Consta que os motoristas do Rio voam para a morte; que tentam seus anjos. Glória, Catete, Botafogo, Ipanema. Daqui pra lá, de lá pra cá, acesas carreiras.
O carioca não se importa com o trajeto do ônibus, desde que o número pareça familiar. A moça do hotel sugeriu o 409. Sei lá pra onde ia o 409, um montão deles apresentava os mais aleatórios números, com os mesmos destinos: Leblon, Ipanema, Lagoa, Jardim Botânico. Por um tempo fiquei tentado a ir à Usina. Depois veio o desejo incontrolável de ir ter à Barra.
Mantive os planos. Após o terceiro ou quarto 409, resolvi mudar de ponto. Aquele ponto no Aterro do Flamengo nunca me pareceu respeitável.
Mas após o quinto 409 que passou chutado no novo ponto, percebi que estava diante da linha-dura, o intransigente núcleo de resistência aos campo-grandenses no Rio.
Voltei ao hotel, decidido a combater o inimigo. A moça disse que nunca tinha visto; o camelô na calçada aconselhou que eu agüentasse firme; que após alguns dias, de pé, no ponto, os motoristas finalmente cederiam. Esquecia-me dizer que a moça da concierge tinha olhos divagadores, doces e precisos em conhecer-me os destinos.
Meti-me num táxi, que voou até as beiradas da Lagoa. Lá, fiquei de emboscada, esperando o atrabiliário 409, que não tardou a apontar na avenida, gingando ameaças e provocações.
No momento aprazado, num movimento preciso, ao fingir que estava apenas passeando, pulei para a avenida gritando e gesticulando, enquanto os passantes e as pessoas do ponto, contaminadas por minha ânsia, se punham a exortar o motorista a parar, nem que fosse para impedir meu atropelamento.
E o insondável 409, “gostoso de ruim de dentro do fundo das espécies”, se deteve, ante o clamor público.
O 409 nem sempre foi assim. Mesmo porque essa linha já freqüentou outras freguesias, como todo carioca sabe. É que, volta e meia, as autoridades municipais trocam os números, mudam os destinos.
As pessoas inclinadas a lamúrias dizem que isso provoca o caos, que atormenta o pobre carioca. Mas as autoridades sabem o que é melhor para o carioca; e o melhor é que se cale.
Algumas mudanças são realmente questionáveis. Houve uma que consistiu em anunciar massivamente as alterações, martelando na mente do carioca seus novos rumos, sem que uma única linha, um único número fosse alterado.
O taxista me informou que, comparado ao 179, até que é fácil apanhar o 409. No 179, parece, reúnem-se todos os demônios dessa cidade, presididos pelo primeiro demônio do mundo, o mais furioso deles, ao volante. De tão diabólico, ele é capaz até de parar pra você, leitor. Um sufoco; uma linha que simplesmente Deus me livre.
O contínuo do hotel gabou conhecer alguém que já conseguiu pegar o 179, mas a zombaria de seus amigos sugere se ouça com reservas esse sucesso. A probabilidade é a mesma de acertar na loteria, ainda que não no prêmio principal.
Sorte sua, leitor, nunca ter precisado tomar esse ônibus.
O carioca vive numa bonita cidade, mas dirige como se nada mais lhe restasse senão fugas suicidas. Já o campo-grandense parece eternamente indo socorrer a sogra.
Prefiro a correria carioca.
Inquiriram, quiseram saber de minha cidade. Respondi Campo Grande, com a convicção que me foi possível. Tirante os ipês coloridos, e principalmente os brancos, que ordenei nascessem no Parque das Nações Indígenas, não tenho provas da existência dessa cidade, de esquiva entrega geográfica. O mesmo sucedia a Pessoa, em relação a sua Lisboa. Esse fato, embora previsto, me aborrece.
12 de maio de 2004.
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