sábado, 10 de fevereiro de 2007

A banalidade do mal

Josias de Souza reclama da nossa violência consentida. Ele evoca a banalidade do mal, diagnóstico brilhante de Anna Arendt para a maldade gratuita do nazismo.
Nós, brasileiros, falimos, enquanto sociedade. Não somos os únicos. Individualmente consideradas, as pessoas das sociedades falidas, como as da África, são racionais e se comportam como as de sociedades avançadas.
Mas, consideradas em seu meio, elas agem de forma doentia (o que, basicamente, explica a fracasso).
No nosso caso, vemos uma sobrenatural brutalidade se tornar banalidade. Bandidos fecham um ônibus, encharcam-no de gasolina, impedem uma mãe com um bebê de sair e tocam fogo. Todos morrem, incinerados. Nada de mais.
A novidade da semana:
Um grupo de marginais abordara, num subúrbio do Rio, a comerciante Rosa Cristina Fernandes. Queriam o carro dela. Rosa não opôs resistência. Desceu. Tirou do veículo a filha Aline, 13. No instante em tentava destravar o cinto de segurança do filho João, 6, os bandidos arrancaram. E lá se foi João, dependurado do lado de fora do carro. Arrastaram-no por sete inesgotáveis quilômetros. Abandonaram-no numa rua sem saída, ao lado do Corsa sujo de sangue, corpo dilacerado, sem cabeça, ossos à mostra.
(...)
Assim como na rotina de Eichmann, o que espanta na realidade brasileira não é propriamente a anormalidade. Espantosa é a normalidade que resplandece em torno do inaceitável.
Sabe o que estamos fazendo a respeito, leitor?
Isso mesmo: NADA.
Estamos até felizes. Só temos de evitar ser sorteados pelos criminosos, pelos mosquitos da dengue, pelos esmoléus, pelas kombis de anúncios de rua, pelas crateras nas estradas...
Nada a fazer, dizem os semi-mortos personagens de Samuel Beckett. "Amém", dizemos todos nós, brasileiros falidos.

Estela

Aí está o obelisco (andou freqüentando as páginas de um best seller, ao que parece).

Pont du Gard

Em tempos escrevi:
"Deixo a Provença em direcão a Carcassone. Ontem, a Pont du Gard. Esse guarda era mesmo cheio das "influências": tinha uma ponte e um castelo só pra si...
A Pont é parte de um aqueduto de 50 quilômetros de extensão, construído pelos romanos, há uns dois mil anos. O ribeirão Gauche, perto de Nîmes, lhe serve de cenário mais propício.
Quando cheguei o sol de inverno deitava luz imemorial e atravessei, desprevenido, os pórticos desse conduto aparelhado pelos séculos, talvez excessivos.
Do outro lado ouvi o diálogo e entendi as silenciosas urgências do sol. Os pórticos projetavam-se altaneiros sobre um riacho esmeralda, e o conjunto, inteiramente vitorioso, recebia generosas pinceladas de ouro.
Tanta beleza, concentrada num fim de tarde, era demasiado, e tive raiva de tantas tardes, pretéritas e futuras, em que não estive/estarei aqui.
Nîmes, 18.01.2007."

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

Paris

O jardim do Louvre, o obelisco, a igreja de Santa Madalena se encontram num mesmo lugar, vigiados pela Torre Eiffel. O Egito exige a devolução da estela sobre o obelisco, com seus mais de 4.000 anos, trocada por um relógio. A França resiste: "diabos, se eles queriam tanto o reloginho, que fiquem com ele!".

Moça vietnamita

Carcassone

Pont du Gard

Aí está, a ponte, a tarde, a saudade.

Fim de férias

Agora sim, fim de férias. Como de costume, arrematei todos os jornais e revistas que consegui trazer, para uma ambientação desse problema sempre adiado chamado Brasil. Mesmo pesquisando o miolo das reportagens, lá pela página 46 do caderno f, não há novidade, como todos suspeitavam. A dengue, que queima, as estradas, que ruem: a chuva. Os escândalos, a repovoação do estado, a inapetência geral: nada incomoda esse brasileiro, que espera o carnaval, copas, eleições; ganhar na loteria. O costureiro passa cantadas no recinto da Câmara; Bush pede 620 bilhões para suas guerrinhas; o premiê canadense diz que aquecimento global é coisa de socialista aloprado (eu sempre soube que era coisa de comunista). Espere um pouco leitor, que vou até minha sacada acender uma fogueirinha (vou dar uma utilidade a meus escritos). As revistas informam a volta de Collor e Letícia. Prefiro a de Letícia. O pior lugar-comum de quem volta de uma viagem, o mais imperdoável, é dizer que voltou com a cabeça mudada. Voltei com a cabeça mudada. O inferno são os outros.

domingo, 4 de fevereiro de 2007

Sarcasmo e literatura

Jonathan Swift, em A Tale of a Tub, escreveu que determinadas peles de arminho e uma peruca, colocadas de certo modo, formam o que costumamos chamar de juiz, assim como uma justa combinação de cetim e cambraia chama-se bispo.

Essas definições, risonhas, atendem aos requisitos de simplicidade, graça e economia. Swift era padre anglicano, foi secretário pessoal de primeiro-ministro, amigo de políticos e juízes. O fato não impediu essas louvaminhas. Impaciente da morte, o irlandês Swift esperou-a durante trinta anos de sofrimento físico e mental. Quando morreu, exibia venerável loucura. Os amigos, alvos dos elogios, lembraram que essa qualidade sempre o honrou.

Mais que um singelo exercício da injúria, A História de um Tonel é uma brilhante demonstração de força do escárnio. Borges, gênio argentino, não ignorava a arte da mais fina, às vezes devastadora ironia. Descria da democracia, “esse curioso abuso da estatística”, mas lutou e sofreu pela liberdade de consciência, pelo direito de se opor a tiranias. Apresentou-nos esta página, feliz, em que descreve uma sociedade futura, borgesiana:

- O que aconteceu com os governos?
- Segundo a tradição, foram caindo gradualmente em desuso. Convocavam eleições, declaravam guerras, impunham taxas, confiscavam fortunas, ordenavam detenções e pretendiam impor a censura e ninguém no planeta as acatava. A imprensa deixou de publicar suas colaborações e suas efígies. Os políticos tiveram de procurar ofícios honestos; alguns foram bons cômicos ou bons curandeiros. A realidade, sem dúvida, deve ser sido mais complexa que este resumo. 

Sua crítica a Hitler, e ao nazismo de seus contemporâneos, feita em 1940, ainda será leitura obrigatória quando meus genes estiverem dissolvidos na anarquia dos tempos. Sua coragem e previdência, sua disposição de nomear os bois assassinos, de não tergiversar, deixa-nos, brasileiros, constrangidos com o conforto ilícito dos escritores pátrios, sempre com desculpas perfeitas para não chegar a marreta nos crimes nossos de cada dia. Machado e Guimarães Rosa são gênios consumados. 

Mas me pergunto se, em algum momento, eles se preocuparam em aumentar nossa consciência social. Em Machado é possível encontrar finíssimas ironias contra o cinismo de nossa sociedade. Você só precisa ser sábio e erudito para achá-las. Quantos leitores as alcançam? Borges, intrépido – gênio – denunciou o argentino, em quem via um individualismo pouco edificante, denunciou o nazismo (eco tardio das iras de Carlyle e da improbidade de Fichte), o comunismo, a psicanálise e as feiúras pós-modernas.

Ganhou todas essas batalhas, foi senhor de uma literatura, mais do que de uma obra; não há uma única página sua que não encerre uma felicidade, como afirmou a respeito de De Quincey. A ninguém devo tantas horas de felicidade pessoal como a Borges, para tomar de empréstimo outra de suas frases luminosas.

Machado é todo um continente de ceticismo, mas, ao contrário de Borges, não ignorou o exercício da aristocracia; também desdenhou a República e, mulato, pode ser acusado de inalcançáveis ironias a respeito da exploração do homem pelo homem. A descrição do escravo recém-liberto que compra um escravo para nele fazer montaria abunda em acusações contra o gênero humano. E revela o gênio por trás da equívoca pose aristocrática. Apraz-me a crítica, seja irônica, seja sarcástica.

Gógol nos concede o riso, embora Almas Mortas seja um livro profundo, que não consente epílogo: continua funcionando em nós, silencioso; perdura em nossas mentes enquanto a morte não nos absolver de nossas escravidões. Vejamos a Rússia, suas ênfases: 
- É claro, ninguém é perfeito, mas, em compensação, o governador, que ótima pessoa!
- É o primeiro bandido do mundo!
- Como assim, o governador, um bandido? – disse Tchítchicov, sem conseguir compreender como o governador fora parar na categoria dos bandidos.
- A cara dele também é de bandido! É só pôr-lhe na mão uma faca e soltá-lo na estrada – vai esfaquear o primeiro que encontrar, por causa de um copeque! 
Louvando a arte da conversação, pródiga em momices, diz:
Discutia-se, gritava-se, falava-se de tudo: de política, até de assuntos militares; alguns externavam opiniões liberais, pelas quais em outra ocasião teriam surrado os próprios filhos. (p. 179).
Borges lançou algumas das maiores mordácias contra sociedades secretas. A nomeação para o cargo de inspetor de aves e coelhos teve seu efeito, mas não o aniquilou; não sofreu qualquer acidente nem foi calado à força de suborno. Outras intimidações não funcionaram. Nenhuma prostituta o fisgou; sua vida era um inferno administrável, a nos fiarmos em notas autobiográficas. Perón, seu versátil antagonista, só entrará na eternidade por ter tentado intimidar o gênio de Tlön e da Biblioteca de Babel. À semelhança do cão que morde o dono.

Ele ataca a Fênix, seita que é muitas, senão todas:
Disse que a história da seita não registra perseguições. Isso é verdade, mas como não há grupo humano em que não figurem partidários da Fênix, também é certo que não há perseguição ou rigor que estes não hajam padecido ou exercido. (...) A iniciação no mistério é tarefa dos indivíduos mais desprezíveis. Um escravo, um leproso ou um mendigo servem de mistagogos. (...) O segredo é sagrado mas não deixa de ser um pouco ridículo; seu exercício é furtivo e ainda clandestino e os adeptos não falam dele. Não há palavras decentes para denominá-lo, mas se entende que todas as palavras o denominam, ou antes, que inevitavelmente o aludem. (...) Tenho merecido em três continentes a amizade de muitos devotos da Fênix; consta-me que o Segredo, a princípio, pareceu-lhes frívolo, penoso, vulgar e (o que é mais estranho) inacreditável. Não concordavam em admitir que seus pais se houvessem rebaixado a tais práticas. O estranho é que o Segredo não se tenha perdido, há muito; a despeito das vicissitudes do orbe, a despeito das guerras e dos êxodos, chega, surpreendentemente, a todos os fiéis. 
Essas páginas, esses autores, sempre me arrasam e, de algum modo, me fazem muito bem.