William R. Clark, em O sexo e a origem da morte (como a ciência explica o envelhecimento e o fim da vida) faz um tour de force sobre o mundo das células, que reproduzo, sem dó nem piedade, abaixo. Ele descreve uma viagem imaginária pelo inteior de uma célula cardíaca. Vamos ver:
Embora ela ainda não saiba, a célula miocárdica em que estamos está prestes a morrer. Ela morrerá devido à isquemia miocárdica, ou privação de suprimentos de sangue para a parte do coração em que se localiza nossa célula. O primeiro sinal de perigo, se nossa célula pudesse interpretar estes sinais, é uma diminuição gradual do fluxo de linfa que corre em sua superfície externa. A origem desse fluxo – um dos pequenos ramos arteriais que trazem sangue à sua região específica do coração – tem se estreitado gradualmente há vários anos, como um córrego espremido por rochas, galhos de árvores, lama e outros detritos. Neste caso, os detritos são uma mistura complexa de gordura, colesterol e células sangüíneas mortas que têm se acumulado por dentro da parede arterial há anos. Este processo começa quando o excesso de gordura e colesterol no sangue é depositado no que se conhece como camada gorda, atraindo a curiosidade de glóbulos brancos que passavam pela artéria. Os glóbulos brancos estão constantemente patrulhando a corrente sangüínea, procurando por qualquer coisa que possa representar uma ameaça ao corpo. Incapaz de tirar esse material indesejado do caminho, eles também acabam se atolando na confusão, morrendo e aumentando o impasse. Conseqüentemente, o fluxo saudável normal de sangue pela artéria foi reduzido a uma corrente minúscula nos últimos meses e a quantidade de fluido linfático que pode ser liberada dos capilares alimentados por esta artéria bem diminuindo cada vez mais.
A célula em que estamos não tem nenhum conhecimento disto. Mas à medida que o suprimento de linfa que banha os arredores do músculo cardíaco começa a se reduzir a meros pingos, e até cessa intermitentemente, a célula sente que alguma coisa está terrivelmente errada. A redução do fluido linfático indica uma diminuição no suprimento de material que sustenta a vida e está dissolvido nele, em particular alimento e oxigênio. Os geradores de ATP mitocondriais, responsáveis pelo suprimento de energia para toda a célula, começam a parar completamente por falta de combustível e oxigênio. A quantidade de ATP dentro da célula começa a cair abaixo do nível crítico necessário para manter a função normal da célula. Em resposta, geradores de apoio menos eficientes são ativados e continuam a zumbir por algum tempo, queimando reservas de emergência do alimento intracelular, como amido e gordura, e até proteína, na luta para acompanhar a demanda de energia. Mas estes depósitos logo estarão esgotados e os geradores auxiliares também serão obrigados a parar. A quietude metabólica momentânea aumentará a escuridão; em questão de segundos, a falta de ATP começará a causar danos em toda a célula.
Provavelmente, você pode sentir isso começando a acontecer. Criticamente afetadas pela falta de energia, as poderosas bombas que operam na membrana plasmática na parte mais externa da célula são as que seguram o potássio do lado de dentro e mantêm a água e o cálcio do lado de fora. Estas bombas são tão essenciais para a vida da célula que têm precedência absoluta por qualquer suprimento reduzido de ATP. Não é mais uma questão de função; agora é uma questão de sobrevivência ou morte. Todas as outras operações movidas a energia na célula, inclusive a contração das lâminas que impelem a função de bombeamento do coração, são obrigadas a parar para economizar combustível para as bombas. A maquinaria de síntese de proteína fica ociosa em toda a célula; as mensagens do núcleo se acumulam sem que sejam lidas. Todo tipo de produto parcialmente acabado começa a sumir das linhas de montagem à medida que as enzimas dependentes de ATP esperam que chegue um novo suprimento de energia, enquanto os produtos inadequados e incompletos são transportados para as unidades de remoção. Os lisossomos são levados a um frenesi enquanto tentam lidar com o todo o lixo que os alimenta. Em toda parte o apelo é o mesmo: “Onde está o ATP?”
Mas o ATP não chega; uma por uma, as bombas da membrana começam a engrolar e a parar. O cálcio entra furtivamente pelos portões que costumavam excluí-lo e começa a corroer e distorcer as mitocôndrias que bamboleiam em silêncio nas sombras. E depois a água entra em torrentes. A célula começa a inchar, acarretando uma pressão intolerável para a membrana plasmática externa. Por fim, esta membrana, esta parede que isola e protege a célula do mundo exterior, começa a rachar; as rachaduras se alargam com uma rapidez cada vez maior até que a membrana se rasga e toda a célula literalmente explode na escuridão externa, lançando sua agora inútil maquinaria e sua própria seiva no fluxo quase seco de linfa que goteja do lado de fora.
Estes acontecimentos não passam despercebidos pelo resto do corpo. (...) Os macrófagos começam a remover rápida e eficientemente os mortos. Eles não os embalsamam, nem os sepultam. Eles os comem, e é por isso que ficaram conhecidos por seu nome – macrófago significa literalmente “grande comedor”, em grego. Eles envolvem os fragmentos restantes de células mortas e os trazem para dentro de seus próprios lisossomos, onde são rapidamente degradados em suas partes componentes, que por fim serão liberadas na corrente sangüínea para serem usadas como nutrientes por outras células. Assim os mortos são reciclados dentro do corpo, como um dia o próprio corpo será reciclado em sua totalidade, pelo solo e pelas plantas, para prover nutrientes e oxigênio que nutrirão células humanas ainda não nascidas.
Arrasadora, a imagem mostra a forma mais dramática de uma célula morrer: a necrose, em que o tecido atingido não se recupera. Na apoptose (a outra forma), a célula recebe uma mensagem para cometer suicídio. A célula começa a destruir todo o DNA de seu núcleo. O DNA é quebrado em milhões de pequenos fragmentos que não podem mais transportar nenhuma informação útil para a célula. A maquinaria da célula é encapsulada em corpos apoptóticos, que são devorados tranqüilamente e com eficiência pelas células vizinhas, não por papa-defuntos profissionais.
O resultado é o saudável processo de renovação de todo o tecido, sem cicatrizes.
Obra citada, pág. 25 e seguintes.
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