1. A miséria.
Numa mesquinha manhã da periferia de Déli, mendigos, numa rotatória. Velhos e crianças; homens e mulheres. Um velho saía de uma furna improvisada no canteiro. Em sua expressão os piores infernos se congratulavam e zombavam de nossa esperança e boa vontade.
Ele parecia ter esgotado todo o estoque de dor do mundo, e escovava os poucos dentes. Não pude com aquele velho. Todos que naquele momento por ali passavam se transformavam em Mengeles, pouco importa se, olimpicamente, não o soubessem.
Os amigos do velho interagiam, ocupados com o café-da-manhã, inexistente ou atroz.
Pensei em registrar esse mal-estar fundamental, antes que ele se transforme em mero ruído vestigial de uma viagem.
2. De minha cama no hotel em Phnom Penh via o Mekong. Sua vasta rede de canais medram na selva e presidem o Camboja, esse estado de coisas que nos esforça a alma.
Na subida de barco de um dos rios que encontram o Mekong em frente ao hotel, uma criancinha explorava a selva com seu poderoso navio que mais bem examinado era uma modesta bacia.
Sob luz amiga do dia inicial, o Mekong mostra toda a fortuna da Ásia. Um madrugador balé de canoas, com pescadores e comerciantes, voluteia e aviva o rio.
3. O povo japonês.
À exceção do chinês, que trabalha em massa desde as 7 da manhã, não há como o japonês. Mesmo na mais modesta lojinha os funcionários correm para atendê-lo. Correm normalmente, sem ninguém que a isso os obrigue; sem hora de fechamento nem visita do patrão.
O Japão impressiona fortemente.
Nas ruas a ordem, o respeito, o poderio econômico. Em todos os móveis urbanos, circunspecção e mais respeito. Não se consegue detectar uma única mancha, uma única pichação em nenhum viaduto, de resto polidos como se decorassem uma sala de estar.
Mas nem tudo são delícias. Às vezes, em algumas lojas, você é surpreendido com insistentes gritos dos vendedores. O que são esses gritos, a quem se dirigem? Não ficou claro. Dada a repetição, histérica, se parecem com gritos de pânico num bando de macacos imaturos. Conhecida a estridência, dir-se-ia que é iminente um maciço ataque de predadores.
Não perguntei o motivo dos gritos, se pavor ou excentricidade, numa cultura quanto ao mais avançada.
4. A muralha chinesa.
Após uma hora de carro, do aeroporto até o centro de Beijing, uma chinesa que podia não ter mais que 1,80 m, mas tinha o porte, a altivez e a impenetrabilidade de uma torre dessa muralha que corta a vasta Ásia e instrui astronautas.
Com seu longo manto, gorro e botas vermelhas, dir-se-ia que a formidável chinesa nem tanto recebia os hóspedes, e sim que os consentia, com uma saudação quase marcial.
De pé, impassível apesar do frio glacial, hirta como um símbolo, ela era mais eficaz que todo um batalhão do exército chinês.
Era a própria muralha, de rosto impensavelmente marcial e feminino.
Ao cabo de alguns dias, reuni coragem para dirigir-lhe a palavra.
"Ráo", foi o que pensei ter ouvido em resposta (a expressão é uma saudação, vim a saber depois. Inteira, soa algo como Oh ráo).
Havia outras dessas muralhas, todas em impecável longo vermelho. Embora com jurisdição limitada à portaria do Novotel de Beijing, a ira de uma delas bastaria para te arruinar por toda a China, leitor.
5. Corumbá.
Vim de inopino, aproveitando a carona do amigo Gilberto. É tempo de carnaval, mas terão de perdoar eu não ser folião.
Na primeira parada do improvisado safári fotográfico fomos recebidos por uma importante delegação de muriçocas, que prontamente nos convidou para um banquete.
O repelente mostrou por que foi escolhido pelo exército francês, e acabei alijado do festim.
Os bichos estavam por toda parte e colaboravam com o fotógrafo, desastrado. Um gavião posou pacientemente por uns 15 minutos até eu achar a regulagem da máquina. Um garboso veado pantaneiro se submeteu a uma demorada troca de lentes até os cliques que lhe eram devidos.
Um casal de tuiuiús fez longa dança conjugal enquanto o vôo de outros pássaros, previamente combinado, emoldurava a paisagem. Uma simpática porca ficou feliz ao ser fotografada, com todas as suas opulentas arrobas.
Muitos biguás, e toda a parentada, foram sondados, numa tentativa de registrar essa prodigiosa farra de aves que é o pantanal. Desde o galho, um deles se jogou na água, para fugir da câmera ou conversar com algum peixe, não sei.
Os jacarés pareciam magoados e não compareceram. Os poucos que vi eram filhotes ou adolescentes assustados e declinavam os cliques.
Com tentar fotografá-las, frustrei uma reunião de anhumas no alagado oposto à cidade. Algumas se deixaram registrar, enquanto outras, avessas a publicidades, se reuniram às amigas na Bolívia.
Ninhais, inacreditáveis ipês de cores incendiárias; lagoas na vazante, forradas de peixes, jacarés e aves: sinto-me na obrigação de estudar melhor os ciclos de seca e cheia, vida e morte nesse vasto santuário.
Corumbá, 27 de fevereiro de 2006.
Nenhum comentário:
Postar um comentário