
produto. Note que para algumas pessoas a resposta surgiria espontânea, devido a
exaustivo treinamento, como rotina incorporada ao Sistema 1. Para o resto de
nós, o resultado dependeria de papel, lápis e o concurso de regras de
aritmética básica (ou uma calculadora). Repare no trabalho mental: deliberado,
laborioso e aparatado = Sistema 2.
Agora
preste atenção:
2
x 2 =
Não está em nosso poder deter a resposta, da mesma
forma que a visão, ainda que rápida, de um rosto humano irado, ou sorrindo, ou
chateado produz imediato e involuntário diagnóstico de ordem psicológica. Essa
aferição ocorre toda vez que vemos um rosto, ainda que não nos demos conta, nem
nos importemos.
Temos,
pois (classificação de Stanovich e West, utilizada pelo autor):
Sistema
1: opera automática e rapidamente, com
pouco ou nenhum esforço e nenhuma percepção de controle voluntário.
Sistema
2: aloca atenção às atividades mentais
laboriosas que o requisitam, incluindo cálculos complexos. As operações do
sistema 2 são muitas vezes associadas com a experiência subjetiva de atividade,
escolha e concentração.
Identificamo-nos
com o sistema 2, o eu consciente,
raciocinador, que tem crenças, faz escolhas e decide o que pensar e o que fazer.
E, contudo, é o Sistema 1 o faz-tudo silencioso (embora sujeito a vieses), originando sem esforço as impressões e
sensações que são as principais fontes das crenças explícitas e escolhas
deliberadas do Sistema 2 (nosso eu,
portanto).
O
sistema 1 é quem dirige o carro por uma rua vazia; compreende sentenças
simples; detecta hostilidade em uma voz; lê palavras em grandes cartazes;
encontra um movimento decisivo no xadrez e executa os mais ousados e
maravilhosos movimentos ao piano ou cello,
se você estudou o suficiente (e, portanto, acumulou memórias não declarativas). Suas capacidades incluem habilidades inatas que compartilhamos com outros animais.
Memória é atributo do Sistema 1, máquina
associativa que representa a realidade por um complexo padrão de ligações.
O
controle da atenção, contudo, é compartilhado pelos dois sistemas.
É
próprio do Sistema 2: manter velocidade de caminhada mais rápido que o normal;
monitorar a conveniência de seu comportamento numa festa; professar um número
de telefone; preencher declaração de imposto de renda; dirigir no "lado
errado" da via, como os ingleses; verificar a validade de um argumento
lógico complexo.
O
Sistema 2 vive no confortável modo "só me chame quando não souber o que
fazer", com uma fração de sua capacidade em uso. O Sistema 1 gera continuamente sugestões para o Sistema 2: impressões,
intuições, intenções e sentimentos. Se endossadas pelo Sistema 2, impressões e
intuições se tornam crenças, e impulsos se tornam ações voluntárias, diz o
autor, sintetizando a interação entre os dois.
O
Sistema 2 é chamado quando surge uma questão para a qual o Sistema 1 não tem
resposta; quando se detecta um evento que
viola o modelo de mundo mantido pelo Sistema 1. A maior parte do que você (seu Sistema 2) pensa e faz origina-se de seu
Sistema 1, mas o Sistema 2 assume o controle quando as coisas ficam difíceis, e
normalmente ele tem a última palavra (p. 34).
A
divisão de trabalho entre os sistemas minimiza o esforço e otimiza o
desempenho.
O
arranjo lembra as demais soluções de compromisso do organismo: alargamento da
pélvis das mulheres versus menor
capacidade craniana dos bebês; dispendiosos dois rins e dois pulmões, versus morte no caso de falha de um
deles e todo um universo de trade-offs
angustiantes. Funciona, em regra, mas o Sistema 1 exibe vieses: tendência a erros sistemáticos em circunstâncias
específicas. Propende a responder pergunta diversa da que lhe foi endereçada, e
se ressente de lógica e estatística.
E
não pode ser desligado, gerando inúmeras oportunidades de conflito com o
Sistema 2, e seu custoso mecanismo de razão, lógica e autocontrole. Experimente
não olhar a pessoa vestida de modo excêntrico, ou forçar sua atenção num livro
de direito. Não consegue? Está tudo bem, não precisa ficar assim.
Feita
a distinção (aos trancos e barrancos), transitemos pelas ideias mais
representativas, colhidas aqui e ali, no afã de conferir significado à
distinção proposta.
1.
O Sistema 1 exerce maior influência no comportamento quando o Sistema 2 está ocupado:
ficamos menos dispostos (ou capazes) de exercer autocontrole, no chamado esgotamento do ego. Suprimir reações
emocionais cobra seu preço, que inclui: reagir agressivamente a provocação, ser
impulsivo, sair-se mal em tarefas cognitivas e de tomadas de decisão.
Exercer
autocontrole é exaustivo e desagradável. Exige atenção e esforço. Controlar
pensamentos e comportamentos é uma das tarefas do Sistema 2.
2.
Efeito ideomotor: uma ideia influencia ações. Nossas ações e emoções podem ser primadas (efeito priming) por eventos dos quais nem sequer temos consciência: a maior parte do trabalho do pensamento
associativo é silencioso, oculta-se de nossos eus conscientes.
3. O mundo faz muito menos sentido do que você
pensa. A coerência deriva principalmente do modo como sua mente funciona.
Da mesma forma como visão tridimensional é construção permanente do cérebro:
dispendiosa, não existe fora de nossas mentes.
É
fácil confundir familiaridade com verdade. Conforto cognitivo (derivado de
prévia exposição, consciente ou não) predispõe a crenças. Ainda que a
familiaridade seja inconsciente: é possível estabelecer uma senha simplesmente
tornando familiar uma ordem oculta de símbolos dissimulados numa sequência
aleatória. A memorização fica por conta do padrão velado, e será inconsciente.
Familiaridade engendra apreço, que pode ser mero efeito da exposição. Conforto
cognitivo prediz crenças, como bem sabem os clérigos.
4.
Religião e sistemas. (...) nossa
prontidão nata de separar causalidade física e intencional explica a quase
universalidade de crenças religiosas. [Paul Bloom]: "percebemos o
mundo dos objetos como essencialmente separado do mundo das mentes, tornando
possível para nós conceber corpos sem alma e almas sem corpo". Os dois modos de causação que estamos
ajustados para perceber tornam natural para nós aceitar as duas crenças
centrais de muitas religiões: uma divindade imaterial é a causa última do mundo
físico, e almas imortais temporariamente controlam nossos corpos enquanto
vivemos (...). A religião, e suas verdades estabelecidas pela
"autoridade", deixa-se surpreender no Sistema 1. Incerteza e dúvida
são domínio do Sistema 2.
5.
Máquina de tirar conclusões precipitadas e o viés da confirmação. Gilbert, alguma vez resenhado, sustenta que a compreensão de uma afirmação deve começar
com uma tentativa de acreditar nela: a pessoa deve primeiro saber o que a ideia
iria significar se fosse verdadeira. Ele vê a descrença como operação do Sistema 2, o que explica quão custosa,
em oposição à crença, automática e preguiçosa. Desacreditar é um trabalho árduo, e o Sistema 2 se cansa facilmente
(p. 345).
Daí,
a propósito de um experimento: A
perturbação do Sistema 2 tinha um efeito seletivo: tornava difícil às pessoas
"desacreditar" de sentenças falsas. (...) os participantes esgotados acabavam pensando que muitas das falsas
sentenças eram verdadeiras. A moral é significativa: quando o Sistema 2 está
mais empenhado em tudo, somos capazes de acreditar em quase qualquer coisa. O
Sistema 1 é crédulo e propenso a acreditar, o Sistema 2 é encarregado de
duvidar e descrer. As pessoas são mais propensas a embarcar em canoas
furadas com o Sistema 2 sobrecarregado, com o ego esgotado, deprimido. O viés confirmatório favorece a aceitação
acrítica de sugestões e o exagero da probabilidade de eventos extremos e
improváveis [como os milagres].
6.
O que você vê é tudo que há: evidência escassa (WYSIATI). Trata-se de um viés
de julgamento e escolha que explica por que saber
pouco torna tão fácil ajustar tudo que você sabe em um padrão coerente (e
ilusório). Coerência e conforto cognitivo nos dizem por que podemos pensar com rapidez e como somos capazes de extrair sentido de
uma informação parcial em um mundo complexo. WYSIATI explica: i)
superconfiança (nosso sistema associativo
tende a se acomodar em um padrão coerente de ativação e de dúvida e ambiguidade
suprimidas); ii) efeitos de enquadramento e iii) negligência com a
taxa-base. Formamos julgamentos intuitivos acerca de coisas sobre as quais
pouco sabemos, ou com base em amostras exíguas.
7.
Apresento agora um drama: você muitas
vezes tem respostas para perguntas que não compreende completamente,
apoiando-se em evidências que não é capaz de explicar, nem de defender.
Fazemos isso substituindo a pergunta complexa por outra, não necessariamente
mais simples, porém mais familiar, e julgamos ter dado resposta apropriada.
Quando as pessoas são obrigadas a julgar probabilidade,
em regra julgam alguma outra coisa,
acreditando terem tratado a probabilidade satisfatoriamente. À pergunta:
"o quanto você está feliz com sua vida?" respondemos, em geral:
"qual é meu humor no momento?”; "qual será a popularidade do
presidente daqui a seis anos?", respondemos: "qual a popularidade do
presidente agora?".
No contexto das atitudes (...) o Sistema 2
age mais como um defensor para as emoções do Sistema 1 do que como um crítico
dessas emoções - ele mais endossa que impõe. Sua busca por informações e argumentos
está na maior parte restrita à informação que seja consistente com crenças
existentes, não com uma intenção de examiná-las.
Síntese
do Sistema 1: gera impressões, sentimentos e inclinações que, quando endossados
pelo Sistema 2, tornam-se crenças, atitudes e intenções; gera intuições
especializadas, após treinamento adequado; liga conforto cognitivo com ilusões
de veracidade, sentimentos prazerosos e vigilância reduzida; infere e inventa causas e intenções; negligencia
ambiguidades e suprime dúvidas; foca na (escassa) evidência existente e ignora
a (enorme) evidência ausente (WYSIATI); exibe aversão a perdas e confere peso
excessivo a probabilidades baixas.
Os
seguintes excertos vêm ao encontro:
(...)
sustentar uma dúvida é um trabalho mais
árduo do que passar suavemente a uma certeza. (...) tendemos a exagerar a consistência e a coerência do que vemos. O Sistema 1 se antecipa aos fatos ao
construir uma imagem rica com base em fragmentos de evidência. Uma máquina de
tirar conclusões precipitadas agirá como se acreditasse na lei dos pequenos
números [amostras insuficientes para sustentar conclusões]. (...) vai produzir uma representação da realidade que faz sentido demais. O
maquinário associativo procura causas. (...) somos ávidos por padrões, temos fé em um mundo coerente, em que as
regularidades (...) não aparecem por
acidente, mas como resultado de uma causalidade mecânica ou da intenção de
alguém. (...) terminamos com uma
visão do mundo em torno de nós que é mais simples e mais coerente do que os
dados justificam.
Previsões
intuitivas são quase completamente
insensíveis à qualidade preditiva real da evidência. Tendem a ser
superconfiantes e extremadas. Previsões
extremas e tendência a prever eventos raros com base em evidência fraca são
ambas manifestações do Sistema 1. (...) é
natural para o Sistema 1 produzir julgamentos superconfiantes, pois a confiança
(...) é determinada pela coerência da
melhor história que você é capaz de contar a partir da evidência disponível.
(...) suas intuições produzirão previsões
que são extremas demais e você se mostrará inclinado a depositar excessiva fé
nelas.
Ilusão
de compreensão. Achados:
1.
Falácia narrativa (Nassim Taleb): histórias distorcidas de nosso passado
moldam nossas visões de mundo e nossa expectativa de futuro. Todo evento
preeminente recente é um candidato a se tornar o núcleo de uma narrativa causal.
Há uma tentativa contínua de conferir sentido a essa vasta coisa chamada mundo.
(...) humanos se iludem constantemente
construindo relatos inconsistentes do passado e acreditando que são
verdadeiros.
Hélio
Schwartsman desenvolve:
A história não é uma ciência no mesmo
sentido em que o é a física ou até a economia. Ela não apenas é incapaz de nos
dar um modelo por meio do qual possamos fazer previsões como ainda traz a
incrível propriedade de tornar o próprio passado incerto. (...)
Tamanha elasticidade é possível porque o cérebro humano não foi concebido para
fazer história. Qualquer evento histórico é fruto de um número tão grande de
interações entre pessoas e ocorrências (climáticas, econômicas etc.) que é
simplesmente impossível calculá-las. Só que nossas mentes não se acanham diante
da intratabilidade do problema e adotam sua hipótese preferida como eixo
explicativo, ignorando tudo que não se encaixe nela. A história é
necessariamente refém de nossos gostos, preferências, condicionamentos, isto é,
de nossa ideologia.
2.
As inconsistências narrativas (contradições) reduzem o conforto de nossos
pensamentos e a clareza de nossos sentimentos. Buscamos narrativas
explanatórias simples e coerentes, exagerando a consistência das avaliações: o
líder de uma democracia não pode ser genocida; Napoleão não pode ter sido um
inepto; pais não podem ser maldosos com os próprios filhos.
A mente humana não lida bem com
não-eventos, afinal, onde estão os
contrafatos? A linguagem sugere que o mundo é mais conhecível do que de fato é. Compreendemos muito menos o passado do
que acreditamos, vítimas de robusta
ilusão cognitiva, o que induz erro sério: avaliar a qualidade e acerto das
decisões apenas por sua taxa de sucesso (viés de resultado), sem indagarmos se
as crenças que embasaram a decisão eram razoáveis ou defensáveis.
3.
Ideia-chave: O maquinário (...) do Sistema 1 faz com que vejamos o mundo
como mais ordenado, simples, previsível e coerente do que na realidade é. A
ilusão de que se compreende o passado alimenta a ilusão adicional de que se
pode prever e controlar o futuro.
4.
Ilusão de validade e habilidade. Confiança
é um sentimento que reflete a coerência da informação e o conforto cognitivo de
processá-la. Após minuciosa investigação chegou-se a um (quase) consenso de
que os negociantes de bolsa de valores disputam um mero jogo de azar.
Correlação com habilidades? Zero. Macacos jogando cara ou coroa exibiriam
melhor desempenho que os agentes dessa indústria multibilionária. É que eles
operam em ambiente preditivo de validade
zero. Ao contrário do que diz o bom senso, conjecturas sensatas não são
melhores que chutes no escuro.
5.
Pesquisadores da universidade Duke coligiram 11.600 prognósticos de diretores
financeiros de grandes corporações sobre o mercado de ações no curto prazo. A correlação entre as estimativas e o valor verdadeiro
foi ligeiramente inferior a zero! As previsões desses especialistas não
valem nada, e não parece que eles se importam. O caso Sadia, com perdas
bilionárias em apostas erradas (que puseram fim à empresa) não é isolado, ao
contrário do que pensávamos.
(...)
pessoas podem manter uma fé inabalável em
qualquer proposição, por mais absurda que seja, quando ela é sustentada por uma
comunidade de crentes que pensam igual. (...) não podemos suprimir a intuição poderosa de que o que faz sentido em
retrospectiva hoje era imprevisível ontem. A ilusão de que compreendemos o
passado fomenta a superconfiança em nossa capacidade de prever o futuro.
6.
Agora, uma declaração forte: o mistério
de saber sem saber não é um traço distintivo da intuição, é a norma da vida
mental. A intuição [para o
perito] não é nada mais, nada menos que
reconhecimento [de memórias não declarativas]. Confiança subjetiva não é um bom diagnóstico de precisão: julgamentos
que respondem à pergunta errada também podem ser feitos com confiança elevada.
Uma apreciação imparcial da incerteza
é o alicerce da racionalidade.
Parece,
assim, que ambos sistemas rodam um modelo de mundo, mas o do Sistema 2 é
analítico, bem aparelhado e favorece os mais honestos esforços argumentativos,
usa as melhores ferramentas da razão. Para aqueles que a desdenham, experimente
alimentar o mundo, ou construir máquinas e teorias testáveis que desautorizem a
razão.
II.
Dois eus.
Não
faça como eu, leitor, não confunda os Sistemas 1 e 2 com os dois eus. Os sistemas são metáforas criadas para tornar menos árdua a
compreensão dos dois modos típicos de atitude mental. Como vimos, o primeiro é
rápido, intuitivo e automatizado. Se você treinou cirurgias cardíacas 40 anos,
operar passou à órbita do Sistema 1, exceto alguma complicação. O Sistema 2
carrega todos os sectarismos do raciocínio, da análise amarga e demorada, da
ponderação ranzinza. Incorpora artefatos sofisticados e comporta grandes
conglomerados de ideias em simultaneidade, a exemplo da teoria da relatividade
e da evolução. Amiúde trabalha com ideias contraintuitivas, como a mecânica
quântica e a teoria da decisão (matriz da estatística).
Dois eus são outra metáfora simplificadora, justificadas por
sua utilidade: o eu experiencial,
que responde à pergunta: está doendo
agora? e o eu recordativo, que
responde à pergunta: como foi isso, no
todo? A partir de lembranças esse eu simula uma entidade que perdura no
tempo e compõe uma história e um mapa (meio roto e zoado) do mundo. Em sua
missão de construir um contramundo interno, ele só presta atenção ao pico e ao
final, retendo um traço simplificado de tudo que o eu experiencial vivencia. Um
momento representativo, portanto, fortemente
influenciado pela regra pico-fim.
Assim, em vez de uma soma de
vivências, com marcadores de estados emocionais, temos um resumo que
negligencia a duração, tanto para o prazer como para a dor. A vida é
representada por uma fatia prototípica de tempo, não por uma sequência de
fatias de tempo. Portanto, sua
"felicidade total" foi a felicidade de um período típico em sua vida,
não a soma (ou integral) de felicidade pela duração de sua vida.
É
assim que o eu recordativo funciona: entretece histórias e as amoeda para
compor uma entidade auto-referida. Acrescente o notoriamente fugaz
livre-arbítrio e eis delineada uma coisa bisonha, arbitrária: nós.
Enfatizando,
a memória (abastecida pelo Sistema 1) é afetada pela negligência com duração e
regra pico-fim, inconsistências
incorporadas ao design de nossas mentes. Se isso solapa os fundamentos do
modelo de agente racional, que alegra
certas heresias econômicas, tanto melhor. Na avaliação intuitiva de vidas
inteiras, picos e finais importam. Duração, não.
Quanto
você estaria disposto a pagar por férias em algum paraíso se, ao final, todas
as imagens mentais, recordações, fotos e vídeos fossem eliminados? Não muito,
não é mesmo? Turismo, esse bem de
experiência, é sobre construir histórias e entesourar lembranças
aprazíveis.
Então,
pense numa cirurgia em que você vai gritar de dor e implorar que o cirurgião
pare. Ao final, medicamentos amnésicos restituirão a paz inocente. E então?
(...) sinto pena de meu eu sofrendo, mas
não mais do que sentiria de um estranho em sofrimento. (...) eu sou meu eu recordativo, e o eu
experiencial, que vive de fato minha vida, é como um estranho para mim,
revela o autor. A propósito, se você achou desumana a história do sofrimento
insuportável tratado a posteriori com
amnésicos, bem, você não está muito informado sobre anestesiologia.
III.
Utilidade esperada x teoria da perspectiva:
O erro da economia clássica.
O
matemático Daniel Bernoulli buscou formalizar a relação entre o valor
psicológico da desejabilidade do
dinheiro e sua real quantia, o que resultou na teoria da utilidade esperada. Tratava-se de tentar relacionar intensidade psicológica a magnitude física do estímulo (bem-estar
experimentado x quantia em dinheiro). Ocorre que a utilidade depende do histórico pessoal de riqueza, não só da
riqueza presente. Para um economista clássico, a utilidade de um ganho é
aferida comparando-se as utilidades de dois estados de riqueza. Mas o
milionário e o mendigo têm visões bem distintas de um ganho de 500 pratas. Com
Bernoulli, bastava saber o estado de riqueza para determinar a utilidade.
Para
a teoria da perspectiva (derivada da
economia comportamental, que rendeu um Nobel ao autor), é necessário investigar
o referencial, capaz de influenciar
até nos gostos. É preciso estar atento às heurísticas, tais como aversão a perdas e resistência a mudanças (originárias do Sistema 1). Para essa
teoria, pontos de referência devem ser considerados e perdas avultam maiores
que os ganhos respectivos.
A
teoria da perspectiva tenta descrever as escolhas que as pessoas fazem,
independente de serem ou não racionais: pesos
de decisão não seriam idênticos a probabilidades. As pessoas atribuem valores a
ganhos e perdas, mais do que a riqueza, e os pesos de decisão que atribuem a
resultados são diferentes de probabilidades.
Conforme estabelecido em economia comportamental,
perturbação emocional é associativa, automática e descontrolada; emoção é
insensível ao nível de probabilidade. A teoria da perspectiva difere da teoria
da utilidade na relação que sugere haver entre probabilidade e peso de decisão.
Loteria, por exemplo, é sobre fantasias agradáveis com o improvável. A mera (e
remota) possibilidade importa. O mesmo peso excessivo atribuído a eventos
improváveis explica a indústria dos seguros: o mais pobre paga um ágio para
transferir o risco ao mais rico, em prol de conforto cognitivo.
Para
o agente racional (economia clássica) o preço de compra é um histórico
irrelevante - e sabemos que não é assim. Curiosidade: para os realmente pobres, pequenas quantias
recebidas de dinheiro são percebidas como redução
de prejuízo, não como ganho. O
problema deles é que todas as suas escolhas se dão entre perdas. Despesas
são prejuízos.
Não
temos inclinação, nem os recursos mentais para conferir consistência a nossas
preferências, e elas não são magicamente ajustadas para serem coerentes, como é
o caso no modelo de agente racional.
A
economia comportamental nos fala ainda de contas
mentais: exceto para os muito pobres, dinheiro
é um substituto para pontos em uma escala de autoimagem e realização. O
placar está instalado em nossa cabeça, de acordo com regras do incentivo
social. A verdadeira moeda é emocional.
Terminada
a viagem, hora de conclusões.
O eu recordativo é construção do
Sistema 2, lastreado em memórias, domínio do Sistema 1. Se essa
proposição o pegou de surpresa é porque você anda a ler o resumo de trás pra
frente.
Favorecemos
curtos períodos de intensa alegria em detrimento de longos períodos de
felicidade moderada, dada a negligência com duração e a regra pico-fim, atribuíveis ao Sistema 1.
Percebeu
o conflito? O atento Sistema 2 é quem
pensamos que somos. (...) articula
julgamentos e faz escolhas, mas com frequência endossa ou racionaliza ideias e
sentimentos que foram gerados pelo Sistema 1. Mas erros e vieses nem sempre
são atribuíveis ao modo rápido de pensar. O Sistema 2 exibe a racionalidade que
pode, não a que desejaríamos. Está adstrito à nossa formação. Se conhecemos a
lei dos vasos comunicantes,
resolvemos problemas em que a intuição falha. Se soubermos que o acaso não tem
memória, e que amostras exíguas induzem erros colossais (a lógica do namoro),
estaremos livres de uma série de ilusões de prognósticos.
O
Sistema 1 mantém repertório de habilidades adquiridas numa vida inteira de
prática, e que produz soluções automáticas e adequadas à maioria das tarefas
que nos damos. Quando é encontrado um
desafio para o qual uma reação apta está disponível, essa reação é evocada,
em geral de forma inconsciente.
Mas
esse sistema não gera um sinal de alerta
quando se torna pouco confiável. Respostas intuitivas vêm à mente com rapidez e
confiança, sejam originárias das habilidades, sejam da heurística [vieses]. Não existe um modo simples de o Sistema 2
fazer a distinção entre uma reação apta e uma reação heurística [viciada].
Atenção
é atributo da consciência? Consciência é só quando nos demoramos na reflexão
informada?
O
que somos nós, consciente ou
inconsciente? Receio que ambas as coisas, nem sempre harmônicas. Conquanto o inconsciente
possa chegar a 98% de nossa atividade mental, segundo fundadas suspeitas,
melhor prestarmos alguma atenção a esse desconhecido.
Inconsciente,
inconsciente... divago, sem atinar com resposta aceitável. Espero que Gazzaniga
(Who's in Charge, O Passado da Mente
etc), Mlodinow (Subliminar) Eccles e
Karl Popper venham absolver-me de minha indigência.
Em
meio à perplexidade com os eus experiencial e recordativo (e com os sistemas),
suspeito que falar de felicidade pode ser mera provocação. O que torna o eu experiencial feliz não é exatamente a mesma coisa que
satisfaz o eu da lembrança.
Hélio
Schwartsman arremata, e sinto que com proveito:
(...) Nós, seres humanos, somos ruins em agir com
vistas a metas futuras porque, ao contrário do que acreditamos, nossa
experiência de "eu" se decompõe em muitos eus que funcionam de forma
diversa e têm interesses, às vezes, conflitantes.
É preciso distinguir entre o eu
autobiográfico e o eu que vive as experiências. O primeiro é um ator racional,
que gerencia as informações e, em geral, toma as decisões. O segundo é pura
sensação. É ele que, minuto a minuto, experimenta as dores e os prazeres a que
nos submetemos.
E o problema é que o eu autobiográfico
age como um tirano, que nunca leva em conta os interesses do eu experiencial.
Operando mais com a memória do que com o instante, não hesita, por exemplo, em
aumentar a experiência dolorosa aqui e agora, desde que isso lhe pareça
necessário para maximizar o que imagina serão suas lembranças futuras.
O eu experiencial, embora menos
poderoso na hierarquia cortical, não está desprovido de meios. Ligado às
camadas mais primitivas do cérebro, mobiliza recursos como a preguiça e o
desgosto, capazes de sabotar até as mais sólidas resoluções de ano novo.
Esse descompasso entre os diferentes
eus está na origem de alguns dos mais importantes erros (ou acertos) que uma
pessoa pode cometer, consubstanciados em decisões como as de poupar para a
aposentadoria, casar-se e ter filhos. O problema aqui é que o eu futuro
imaginado quase nunca corresponde ao eu futuro real. É por isso que a busca
pela felicidade é mais capciosa do que parece.
É isso aí. Por enquanto.
Para uma nova visão do inconsciente, aqui, em inglês.