Demétrio Magnoli, na Folha:
"Eu entendi isso, Edward. Esse esqueleto nunca
sorrirá novamente." Leszek Kolakowski, filósofo polonês exilado, concluiu
com essas palavras sua réplica ao historiador Edward P. Thompson, que o acusara
de trair os ideais socialistas.
O ano era 1974, seis depois
da invasão da Tchecoslováquia pelas forças do Pacto de Varsóvia. Thompson
rasgara sua carteirinha do Partido Comunista britânico em 1956, na hora da
invasão soviética da Hungria, mas interpretava o stalinismo como apenas um
deplorável desvio no curso da história rumo ao radioso futuro comunista.
Kolakowski, porém, sabia mais - e tinha um norte moral melhor.
Eric Hobsbawm nunca
renunciou à sua carteirinha do partido. Aos 23 anos, ele assinou
com Raymond Williams um panfleto de apoio ao pacto Molotov-Ribbentrop, entre a
URSS de Stálin e a Alemanha de Hitler. Na maturidade, atravessou impávido as
fogueiras da Hungria e da Tchecoslováquia.
Em 1994, aos 77 anos,
pouco depois da queda do Muro de Berlim, publicou "Era dos Extremos",
uma interpretação do século 20 consagrada a desenhar um sorriso no esqueleto já
enterrado do stalinismo.
Hobsbawm, notável narrador
do século 19, autor da trilogia das "eras" que desvendou para o
grande público a trama da história contemporânea, entregou-se então à
falsificação deliberada para restaurar o argumento imoral de Thompson.
A "era dos
extremos" é uma tese paradoxal, cuja síntese emerge na sua introdução:
"A vitória da URSS sobre Hitler foi uma realização do regime lá instalado
pela Revolução de Outubro. Sem isso, o mundo hoje (com exceção dos EUA)
provavelmente seria um conjunto de variações sobre temas autoritários e
fascistas, mais que de variações sobre temas parlamentares liberais."
O totalitarismo
stalinista, assegura-nos o historiador, podia ter seus defeitos, mas representava
o socialismo e, sem ele, a humanidade teria sido tragada, em definitivo, pelo
vórtice do fascismo.
O tribunal final da
História, constituído por um único juiz, o próprio Hobsbawm, oferece um
veredicto de absolvição dos processos de Moscou, do gulag, da supressão
absoluta da liberdade. A matéria pútrida do "socialismo real"
salvou-nos, a todos, de um destino pior, que era tecido pelo capitalismo em
crise.
A narrativa inteira se
organiza persuasivamente ao redor da tese, investindo na aposta segura de que o
leitor médio carece das informações indispensáveis para refutá-la.
O regime de Stálin
destroçou o comando das forças armadas soviéticas nos expurgos dos anos 30,
aumentando a vulnerabilidade do país à invasão alemã. A URSS não triunfaria
sobre Hitler sem a vasta ajuda militar americana.
No primeiro e crucial ano
do conflito, a aliança firmada pelo pacto Molotov-Ribbentrop converteu a URSS
em fornecedora principal de matérias-primas e combustíveis para a máquina de
guerra nazista. A história de cartolina de
Hobsbawm é uma contrafação da história da Segunda Guerra, inspirada diretamente
pelas narrativas oficiais fabricada por Moscou no imediato pós-guerra. O
esqueleto precisa antes mentir, para depois sorrir.
A trilogia das
"eras", narrativas eruditas escritas em linguagem cristalina, foi a
porta de entrada de centenas de milhares de leitores para as delícias da
história. "Era dos Extremos" singrou no oceano de autoridade das
obras precedentes.
No Brasil, país onde
Hobsbawm tem mais leitores do que na Grã-Bretanha, o livro beneficiou-se de uma
recepção laudatória, patrocinada por intelectuais inconformados com as
marteladas críticas dos berlinenses daquele 9 de novembro de 1989. Fora daqui, porém, nem
todos aceitaram sorrir junto com o esqueleto de uma mentira.
Num ensaio de 2003, o
historiador Tony Judt escreveu o epitáfio incontornável: "Hobsbawm
recusa-se a encarar o mal face a face e chamá-lo pelo seu nome; nunca enfrenta
a herança moral e política de Stalin e de seus feitos. Se ele pretende
seriamente passar o bastão radical às futuras gerações, essa não é a maneira de
proceder".
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