“Propagam-se as palavras onipotente, onipresente, onisciente, que fazem de Deus um respeitável caos de superlativos inimagináveis.” J. L. Borges.
Até os dezessete fui uma pessoa religiosa. E minha religião (eu considerava) consistia, essencialmente, na improvável “relação com Deus”, não em liturgias ou mágicas. Eu jamais consentiria na compra e venda de vaga no céu, nem nos negócios altamente monetizados da culpa e do perdão.
Procurava ser merecedor dos cuidados divinos, quiçá de um seu pronunciamento. Mas Deus, sempre alheio, foi ficando cada vez mais difícil, mais quimérico. A cada dia mais refratário a minhas indagações; foi se fechando em dogmas que eu não pude aceitar (por ser homem; por viver em um mundo natural, governado por leis naturais); foi se encastelando em um solipsismo catatônico. Não pude com esse funcionamento silencioso de Deus.
Mas compreendo os sentimentos dos religiosos (dos verdadeiros). As pessoas que têm necessidade do suborno do céu, de um apoio externo ao reino da natureza, com suas regras rígidas de causa e efeito. Sei quanto é difícil desgarrar-se da auto-sugestão de conforto e asilo que as religiões prometem (e nem sempre entregam); renunciar à posse de um paraíso post mortem.
Repetindo, fui religioso, até onde suportei desautorizar leis naturais em nome de revelações divinas, cuja autenticidade não se pode assegurar.
Respeito a religião alheia. Principalmente quando não tentam usá-la como arma contra mim.
Vou transcrever algumas observações de Jorge Luis Borges a respeito, por serem de Borges, o que quer dizer definitivas.
Explicando o Budismo, diz-nos:
“As outras religiões exigem muito de nossa credulidade. Se somos cristãos, devemos acreditar que uma das três pessoas da Divindade condescendeu a ser homem e foi crucificado na Judéia. Se somos muçulmanos, temos de acreditar que não há outro deus além de Deus e que Maomé é seu apóstolo. Podemos ser bons budistas e negar que Buda existiu.”
Tenzin Gyatso, o 14° Dalai-Lama, escreveu:
Se a ciência provar que algumas crenças do budismo são erradas, então o budismo vai ter de mudar. (OESP, A29, 20.11.05).
Bom budista, nego que Buda tenha existido, ou que alguém em seu nome tenha inventado as doutrinas que ora chamamos budismo.
“O budismo, além de ser uma religião, é uma mitologia, uma cosmologia, um sistema metafísico, ou melhor, uma série de sistemas metafísicos, que não se entendem e que discutem entre si.”
Salutar essa discussão no interior mesmo do budismo, inédita em outros sistemas religiosos. Quem não é capaz de duvidar de si mesmo não merece ser ouvido.
“O budismo nega o eu. Uma das ilusões capitais é a do eu. Nisso o budismo coincide com Hume, com Schopenhauer e com nosso Macedonio Fernández. Não existe sujeito, o que existe é uma série de estados mentais.”
Para ele, o importante não é viver o budismo como um jogo de lendas, mas sim como uma disciplina; o budismo seria “um caminho de salvação. Não para mim, para milhões de homens.”
II.
Um único personagem mal inventado pode contaminar de irrealidade os que o cercam, diz o autor, comentando Hawthorne. No caso da Bíblia, três personagens se propõem contaminar de irrealidade todo o Universo: Deus, Jesus Cristo e o Espírito Santo.
Vejamos a consistência desses personagens. Harold Bloom:
“A essa altura, cabe registrar, embora com certo acanhamento, que Deus e os deuses são, necessariamente, personagens literários. (...) O Jesus do Novo Testamento é um personagem literário, tanto quanto o Javé da Bíblia Hebraica e o Alá do Alcorão. (...) Aquilo que ouvimos, ou tentamos ouvir, foi mediado por discípulos. O autor do Evangelho de Marcos, escritor contundente, em termos pragmáticos, criou a figura que maioria das pessoas, crentes e descrentes, tem de Jesus. Do mesmo modo, o mais antigo autor bíblico, o Javista, criou o personagem literário Javé, adorado como Deus por judeus, cristãos e muçulmanos.” (Gênio, p. 161).
O Javista (segundo Bloom), teve a infeliz idéia de inventar Javé, corrompido para Jeová, que depois reivindicou o poderoso nome Deus. Javé era um deus rural, tosco, rude mesmo. Precário, feito à imagem e semelhança do chefe de tribo nômade, ainda assim era aceitável, enquanto se manteve longe de atrocidades como a existência e imortalidade da alma. Desejava apenas que sua tribo se tornasse nação, e o adorasse em regime de monopólio.
Objetivos modestos, para um deus. Na época, ele não se lembrava de ter gerado um filho, e desconhecia as soberbas do Espírito Santo.
O insensato Jesus apareceu não sei de onde, com aquela apavorante mania suicida. Se lhe agradava morrer, ao menos não nos entediasse com sua discretíssima ressurreição. Se, em todo caso, ele não se agüentasse sem ressuscitar, ao menos não nos ameaçasse com sua aborrecida volta triunfal.
É mérito do cristianismo velar uma dificuldade, que exponho: morrendo Jesus, e após concluir seus negócios no inferno, por que diabos não dispensou o exibicionismo da ressurreição? Das regiões espirituais, para onde a Bíblia diz que ele foi, poderia perfeitamente ir dar ao céu. Mas não, ele tinha de voltar!
De nada adianta os doze apóstolos parecerem reais. Judas Iscariotes me parece o mais fácil de encontrar na padaria, o mais digno de nossa fé e afeição. Eu também teria vendido o Cristo, fosse bom o prêmio.
Paulo, apóstolo retardatário, é o mais inadmissível deles. Pretensioso, contumaz avistador de avatares, inventou inacreditáveis, impossíveis verdades religiosas. Arrependido dos rigores que exercera contra os cristãos, passou a atormentá-los com sermões e epístolas. Reformou a incipiente doutrina, erigiu dogmas, carregou na culpa dos judeus no episódio da crucificação, abrindo caminho para a festeira tradição ocidental de pogroms.
A trindade é irreal, falha irreparável da literatura ocidental.
“O Verbo é engendrado pelo Pai, o Espírito Santo é gerado pelo Pai e pelo Verbo, os gnósticos costumavam inferir dessas inegáveis operações que o Pai era anterior ao Verbo, e os dois ao Espírito. Essa inferência dissolvia a Trindade. Ireneu explicou que o duplo processo – geração do Filho pelo Pai, emissão do Espírito pelos dois – não aconteceu no tempo, mas que esgota de uma só vez o passado, o presente e o futuro. A explicação prevaleceu e agora é dogma. Assim foi promulgada a eternidade, antes apenas tolerada na sombra de algum desautorizado texto platônico.” (Borges, p. 394 Tomo I).
Essa “emissão do Espírito pelos dois” me preocupa. Expelir um deus, presume-se, é tarefa muito arriscada, mesmo para deuses, e a Bíblia nada nos diz dessa operação.
Imperdoável terem promulgado a eternidade, demonstrando tão pouco respeito pelo tempo. Ignorá-lo só adicionará dificuldades ao problema. Ao situar a emergência da trindade fora do tempo, estaríamos às voltas com uma entidade estritamente espacial, num claro empobrecimento do mito.
“Impossível definir o Espírito e silenciar a horrenda sociedade trinitária e una da qual faz parte. Os católicos laicos a consideram um corpo colegiado infinitamente correto, mas também infinitamente entediado; os liberais, um vão Cérbero teológico, uma superstição que os muitos avanços do século vão se encarregar de abolir. A trindade, é claro, excede essas fórmulas. Imaginada precipitadamente, sua concepção de um pai, um filho e um espectro, articulados num único organismo, parece um caso de teratologia intelectual, uma deformação que só o horror de um pesadelo pode ter parido. É o que penso, mas tento considerar que todo objeto cujo fim ignoramos é provisoriamente monstruoso.”
Até hoje não atinamos um funcionamento adequado para a trindade, um estatuto exeqüível, daí a perene perplexidade. Pensou-se, outrora, que ela sustentaria a vida, e todo o universo. Depois, que teria ao menos dado início a eles. Mas a trindade foi flagrada patrocinando abobrinhas sobre a fundação e manutenção do universo.
David Hume, em História natural da religião, assacou o seguinte:
“(...) toda a teologia popular, sobretudo a escolástica, sente uma espécie de propensão para o absurdo e para a contradição. Se essa teologia não ultrapassasse a razão e o senso comum, suas doutrinas pareceriam demasiado simples e familiares. É preciso inevitavelmente suscitar o assombro, aparentar mistério, procurar as trevas e a obscuridade, bem como fornecer um fundamento para o mérito dos adeptos fiéis que desejam uma oportunidade para subjugar sua razão rebelde por meio da crença nos mais ininteligíveis sofismas.” (p. 87, ed. Unesp).
Estão vendo por que Hume é tão perigoso?
“O inferno é mera violência física, mas as três inextricáveis pessoas implicam um horror intelectual, uma infinitude sufocada, especiosa, como a de espelhos contrários.” (Borges, p. 395, Tomo I.)
Transcrevo, em torrentes, o texto de Borges, por navegar em sua órbita literária. De tudo podem me acusar; não de citar sem ter lido. Não é que eu desconfie que o leitor não consultará as obras. A transcrição atende a várias ambições: textos alentados e decorados com aspas respeitáveis; aparência de erudição e desoneração de devassar o dicionário em busca de imperdoáveis sinônimos.
O citado se sentirá na obrigação de apoiar as idéias do citador, ainda que pela só vizinhança de página. Quem entesoura textos reproduz ou esconde o que é conveniente, safando-se de refutações e contrafatos embaraçosos. Editar o pensamento alheio é confortável meio de evitar que suas sutilezas arruínem nossas super-simplificações, nossos esquemas.
Veja-se a refutação do eu, exposta acima. Permita o leitor a indiscrição de revelar que fui eu o descobridor dessa platitude. Sub-repticiamente, introduzi-a por meio de um texto de Borges, casualmente sobre o budismo. Releio a citação:
“O budismo nega o eu. Uma das ilusões capitais é a do eu. Nisso o budismo coincide com Hume, com Schopenhauer e com nosso Macedonio Fernández. Não existe sujeito, o que existe é uma série de estados mentais.”
Como o leitor pode ter concluído, apenas uma incomum modéstia fez-me deixar de creditar a seu verdadeiro autor essa descoberta. Mas consinto que Buda, Hume, Schopenhauer e Macedonio Fernández sejam meus precursores, e que Borges os tenha louvado.
Se é para citar, façamo-lo com gosto.
“É glória imarcescível do cristianismo atrair para si todas as verdades que estavam disseminadas entre as falsas religiões”.
“Tudo começou com a suspeita (talvez exagerada) de que os Deuses não sabiam falar. Séculos de vida fugitiva e feral haviam atrofiado neles o humano: a lua do islã e a cruz de Roma tinham sido implacáveis com esses prófugos. (...) Sacamos os pesados revólveres (de repente houve revólveres no sonho) e alegremente demos morte aos Deuses.” (Borges Tomo II, p. 203-4).
Foi justamente essa suspeita que me perdeu, confesso agora. Deus vinha evitando as conversas, sempre ali, caladão. Precisamos dele para revelar a densidade do Universo; para dizer por que crianças morrem de fome, frio e indiferença. Solicitamos que ao menos explicasse por que apoiou, por tanto tempo e tão entusiasticamente, Hitler, Stalin, Roosevelt.
A suspeita (talvez exagerada), acabou gerando um inquérito contra Deus, mas revelou-se infundada. O fato não impediu que o indiciado fosse enviado aos porões da Física e da Biologia, onde o auxiliamos a cometer suicídio.
Vejamos a história. Gibbon:
“As várias formas de culto que vigoravam no mundo romano eram todas consideradas pelo povo como igualmente verdadeiras, pelo filósofo como igualmente falsas e pelo magistrado como igualmente úteis.”
Eis, em poucas linhas, uma exposição do fenômeno religioso. O vulgo é sequioso de artigos de fé: animais, ermitões, trogloditas, matronas, mendigos, heróis; madeira, ferro, astros, montanhas, rios, lagos e mares: desde que cobertos pelo chanttilly do sagrado. O vulgo exige milagres, deuses e demônios significativos, conquanto patéticos. Cada qual alegremente monta um cardápio com as crenças que melhor lhe apetecem nos self services dos mitos religiosos.
Segue Gibbon:
“A superstição popular não era acirrada por nenhuma mescla de rancor teológico nem acorrentada tampouco pelas cadeias de qualquer sistema especulativo.”
“O medo, a gratidão e a curiosidade, um sonho ou um augúrio, uma perturbação singular ou uma longa viagem perpetuamente o predispunham a multiplicar os artigos de sua crença ou ampliar a lista de seus protetores.”
“Tão logo se permitiu a sábios e heróis que tinham vivido ou morrido para o bem de seu país serem exaltados a uma posição de poder e imortalidade, universalmente se lhes reconheceu o direito senão à adoração, pelo menos à reverência de todos os homens.”
“(...) o romano que procurava aplacar a ira do Tibre podia zombar do egípcio que fazia a sua oferenda ao gênio benfazejo do Nilo. (...) Os invisíveis governantes do mundo moral foram inevitavelmente vazados num molde fictício e alegórico semelhante. Cada virtude e cada vício adquiria seu representante divino (...).”
Perdão, pela ênfase.
“Um república de deuses de temperamentos e interesses que tais exigia, em qualquer sistema, a mão moderadora de um magistrado supremo, o qual, por via do progresso do saber e da lisonja, foi gradualmente investido das sublimes perfeições de um Pai Eterno e de um Monarca Onipotente. (...) O grego, o romano e o bárbaro, ao se encontrar diante de seus respectivos altares, facilmente se persuadiram de que, sob diferentes nomes e com diversas cerimônias, adoravam as mesmas deidades. A elegante mitologia de Homero deu uma forma bela e quase regular ao politeísmo do mundo antigo”
Após um ou dois séculos, os gauleses aplicaram aos seus deuses os nomes de Mercúrio, Marte, Apolo, etc.
Por conta desse trecho – na prosa de Borges – Gibbon teria acreditado que os deuses são os mesmos, embora com nomes perecíveis. A realidade, sem dúvida, é mais complexa que este resumo.
“Os filósofos da Grécia deduziram sua moral antes da natureza do homem que da de Deus. (...) os estóicos e os platônicos forcejavam por reconciliar os interesses conflitantes da razão e da piedade.”
“De fato, como seria possível a um filósofo aceitar como verdades divinas as ociosas fábulas dos poetas e as incoerentes tradições da Antigüidade ou então adorar como deuses aqueles seres imperfeitos que ele deveria ter desprezado como homens!”
“Podemos estar certos de que um escritor versado nas coisas do mundo jamais se aventuraria a expor os deuses de seus pais ao ridículo público caso já não o fossem eles objeto de desprezo entre as classes esclarecidas e refinadas da sociedade. Não obstante a irreligião de bom-tom que vigorava na época dos Antoninos, tantos os interesses dos sacerdotes quanto a credulidade do povo eram suficientemente respeitados.”
“(...) os filósofos da Antigüidade afirmavam a dignidade e a independência da razão, porém conformavam-se, em seus atos, aos ditames da lei e do costume. Encarando com um sorriso de piedade e indulgência os variados erros do vulgo, praticavam diligentemente as cerimônias de seus maiores, freqüentavam devotamente os templos dos deuses e, condescendendo por vezes em assumir um papel no teatro da superstição, ocultavam os sentimentos de um ateu por sob as vestes sacerdotais. (...) Era-lhes indiferente a forma que a insensatez da turba escolhesse assumir, e com o mesmo desprezo íntimo e a mesma reverência exterior aproximavam-se dos altares do Júpiter líbio, olímpico ou capitolino.”
“Os pontífices eram escolhidos entre os senadores mais ilustres, sendo o posto de supremo pontífice constantemente exercido pelos próprios imperadores. Eles estavam cônscios do valor e das vantagens da religião coligada ao governo civil. (...) Manejavam as artes divinatórias como um cômodo instrumento político e respeitavam como o mais firme dos vínculos a útil convicção de que nesta ou numa vida futura o crime de perjúrio será inevitavelmente punido pelos deuses vingadores”
“(...) o Senado romano, (...) intervinha por vezes a fim de deter tal inundação de ritos estrangeiros. As crendices egípcias, de todas as mais desprezíveis e abjetas, eram freqüentemente proibidas. (...) Mas o ardor e fanatismo triunfou dos débeis e frios esforços repressivos. Os exilados regressavam, os prosélitos se multiplicavam, os templos foram restaurados com esplendor ainda maior, e Ísis e Serápis assumiram finalmente seu lugar entre as deidades romanas.” Declínio e Queda, pág. 46 e seguintes.
Em passagens mais áridas, Gibbon expõe:
“O teólogo pode bem se comprazer na deleitosa tarefa de descrever a Religião descendo do Céu revestida de sua pureza natural. Ao historiador compete um encargo mais melancólico. Cumpre-lhe descobrir a inevitável mistura de erro e corrupção por ela contraída numa longa residência sobre a terra, em meio a uma raça de seres débeis e degenerados. (...)"
“Passando dos partidários da lei a esta propriamente dita, afirmavam ser impossível que uma religião consistente tão-só de sacrifícios sangrentos e cerimônias triviais, e cujas recompensas e castigos eram todos de natureza carnal e temporal, pudesse inspirar o amor da virtude ou conter a impetuosidade da paixão. O relato mosaico da criação e da queda do Homem era tratado como profana derrisão pelos gnósticos, que não suportavam ouvir falar do repouso da Deidade após seis dias de trabalho, da costela de Adão, do jardim do Éden, das árvores da vida e do conhecimento, da serpente falante, do fruto proibido e da condenação proferida contra o gênero humano pelo pecado venial de seus pais primeiros. O Deus de Israel era impiamente representado pelos gnósticos como um ser sujeito à paixão e ao erro, caprichoso na sua mercê, implacável no seu ressentimento, mesquinhamente cioso de adoração supersticiosa, e confinando sua facciosa providência a um único povo e a esta vida transitória. Numa figura que tal não conseguiam discernir nenhuma das feições do sábio e onipotente Pai do universo. Admitiam ser a religião dos judeus algo menos criminosa que a idolatria dos gentios; sua doutrina fundamental era, porém, a de que o Cristo a quem adoravam como a primeira e mais luminosa emanação da Divindade aparecera na terra para redimir a humanidade de seus pecados e para revelar um novo sistema de verdade e perfeição. Os mais doutos dos pais da Igreja, por uma condescendência assaz estranha, imprudentemente admitiram os sofismas dos gnósticos. Reconhecendo que o sentido literal é incompatível com todos os princípios da fé, tanto quanto da razão, acreditaram-se seguros e invulneráveis atrás do amplo véu da alegoria, que cuidadosamente estenderam por sobre todas as partes frágeis da dispensação mosaica.”
“O filósofo que considerava o sistema do politeísmo como uma combinação de fraude e erro humanos, podia ocultar um sorriso de desprezo por sob a máscara da devoção, sem temer que a zombaria ou a submissão o expusesse ao ressentimento de quaisquer poderes invisíveis, ou, tal como os concebia, imaginários. Mas as religiões pagãs estabelecidas eram vistas, pelos cristãos primitivos, sob luz muito mais odiosa e temível. (...) os demônios eram os autores, os patronos e os objetos da idolatria."
“(...) Estamos familiarizados o bastante com os vultos eminentes que floresceram na época de Cícero e dos primeiros Césares, com os seus atos, seus caracteres e seus motivos, para saber com segurança que sua conduta nesta vida jamais se regulou por qualquer convicção séria das recompensas ou castigos de uma existência futura. No tribunal e no Senado de Roma, os oradores mais capazes não temiam ofender seus ouvintes expondo tal doutrina como uma opinião extravagante e ociosa, rejeitada com desprezo por qualquer homem de educação e entendimento liberal."
Gibbon, discorrendo sobre como o judaísmo descobriu a até então insuspeitada imortalidade da alma, diz:
“(...) membros das camadas mais opulentas e mais importantes da sociedade, (...) rejeitava[m] a imortalidade da alma como uma opinião sem nenhum respaldo no livro divino, que reverenciavam como a única norma de sua fé. (...)"
“À autoridade das Escrituras, os fariseus acrescentavam a da tradição, aceitando, sob o nome de tradições, diversas doutrinas especulativas da filosofia ou da religião de nações orientais. As doutrinas do destino ou predestinação, dos anjos e espíritos, e de uma existência futura de recompensas e castigos, figuravam entre esses novos artigos de fé; e como os fariseus, pela austeridade de suas maneiras, tinham atraído para o seu partido a maioria do povo judeu, a imortalidade da alma tornou-se o sentimento dominante da sinagoga durante o reinado dos príncipes e pontífices asmoneus [ou macabeus]."
“O temperamento dos judeus não era de molde a contentar-se com uma fria e lânguida aquiescência como a que poderia satisfazer o espírito de um politeísta; tão logo admitiram a idéia de uma existência futura, abraçaram-na com o ardor que sempre foi característico de sua nação. Tal ardor nada acrescentava, porém, à evidência ou mesmo à probabilidade da idéia; impunha-se que a doutrina da vida e da imortalidade, ditada pela natureza, aprovada pela razão, e acolhida pela superstição, recebesse sanção de verdade divina pela autoridade e pelo exemplo de Cristo.”
Inúmeras “verdades religiosas”, reveladas por profetas pagãos, foram redescobertas e comunicadas por Javé, lamentavelmente sem citar as fontes. Jesus (por meio de alguns médiuns) as retificou, limou excessos, corrigiu asperezas, acrescentou mitos ora suaves, ora severos. Gabou o amor; exerceu a ira contra o comércio nos templos; aprendeu a lavrar o madeiro, no qual morreria. Na formulação de suas verdades, esteve – estiveram, por ele – atento às inclinações da platéia.
Gibbon teria acreditado, segundo Borges, que os deuses são os mesmos, seus nomes sendo perecíveis. Acreditaremos que Palas Atena, Afrodite e outras deusas se contentariam com papéis menores, como os de Virgem Maria e Maria Madalena? A lenta migração de nomes e personas da cultura grega para a romana até que foi tranqüila, comparada ao tumulto de deuses inservíveis, barrados na festa cristã.
Desconfio que os números não batem. Não podem. Os deuses gregos constituíam copioso panteão. Todo esse tempo, todos aqueles deuses (mil vezes ilustres) sem nenhum uso, nenhuma veneração, me parece impiedade.
Não sejas citador, mas, se o fores, por Deus, seja-o inteiramente:
“Chego à parte mais inverossímil de minha tarefa: as razões elaboradas pela humanidade a favor da eternidade do inferno. Vou resumi-las em ordem crescente de significação. A primeira é de índole disciplinar: postula que a temibilidade do castigo está precisamente em sua eternidade e que colocá-la em dúvida é invalidar a eficácia do dogma e fazer o jogo do Diabo. É argumento de ordem policial, e não creio que mereça refutação. O segundo prescreve: “A pena deve ser infinita porque a culpa o é, por atentar contra a majestade do Senhor, que é Ser infinito”. Observou-se que esta demonstração é tão probatória que podemos inferir que não prova nada: prova que não há culpa venial, que todas as culpas são imperdoáveis. Eu acrescentaria que é um caso perfeito de frivolidade escolástica e que seu equívoco é a pluralidade de sentidos do termo infinito, que aplicado ao Senhor quer dizer incondicionado, e a pena quer dizer incessante, e a culpa, nada que eu possa entender. Além do mais, argumentar que uma falta é infinita por atentar contra Deus, que é Ser infinito, é como argumentar que é santa porque Deus o é, ou como pensar que as injúrias dirigidas a um tigre devem ser rajadas.”
“O inferno de Bernard Shaw (Man and Superman, págs. 86-137) (...) distrai inutilmente sua eternidade com os artifícios do luxo, da arte, da erótica e do renome.”
“Para quase todos os homens, os conceitos de Céu e de felicidade são inseparáveis. (...) Butler projetou, no entanto, um Céu no qual todas as coisas se frustrassem ligeiramente (pois ninguém pode tolerar uma felicidade total) e um inferno correlativo, no qual faltasse todo estímulo desagradável, salvo os que proíbem o sonho. Bernard Shaw, por volta de 1902, instalou no inferno as ilusões da erótica, da abnegação, da glória e do puro amor imorredouro.”
É tudo Borges.
O inferno de Shaw é infernal demais, mas pode ser pensado, ao contrário da fantasia bíblica. Podemos objetar que as castidades da erótica, por exemplo, atentariam contra o decoro do inferno. Outro ponto preocupante é a abnegação e o amor imorredouro. Me oponho a esses atributos, intranqüilos.
Mas é do céu e do inferno de Butler que quero falar.
O céu de Butler faz algumas concessões à realidade e à sensatez. As frustrações experimentadas por seus inquilinos mostram-no um mito aprimorado – difícil, mas possível – mitigados alguns rigores da Física. Ajudaria acrescentar algumas frustrações profundas, rusgas e insatisfação com a condução dos negócios divinos.
Um céu violentamente feliz seria rapidamente abandonado, por não acomodar a condição humana, só exercitável em doses mais ou menos equilibradas de prazer e desprazer. Seria como um mundo sem gravidade, em que nenhum esforço fosse exigido dos músculos: a atrofia, além do tédio, da abulia, tornariam ínvios, ou pelo menos vazios, todos os cursos da felicidade.
A Bíblia leiloa um céu com a trindade bem instalada num trono, e um carnaval barroco de ouro, prata e refugos então considerados indispensáveis à decoração de um paraíso. Tudo opressivo à vista, tudo contaminado por soberbas que oneram sobremodo a economia da crença. Sonho com um céu mais modesto, que não se dê ao luxo de três deuses simultâneos, nem nos estafe com eternidades desnecessárias.
Suponha que os anjos não se sentissem seguros de suas funções; que buscassem uma interação menos servil com Deus e os habitantes do céu; suponha que os homens, cansados de contemplar a inalterável perfeição de Deus, quisessem exercer antigas liberdades: a dor, a discórdia, a disputa pelo poder, a guerra. Essas paixões imporiam duras provas à paciência de Deus, e talvez sejam inevitáveis, onde houver humanos, se eles forem humanos (Deus deveria saber disso, pois os tem submetidos a injunções extremamente simples, mas inafastáveis).
A feroz felicidade imposta aos moradores do céu me parece excessiva e inaceitável. Nisso o céu avança rapidamente sobre o conceito de distopia, competindo com o inferno pela alma humana, cada qual mais abafado.
Mais que um céu de infelicidade residual, advogo um céu completamente infeliz, ao menos em potência, para que cada um tenha a liberdade de consultar sua consciência, decidindo quanta felicidade, quanta tristeza é necessária para seus projetos, sua folgas, suas ambições, seus fracassos.
O inferno de Butler é mais feliz que seu céu, do ponto de vista da economia da fé. Declaro minha crença – provisória – nesta hipótese: um inferno onde falte todo estímulo desagradável, exceto a proibição de dormir. Promissor um inferno dessas proporções; parece um adequado, piedoso projeto de tormentos.
Mas me pergunto se a proibição do sono não geraria desconforto e estímulos desnecessários. Mais sensata seria a construção de um inferno com irrestritos bosques, repletos de ipês e cachoeiras, que induzam desmedidos e soltos sonhos, em que Deus pudesse mostrar todas as maravilhas e fadigas de empreender um universo.
Como se já não tivéssemos o bastante, David Hume, em História natural da religião, saiu-se com essa:
“Podemos observar que, apesar do caráter dogmático e imperioso de toda superstição, a convicção dos homens religiosos é, em todas as épocas, mais fingida que real, e apenas raramente e em certa medida se aproxima a firme crença e a firme convicção que nos governa nos assuntos comuns da vida. Os homens não ousam confessar, nem mesmo no seu íntimo, as dúvidas que os assaltam sobre essas questões: ostentam uma fé sem reservas e dissimulam ante si mesmos sua real incredulidade, por meio das mais categóricas afirmações e do mais absoluto fanatismo. Mas a natureza é mais forte que seus esforços e não permite que a luz obscura e pálida, surgida nessas sombrias regiões, iguale-se às impressões vívidas produzidas pelo senso comum e pela experiência. A habitual conduta dos homens contradiz suas próprias palavras e mostra que seu assentimento nessas questões é uma operação inexplicável da mente, situada entre a incredulidade e a convicção, mas que está muito mais próxima da primeira que da segunda.” (p. 98, ed. Unesp).
Weatherhead “(...) intui que a direta perseguição de uma pura e perpétua felicidade não será menos irrisória do outro lado da morte do que deste.”
Escreveu, ainda, estes assombros: “A dor do Céu é intensa” e “a vida de Deus é dolorosa. (...) Enquanto houver um único pecador no universo, não haverá felicidade no Céu”.
Caro leitor, você está seguindo o raciocínio? Então deve ser o único, porque eu não estou.
Borges fere:
“Era muito religioso; acreditava ter com o senhor um pacto secreto, que o eximia de agir bem a troco de orações e devoções.” (Pág. 630, tomo I).
“Os católicos (leia-se os católicos argentinos) acreditam num mundo ultraterreno, mas notei que não se interessam por ele. Comigo ocorre o contrário; me interessa e não acredito.”
Prosseguindo, em outro contexto:
“Ser imortal é insignificante; com exceção do homem, todas as criaturas o são, pois ignoram a morte; o divino, o terrível, o incompreensível é saber-se imortal. Tenho notado que, apesar das religiões, essa convicção é raríssima. Israelitas, cristãos e muçulmanos professam a imortalidade, mas a veneração que tributam ao primeiro século prova que só crêem nele, já que destinam todos os demais, em número infinito, a premiá-lo ou a castigá-lo.”
“(...) todos os Imortais eram capazes de perfeita quietude; lembro-me de um que jamais vi de pé: um pássaro se aninhava em seu peito.”
Final.
Eu poderia chegar à última instância, quando o assunto é cristianismo: Nietzsche.
Mas Nietzsche não consente um churrasco decente com o tema. Com ele, incendeia-se o recinto; toda a cidade. Não vou citá-lo, para não perder de vez a amizade do leitor.
Mas, pensando bem, por que não?
“Todas as religiões são, no seu nível mais profundo, sistemas de crueldades.”
Sören Kierkegaard angustiou-se sobremodo com a dificuldade de se tornar cristão. Para ele a ocorrência é tão ou mais rara que a genialidade (a genialidade anda escassa). Nessa definição, haveria bem poucos, difíceis cristãos, a salvo de qualquer estatística.
Nietzsche completou – não sem júbilo – que em verdade só existiu um cristão, e ele morreu na cruz.
Observo que a história não registra a ocorrência de um único cristão, exceto, talvez, por pouco tempo (perdoem a sinceridade), Gerson Noronha Mota. Kierkegaard, o candidato óbvio à discutível glória, é angustiado ou feliz demais para o cargo. Inverossímil um cristão que rejeite a autoridade da Igreja, ou refute as provas da existência de Deus; seria imprudência apoiar um cristão bissexto e dubitativo.
Kafka, o único que eu indicaria sem receio, honra-nos sendo gênio. Ele dispensaria essa adulação.
Desgraçadamente Jesus não conseguiu se tornar cristão, nem mesmo no divertimento judaico-romano da Crucificação. Foi líder de onze comensais, parece que fatigou alguns desertos, atravessou um lago, era amigo de um morto. Seus pensamentos, seus sentimentos, seus milagres, foram inventados muito após sua morte, por marqueteiros e políticos habilidosos, um deles sendo Saulo, vulgo São Paulo. É pouco provável que Jesus reconhecesse uma única idéia, uma única parábola das que lhe são atribuídas; que consentisse na bufonaria dos milagres, ridículos.
Carlyle diz, em uma carta de 1847, que a fé de Cristo degenerou “em uma miserável e melosa religião de covardes.”
Não creio tenha havido degeneração.
“Tácito não reparou na Crucificação, embora seu livro a registre.” (Pág. 146, Tomo II).
Tácito, se vê, era um rapaz de medíocre percepção (desdenhou o dono do universo e da vida, em sua fugaz e, até agora, única passagem por este mundo). Talvez seja o caso de consultar Josefo, judeu, historiador de memória seletiva, mas aguçada. Ele participou da revolta contra o domínio romano, mas, quando o Império flaviano a estimulou, crucificando todos os revoltosos que conseguiu encontrar, Josefo fugiu e passou a glorificar os césares, tendo adotado seus nomes. Muito do que se “sabe” sobre o cristianismo reside em Josefo, o que submete a esforço excessivo nossa boa vontade.
Ao cabo desse passeio, de excessivas citações, cedo a voz a Sir John Falstaff, um dos melhores inventores de Shakespeare:
“Fazes sempre citações execráveis; és capaz de corromper um santo. Tu me tens prejudicado muitíssimo, Hal; Deus te perdoe. Antes de conhecer-te, Hal, ignorava tudo; e agora, para dizer toda a verdade, valho pouco mais que um pecador.” (Gênio, H. Bloom).
Maio de 2004.
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