Jonathan
Swift, em A Tale of a Tub, escreveu que determinadas peles de arminho e
uma peruca, colocadas de certo modo, formam o que costumamos chamar de juiz,
assim como uma justa combinação de cetim e cambraia chama-se bispo.
Essas definições, risonhas, atendem aos requisitos de simplicidade,
graça e economia. Swift era padre anglicano, foi secretário pessoal de
primeiro-ministro, amigo de políticos e juízes. O fato não impediu essas
louvaminhas. Impaciente da morte, o irlandês Swift esperou-a durante trinta
anos de sofrimento físico e mental. Quando morreu, exibia venerável loucura. Os
amigos, alvos dos elogios, lembraram que essa qualidade sempre o honrou.
Mais que um singelo exercício da injúria, A
História de um Tonel é uma brilhante demonstração de força do
escárnio. Borges, gênio argentino, não ignorava a arte da mais fina, às vezes
devastadora ironia. Descria da democracia, “esse curioso abuso da estatística”,
mas lutou e sofreu pela liberdade de consciência, pelo direito de se opor a
tiranias. Apresentou-nos esta página, feliz, em que descreve uma sociedade
futura, borgesiana:
- O que aconteceu com os governos?
- Segundo a tradição, foram caindo gradualmente em desuso. Convocavam eleições, declaravam guerras, impunham taxas, confiscavam fortunas, ordenavam detenções e pretendiam impor a censura e ninguém no planeta as acatava. A imprensa deixou de publicar suas colaborações e suas efígies. Os políticos tiveram de procurar ofícios honestos; alguns foram bons cômicos ou bons curandeiros. A realidade, sem dúvida, deve ser sido mais complexa que este resumo.
Sua crítica a Hitler, e ao nazismo de seus contemporâneos, feita em
1940, ainda será leitura obrigatória quando meus genes estiverem dissolvidos na
anarquia dos tempos. Sua coragem e previdência, sua disposição de nomear os
bois assassinos, de não tergiversar, deixa-nos, brasileiros, constrangidos com
o conforto ilícito dos escritores pátrios, sempre com desculpas perfeitas para
não chegar a marreta nos crimes nossos de cada dia. Machado e Guimarães Rosa
são gênios consumados.
Mas me pergunto se, em algum momento, eles se
preocuparam em aumentar nossa consciência social. Em Machado é possível
encontrar finíssimas ironias contra o cinismo de nossa sociedade. Você só
precisa ser sábio e erudito para achá-las. Quantos leitores as alcançam? Borges,
intrépido – gênio – denunciou o argentino, em quem via um individualismo pouco
edificante, denunciou o nazismo (eco tardio das iras de Carlyle e da
improbidade de Fichte), o comunismo, a psicanálise e as feiúras pós-modernas.
Ganhou todas essas batalhas, foi senhor de uma literatura, mais do que
de uma obra; não há uma única página sua que não encerre uma felicidade, como
afirmou a respeito de De Quincey. A ninguém devo tantas horas de felicidade
pessoal como a Borges, para tomar de empréstimo outra de suas frases luminosas.
Machado é todo um continente de ceticismo, mas, ao contrário de Borges,
não ignorou o exercício da aristocracia; também desdenhou a República e,
mulato, pode ser acusado de inalcançáveis ironias a respeito da exploração do
homem pelo homem. A descrição do escravo recém-liberto que compra um escravo
para nele fazer montaria abunda em acusações contra o gênero humano. E revela o
gênio por trás da equívoca pose aristocrática. Apraz-me a crítica, seja
irônica, seja sarcástica.
Gógol nos concede o riso, embora Almas Mortas seja um livro profundo,
que não consente epílogo: continua funcionando em nós, silencioso; perdura em
nossas mentes enquanto a morte não nos absolver de nossas escravidões. Vejamos
a Rússia, suas ênfases:
- É claro, ninguém é perfeito, mas, em compensação, o governador, que ótima pessoa!
- É o primeiro bandido do mundo!
- Como assim, o governador, um bandido? – disse Tchítchicov, sem conseguir compreender como o governador fora parar na categoria dos bandidos.
- A cara dele também é de bandido! É só pôr-lhe na mão uma faca e soltá-lo na estrada – vai esfaquear o primeiro que encontrar, por causa de um copeque!
Louvando a arte da conversação, pródiga em momices, diz:
Discutia-se, gritava-se, falava-se de tudo: de política, até de assuntos militares; alguns externavam opiniões liberais, pelas quais em outra ocasião teriam surrado os próprios filhos. (p. 179).
Borges lançou algumas das maiores mordácias contra sociedades secretas.
A nomeação para o cargo de inspetor de aves e coelhos teve seu efeito, mas não o aniquilou; não sofreu qualquer acidente nem foi calado à
força de suborno. Outras intimidações não funcionaram. Nenhuma prostituta o fisgou;
sua vida era um inferno administrável, a nos fiarmos em notas autobiográficas. Perón, seu versátil antagonista, só
entrará na eternidade por ter tentado intimidar o gênio de Tlön e da Biblioteca de Babel. À
semelhança do cão que morde o dono.
Ele ataca a Fênix, seita que é muitas, senão todas:
Disse que a história da seita não registra perseguições. Isso é verdade, mas como não há grupo humano em que não figurem partidários da Fênix, também é certo que não há perseguição ou rigor que estes não hajam padecido ou exercido. (...) A iniciação no mistério é tarefa dos indivíduos mais desprezíveis. Um escravo, um leproso ou um mendigo servem de mistagogos. (...) O segredo é sagrado mas não deixa de ser um pouco ridículo; seu exercício é furtivo e ainda clandestino e os adeptos não falam dele. Não há palavras decentes para denominá-lo, mas se entende que todas as palavras o denominam, ou antes, que inevitavelmente o aludem. (...) Tenho merecido em três continentes a amizade de muitos devotos da Fênix; consta-me que o Segredo, a princípio, pareceu-lhes frívolo, penoso, vulgar e (o que é mais estranho) inacreditável. Não concordavam em admitir que seus pais se houvessem rebaixado a tais práticas. O estranho é que o Segredo não se tenha perdido, há muito; a despeito das vicissitudes do orbe, a despeito das guerras e dos êxodos, chega, surpreendentemente, a todos os fiéis.
Essas páginas, esses autores, sempre me arrasam e, de algum modo, me
fazem muito bem.
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