Josias (de novo o Josias) aprontando:
Dicionários são as masmorras das palavras. Mas a língua é solta e a segurança é frágil. As prisioneiras por vezes escapam do cárcere. Uma vez em liberdade, buscam o disfarce de novos significados. De tempos em tempos, são recapturadas. E voltam ao calabouço de cara renovada. Vários nomes, vocábulos e siglas vagueiam pela cena eleitoral de 2006 à procura da máscara mais conveniente. Enquanto as algemas do dicionário não os alcançam, vai abaixo uma tentativa de desmascará-los:
- Alckmin: uma calva à procura de idéias;
- Aloprado: indivíduo que busca no birô de ‘inteligência’ de campanha um álibi para a falta de miolos; pilhado em flagrante, atinge a perfeição, tornando-se perfeito idiota;
- Brasil: o insolúvel levado longe demais;
- Corrupção: com um r providencialmente dobrado e um p que, embora mudo, não consegue ocultar o rabo do ç, sempre à mostra, é uma palavra cuja terminação, ão, denuncia o desejo de expansão;
- Cristovam: uma idéia à procura de votos;
- Democracia: regime tão maravilhosamente perfeito quanto qualquer outra mentira; sistema político cuja mobilidade permite a um operário atingir o auge da desfaçatez burguesa;
- Excluído: fatalidade embutida no modelo; revolta que trocou o inconformismo pelo cartão do Bolsa Família;
- Heloisa: camiseta branca, sem slogam; pessoa capaz de falat dez vezes antes de pensar;
- Lula: Molusco cefalópode, dibranquiado, decápode, loliginídeo, de coloração avermelhada, podendo mudar de cor segundo a conveniência; em situações de perigo, perde o olfato e a visão;
- Povo: fera de muitas cabeças que, quando bem adulada, lambe e balança o rabo; multidão obsoleta que, desavisada de sua própria inutilidade, continua se reproduzindo desordenadamente;
- PMDB: organização partidária com fins lucrativos;
- PFL: legenda que busca um casamento, em regime de comunhão de males, com qualquer outra que reúna condições de chegar ao poder;
- PSDB: um tipo de social-democrata que ambiciona voltar ao poder para complementar a execução do programa do PFL;
- PSOL: espécie de galinha que promete pôr o Sol; esquerda que, não tendo ainda vencido na vida, não pôde virar direita;
- PT: partido que abandonou a ideologia para cair na vida;
- Programa: peça de campanha que anota coisas definitivas sem definir as coisas;
- Reeleição: estatuto que faculta a um jóquei cego o direito de continuar cavalgando, por mais quatro anos, uma mula sem-cabeça;
- Tucano: ave piciforme, ranfastídea, da qual há quatro espécies brasileiras reunidas no gênero Ramphastos e uma espécie que, organizada sob o gênero político, confere às demais uma péssima reputação.
(Escrito por Josias de Souza às 22h58)
Escrevi, tempos atrás:
Releio os malditos poemas
que dormem em mim
enquanto eu velo
meus poemas prestam-se ao pesadelo,
vivem a um triz do desmanchar-se.
Às vezes arrasto alguns comigo
para uma alegre fogueirinha,
como nos ensinou Borges.
Às vezes, apresento-os a pessoas.
O que as pessoas têm com meus devaneios?
Eu deveria deixá-las em paz.
Apraz-me incendiar o bom senso
com minhas farsas poéticas
com meus achaques literários
minhas invenções rudes e baratas.
Alguns poemas, cansados da longa espera,
revoltam-se e tornam aos dicionários.
Ficaram magoados com a lenta taxa de mutação
– uma ou duas palavras a cada cinco anos –,
e nenhuma edição.
O público não merece meus poemas.
Meus poemas não merecem o público.
Então faço algumas reformas. Convoco
novas palavras, escondo velhas fórmulas
que finalmente confessaram seu esquematismo.
Oculto antigos erros;
exibo, orgulhoso, novos.
Redivivem meus poemas,
mas não serão publicados.
Rainer Maria Rilke:
As obras de arte são de uma infinita solidão:
nada as pode alcançar tão pouco quanto a crítica.
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