sábado, 25 de março de 2006

De crimes e imposturas II

A revista Veja traz a seguinte contribuição à reflexão, neste domingo: A quebra do sigilo bancário do caseiro, praticada com o intuito de defender Palocci e desqualificar seu acusador, é um estupro constitucional como poucas vezes os governantes ousaram cometer no Brasil. O resultado da ação é um vendaval ainda em formação mas que já pode ser considerado o pior escândalo do governo depois do mensalão.
Pior do que roubar dinheiro público e, com ele, comprar a cumplicidade, o silêncio ou o apoio de deputados no Congresso? Sim, pior. Quebrar o sigilo bancário de um inocente para amedrontá-lo e impedir que continue acusando um potentado é mais grave constitucionalmente do que cada uma das ações miúdas reunidas sob o rótulo de "mensalão". Este foi orquestrado em cima, mas executado por asseclas secundários em operações de ilegalidade presumida porém não flagrante. Ou pelo menos não flagradas em pleno vôo. O sigilo do caseiro foi quebrado por um braço do Estado que se colocou a serviço dos interesses de um grupo político. Essa ação desperta os mais sombrios presságios sobre os atos autoritários que ainda podem vir por aí. "Quem faz isso faz qualquer coisa", diz Paulo Brossard, de 81 anos, ex-ministro da Justiça e membro da galeria dos grandes juristas do país. "A violação do sigilo tem caráter absolutamente ilícito, irregular e intolerável. É uma afronta ainda mais grave à lei porque parece envolver autoridades que deveriam conhecer minimamente seus deveres cívicos e públicos." (...) Até a noite de sexta-feira passada, a operação ilegal permanecia sem culpados claros. A CPI soube que a ordem para violar o sigilo do caseiro partiu do gabinete da presidência da Caixa, ocupada pelo petista Jorge Mattoso, mas não obteve nenhuma confirmação disso. O que se sabe é que a conta do caseiro foi bisbilhotada durante dezesseis minutos. A invasão ao computador começou às 20h50min25s e foi encerrada às 21h06min12s. Quem vasculhou os dados fez questão de ampliar a pesquisa, conferindo as informações bancárias do caseiro desde julho de 2005 – quando o escândalo do mensalão mal completara um mês de vida. Os governistas empenham-se em dar curso à versão de que o extrato foi emitido legalmente por gente com acesso autorizado aos dados. Não explicam, porém, como o papel saiu do banco para ser entregue à imprensa. A narrativa oficial é cheia de falhas. O indício mais eloqüente de que a bruxaria estava encomendada desde o início reside no fato de que o funcionário que entrou no computador tomou o cuidado de apagar seu rastro, eliminando do extrato a sua matrícula, ou seja, o número pessoal que serve para identificá-lo. (...) Permanece, portanto, o mistério de por que Francenildo passou a ser tratado como o inimigo número 1 do governo. O que levou o governo do PT, esse partido que chegou a fazer da ética sua ideologia, a assemelhar-se tanto com os momentos de vale-tudo dos estertores da era Collor? O escândalo atual é um emblema da ruína moral deste governo. Sua gravidade, porém, não está nos aspectos mais comentados. Não está no passado de sombras de Palocci na prefeitura de Ribeirão Preto, nas suas visitas furtivas ao casarão do Lago Sul, nas suas afirmações reiteradamente desmentidas em público ou mesmo nas acusações do caseiro Francenildo Costa. Não está na novidade mais recente – a de que a turma de Ribeirão, com Palocci à frente, também freqüentava uma casa em Angra dos Reis, no litoral do Rio de Janeiro, para onde se deslocaria a bordo do helicóptero de um bingueiro angolano. A gravidade do caso está mesmo é na inacreditável cadeia de ações criminosas patrocinadas pelo governo nas duas últimas semanas. O sigilo bancário e fiscal é um dos pilares das nações civilizadas. Ele protege os cidadãos. Nem Fidel Castro e seus barbudos assassinos buliram com o sigilo bancário nos primeiros momentos da Revolução Cubana. O governo Lula veio em um crescendo de ousadia. Primeiro, calou o caseiro com uma medida judicial, o que esteve perfeitamente dentro da lei, mas não deixa de ser truculento. Por que não deixar o caseiro falar e processá-lo por qualquer calúnia ou mentira? Depois disso, o governo estuprou-lhe o sigilo bancário para tentar desmoralizá-lo diante do país, agora atuando flagrantemente ao arrepio da lei. Em seguida, o governo desencadeou uma operação para acobertar os responsáveis pelo crime da quebra do sigilo bancário, com o intuito óbvio de proteger a cúpula da Caixa Econômica Federal. Por fim, o governo, talvez no seu movimento mais aterrador, abriu uma investigação contra o caseiro no âmbito da Polícia Federal, a pedido do Coaf, o órgão que fiscaliza as atividades financeiras no país. Sim, o caseiro, por incrível que pareça, de acusador passou a investigado. Ele é oficialmente suspeito de lavagem de dinheiro porque recebeu depósitos de 25 000 reais na sua conta. O caseiro diz que os depósitos foram feitos por seu pai biológico, o empresário Eurípedes Soares, do Piauí. O empresário confirma os depósitos, mas nega a paternidade.
"É coisa de gângster, de sindicato do crime", disse o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Roberto Busato, sobre a perseguição ao caseiro. "Não é possível que persista essa retaliação a essa pessoa que teve a coragem de testemunhar contra a segunda figura mais importante da República." A investigação contra o caseiro começou a pedido do Coaf, mas toda a sua gênese é reveladora de que se trata de uma perseguição sórdida. Os bancos são obrigados a informar o Coaf sobre as movimentações financeiras atípicas de seus correntistas. Como o caseiro recebe 700 reais por mês, os depósitos de 25.000 reais feitos entre janeiro e fevereiro poderiam mesmo sugerir algo estranho. A Caixa informou o Coaf na sexta-feira, o Coaf informou a Polícia Federal na segunda e, três dias depois, já se investigava com o inquérito formalmente instaurado a suspeita de "lavagem de dinheiro" pelo caseiro. A rapidez e o empenho seriam elogiáveis se fossem a regra, mas são a exceção. Em 2004, os bancos fizeram mais de 85.000 comunicados de movimentações atípicas ao Coaf, mas o Coaf só se interessou por menos de 500 casos – ou seja, 99,5% dos comunicados foram ignorados. No escândalo dos bingos, o advogado Valter Santos Neto, suspeito de pagar propinas a autoridades, recebeu 5 milhões de reais da GTech, empresa acusada de subornar a Caixa. O advogado retirou parte do dinheiro em moeda sonante. Chegou a levar um carro-forte até o banco e não soube explicar como gastou o dinheiro. Foi investigado pelo Coaf? O Coaf diz que não pode comentar... Se, como afirma Brossard, "quem faz isso faz qualquer coisa", o que se pode esperar para o país quando o pior exemplo vem de cima? No Congresso, as absolvições de mensaleiros, inclusive dos confessos, estão virando uma rotina de deboche e acinte à opinião pública. No Judiciário, são freqüentes as intromissões na vida do Legislativo e os sinais de que há magistrados mais interessados em fazer política do que em fazer justiça. Para a sociedade em geral, o que deixa a sensação de que o país entrou no reino da bandalheira é o show ininterrupto de hipocrisia promovido pelo governo, materializado na sucessão de desmentidos peremptórios diante de evidências acachapantes. O presidente Lula não se encabula de dizer que o mensalão nunca existiu. Palocci disse que nem conhecia Rogério Buratti direito. Os dólares na cueca eram apenas renda de um modesto agricultor. Até hoje, o governo chega ao ponto de defender a inocência de Waldomiro Diniz, flagrado em vídeo – imagem e som, portanto – achacando um empresário de jogos! Nem sempre concordo com a linha editorial da Veja. No caso, a vertiginosa progressão de crimes inclassificáveis, praticados por pessoas usurpando altos cargos públicos me fez deixar de lado certas restrições, inclusive a não fatigar o raro leitor com longas citações.

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