A fila do cartório
estancou. No balcão, uma jovem senhora de cabelos prateados arriscava a
serenidade diante do indecifrável. Para conceder um documento, exigiam-lhe o
CPF da mãe.
Ela argumentava: — Mas a
minha mãe morreu há trinta anos e nunca teve um CPF...
— Só com o CPF dela —
repetia a cartorária.
Ao perceber que a fila a
conduzira à fronteira de uma dimensão irreal, onde o absurdo é a regra,
aventurou-se num quase patético pedido de ajuda: — Por favor, então me
explique: como é que eu tiro o CPF de alguém que não é mais uma pessoa?
A escrevente mirou-a com
firmeza, e retrucou: — Eu não sei, mas sem o CPF não faço.
Cármen Lúcia Antunes Rocha
agradeceu e foi embora mastigando seus versos prediletos de Carlos Drummond de
Andrade:
As leis não bastam
Os lírios não nascem da lei
Meu nome é tumulto, e
escreve-se na pedra...
Três décadas atrás, nas
aulas de Direito Constitucional na PUC de Minas, aprendera que o Estado existe
para servir às pessoas. Hoje, na vice-presidência do Supremo Tribunal Federal,
continua acreditando que o Estado não existe para infernizar a vida dos outros. (...)