sábado, 12 de março de 2011

Acaso e misticismo


Lamento, mas parece que somente o Hélio escreve coisas inteligentes na imprensa pátria. Coluna após coluna ele filtra o que de melhor é escrito lá fora, traduzindo tudo com um toque pessoal de inteligência e erudição. No texto abaixo ele adverte sobre o papel do acaso em nossas vidas, ilustrando como o misticismo nasce de nossa recusa em compreende-lo corretamente. Apreciemos:

Sempre que eu escrevo sobre religião, como foi o caso na coluna passada, passada, sou invariavelmente assaltado com argumentos do tipo "É preciso que haja um Criador, pois a chance de a vida ter surgido por acaso na Terra é a mesma da de um vendaval varrendo um depósito de lixo fabricar um Boeing 747 a partir dos materiais lá disponíveis".

Admito que a analogia é divertida, mas pouco exata. Ela foi criada por um respeitável astrônomo britânico, sir Fred Hoyle, para defender a hipótese da panspermia, isto é, de que as moléculas que deram origem à vida surgiram no espaço e foram trazidas à Terra por cometas. Sir Fred, que se notabilizou por ser o cientista "do contra" (além da evolução química, opôs-se, entre outras coisas, ao Big Bang), acabou se tornando, por razões óbvias, o herói da turma do design inteligente. É uma pena, porque isso obscurece sua importante contribuição para a nucleossíntese estelar (mais especificamente, o surgimento dos átomos de carbono no núcleo das estrelas).

A ideia básica de Hoyle é que a probabilidade de se obter o conjunto de enzimas para a mais simples das células é de uma em 1040000. Como o número de átomos existentes no úniverso é estimado em "apenas" 1080, o astrônomo concluiu que mesmo um Universo repleto de sopa primordial teria dado pouca chance para processos evolutivos, daí a necessidade de um processo guiado. Apesar de tudo, Hoyle nunca chegou a defender a existência de um Criador. Foi até apelidado de "o ateu favorável ao design inteligente".


Há pelo menos um erro fatal no argumento, a que os biólogos moleculares chamam de falácia de Hoyle. O autor faz suas contas imaginando a probabilidade de uma primeira sequência chegar ao produto final num único passo. Só que nenhum biólogo ousa afirmar que sistemas complexos surgem num único passo. Mesmo quando se considera a origem da vida, é preciso levar em conta os passos intermediários que possam ter sido de alguma valia para a vida pré-celular do organismo. Ignorar isso leva a subestimar grosseiramente a probabilidade do processo.

Subjaz ao erro de Hoyle uma incompreensão fundamental sobre o papel do acaso na evolução. Embora mutações nos seres vivos de fato ocorram aleatoriamente, a seleção subsequente --que conserva o que é útil e despreza o que não o é-- nada tem a ver com acaso. Ela é, se quisermos, o avesso do acaso. Trata-se, na verdade, de um dos poucos processos naturais que conseguem simular o trabalho de projetistas. Só que funciona ao contrário. Ao preservar traços mesmo que milimétricos de utilidade e descartar todas as mutações que não servem para nada (a maioria delas é neutra ou resulta em cânceres, é oportuno lembrar), a seleção consegue, ao longo de inúmeras gerações, produzir estruturas que passam por entidades concebidas por uma inteligência.

Acho que vale a pena agora darmos uma guinada psicológica e tentar entender melhor por que as pessoas compreendem tão mal o acaso. Não parece exagero afirmar que já nascemos com preconceito contra ele. Entre os vieses fundamentais de nosso cérebro, aos quais já aludi algumas vezes neste espaço, está a obsessão pelo controle.

Nós, seres humanos, adoramos estar no controle. E adoramos tanto que achamos que estamos no comando mesmo quando não estamos. Como explica Leonard Mlodinov em seu "The Drunkard's Walk: How Randomness Rules our Lives" (o andar do bêbado: como o acaso comanda nossas vidas), um dos experimentos favoritos dos psicólogos é botar um sujeito diante de luzes que piscam num padrão aleatório e mandá-lo apertar um botão que não faz nada. Em pouco tempo o cara vai dizer que controla as luzes.

Numa variante, colocam um grupo de indivíduos diante de um círculo luminoso onde as luzes piscam ao acaso e dizem que, se elas se concentrarem, farão com que as luzes pisquem num movimento horário. Logo, essas pessoas ficam surpresas achando que conseguiram, embora as luzes sigam piscando aleatoriamente. É até possível fazer com que dois times compitam simultaneamente, um para fazer com que as luzes sigam em movimento horário, e, outro, em anti-horário. O interessante na história é que não haverá perdedores. Os dois lados vão clamar vitória.

A busca por controle está tão impregnada em nossas mentes que produz efeitos inesperados sobre nossos corpos. Num experimento seminal, Ellen Langer dividiu pacientes idosos de asilos em dois grupos. O primeiro podia decidir como dispor as coisas em seus quartos e também pôde escolher uma planta e cuidar dela. O segundo tinha seus quartos arrumados por funcionários. Esses velhinhos também ganharam um planta, mas não puderam escolhê-la nem podiam regá-la, tarefa que cabia ao pessoal de apoio dos asilos. Algumas semanas depois, ambos os grupos foram submetidos a testes que mensuravam o bem-estar. Como o leitor já deve ter adivinhado, o conjuto que exercia controle sobre seu ambiente se saiu bem melhor.

O que ninguém esperava, porém, aconteceu 18 meses depois, quando Langer deu início a um estudo de "follow-up": o grupo que não dispunha de controle apresentou uma taxa de mortalidade de 30%, contra 15% dos que regavam suas próprias plantas.

Outros experimentos de Langer mostraram que a necessidade de sentir-se no controle afeta nossa percepção de eventos aleatórios. Num deles, voluntários preferiram consistentemente jogar contra um adversário que aparentava nervosismo a um que parecia calmo, mesmo sendo uma disputa de cara ou coroa, em que o resultado é determinado exclusivamente pelo acaso, e nada tem a ver com o estado emocional do jogador.

Meu palpite é que esse amor pelo controle, que tem como reverso uma certa fobia do acaso, está também na origem das religiões. Do vodu e dos cultos animistas às rezas, a religião busca transmitir a sensação de que alguém controla o curso dos acontecimentos. Mais do que isso, deixa uma janela para nós mesmos atuarmos. Implorar um favor a um ser onipotente já é tomar algum tipo de atitude, o que é mais do que limitar-se reconhecer o grande papel que o acaso tem sobre nossas existências.

E, como o livro de Mlodinov explora muito bem, esse papel é muito, muito maior do que gostamos de acreditar. É claro que também há espaço para o talento e a determinação, mas, mesmo assim, fatores aleatórios seguem com enorme influência.

No fundo, a conta é simples. Como diz Mlodinov, "se os eventos são aleatórios, nós não estamos no controle, e, se estamos no controle, eles não são aleatórios". Esse choque fundamental é uma das principais razões por que confundimos habilidade com sorte e ações sem sentido com controle. É também uma das razões por que muitos de nós acreditam em deuses e ficam de cabelo em pé com a simples sugestão de que a vida (e a nossa existência e a de todos os que amamos) resulte do encontro inopinado de moléculas de carbono com mais meia dúzia de produtos químicos baratos.