sábado, 21 de junho de 2008

Muitas histórias

I.
Conheci centenas de pessoas em minhas viagens. A maioria se tornou amiga, embora só em alguns casos eu tenha anotado o endereço. Passados tantos anos, ofereço estes relatos. Ignoro que partes são verdadeiras, quais exigiram mais da imaginação.
Vou começar por Yvonne, moça mal saída da adolescência. Yvonne tem o mais doce muxoxo já visto. Seus olhos são azul-turquesa, adolescentes, maravilhosos. A missão daqueles olhos é obrigar nossos corações. Dormimos juntos. Isto é, eu no meu saco de dormir, ela no dela e, ao lado, todo o distinto grupo que me acompanhou pelo Red Centre (o interior da Austrália, seus desertos). Nunca havia dormido assim, com estrelas por teto e limite. E que estrelas! Pareciam tagarelar momentosas notícias, e o que uma confidenciava, as outras logo refutavam, favorecendo suas próprias versões de um universo ilimitado. Não acredito em estrelas, com a possível exceção do sol, que é sempre correto em seus pronunciamentos. Com serem dúbias e oscilantes, elas costumam não concordar entre si, o que mais evidencia os males da multiplicação desarrazoada. Em vão esgotei meus números em busca de uma cifra: as estrelas não se economizam. O leitor deve se lembrar que eu só sei contar até 12 (embora seja capaz de intuir o 20), como relatado alhures. É pouco provável que conseguisse sindicar o céu, suas estrelas bastantes. Dormi, com Yvonne ao meu lado, e isso me basta. As noites no deserto podem ser frias, alertou Borges. Aquela foi um fogo (o que atribuo à conjunção de astros), e me desesperei de meu saco de dormir. Naquela noite, Yvonne me defendeu do brilho intolerável das estrelas. Alcancei dormir, e em meu sonho Yvonne narrava para mim a poderosa fabricação de estrelas azul-turquesa. A alemã careca. Não sei seu nome. Era do mesmo país da doce Yvonne, de vasta cabeleira em vivas chamas avermelhadas. Não quero mais lembrar de Yvonne, que me custou muitas noites e alguns delírios. Pois essa alemã era careca, sem qualquer bom motivo. Sua enorme presença impôs um dilema: uma mulher pode ser careca e boa, simultaneamente? (Sim, porque a bondade das pessoas também me ocupa). Receio que não. Arriscaria dizer que, sendo meio careca, será no máximo meio boa, não muito mais que isso. Indiferente a esses cálculos, a alemã me distinguia com olhares que não é honesto pormenorizar. O motorista do deserto. Também não sei seu nome. Neste relato, será prudente omiti-lo, de qualquer forma. Era um sujeito branco, orgulhoso do aspecto “que me leve o diabo”: cabelos desgrenhados, roupa amassada, camisa aberta, barba por fazer, fala de Pato Donald. Não quero me ocupar dessa criatura, que não está à altura da Austrália. Basta dizer que quebrou o ônibus no meio do deserto e lá ficou, aparentemente esperando uma intervenção divina, sem qualquer resultado. Turistas menos dóceis o teriam emparedado na primeira meia hora de imposturas. De outra feita ele desligou o ar condicionado do veículo, seguindo ordens de origem viciada, e apropriou-se de uma garrafa de vinho alheia. O tipinho não vai longe, já se vê. Melhor deixá-lo esvair-se em sua insignificância. Harvest Harvest desmente o lugar-comum de que não pode haver americana linda e simpática. Ou é linda, ou é simpática, of course. Claro que é proibido que seja linda, simpática e inteligente. Harvest nasceu no Maine, extremo norte da América, filha de um farmacêutico. Nos encontramos num ônibus que ia para o parque nacional Torres del Paine. Por seu jeitinho, pensei fosse argentina, ou chilena. A impressão inicial foi reforçada, quando reuni coragem para puxar conversa. Ela fala espanhol, morou alguns meses em Antofagasta, norte do Chile, onde lecionava inglês. Harvest cativou-me e naturalmente subimos à base das Torres del Paine. Relatei, alhures, essa aventura, que ora complemento. Ela subia com uns 30 kg de mochila, eu, com vergonhosos 10. Iniciada a subida, vi que teria chance de conhecer aquela menina, de tantos sorrisos. Ela me presenteou com uma conversa encantadora, riu de minhas piadas e perdoou meu portunhol. Eu não tinha nada a oferecer, então sorri. Após o encontro inicial, voltei a Natales, ela continuou no parque. Voltei no dia seguinte, direto para o refúgio Grey (não, não omita o r, leitor). Eu escalava uma encosta, quando súbito apareceu-me Harvest, descendo para o refúgio. Foi espanto e alegria mútua, e creio ter visto algumas lágrimas desafiarem o vento cortante. Harvest veio ao Brasil, mas não me visitou. Em minhas recordações da viagem, a melhor colheita são seus sorrisos. Fevereiro de 2005. Jacqueline Conheci-a na excursão entre Melbourne e Adelaide. Fui o último a ser apanhado pelo micro-ônibus, e lá estava ela, e também Christy, e a motorista loura e cheinha, e seu ajudante (não descobri para que diabos servia aquele ajudante, além de rir de todas as piadas). Ela fala espanhol, mas acabamos por nos falar em inglês, não sei por que (o fato se repetiu na Nova Zelândia, e isso me rendeu uma descompostura de Vitória, a mexicana “e por que não me disse antes?”). Jacqueline é suíça, tem um amigo que fala português. Tiramos muitas fotos, nos Doze Apóstolos, mas ela não voou conosco no helicóptero. O jantar. No meio do passeio de três dias pelo Great Ocean Road, entre Melbourne e Adelaide, ficamos em um hostel perto de uma reserva florestal. Lá chegamos no final da tarde, e subimos a um morro. Chovia muito, e emprestei meu impermeável azul para Jacqueline. Não vimos nada de mais nesse morro, além de um horizonte uniformemente cinza. Na volta, as moças (e Juddy, a motorista) prepararam o jantar. A salada foi construída com tomates, palmitos, muitíssimas folhas verdes e cogumelos secos. Outra salada possivelmente incluía atum e pimentões. Ao todo, eram quatro os tipos de salada. Jacqueline se ocupou de uma delas, enquanto Juddy preparava pratos quentes, incluindo arroz. O ajudante (agora lembro de sua serventia) assava o aussie barbecue numa chapa a gás. Ultimados os pratos, reuniram-se os viajantes, numa bonita mesa que principiava pela Suíça, seguia pelo Brasil e finalmente abarcava oito nações e vastos continentes. O vinho correu de boca em boca. Fartei-me com o vinho suíço, e fui convidado para outras vinícolas. Uma alemã baixinha, farmacêutica, forneceu metade do vinho da noite, cujos negócios avançaram inconclusos pela madrugada. Cedinho, Michelle oportunizou-nos um pequeno escândalo. O namorado de Christy apressou-se a vir reiterar o recato da namorada. Michelle é um encanto, e sua calcinha aparente, e seu sorriso coquete eram motivo de alegria (para uns), e aborrecimento (para outras). Michelle é uma inglesinha farta. Naquela madrugada, ninguém em sã consciência deixou de sonhar com aqueles seios. A moça da ópera. Fiz uma visita guiada à ópera de Sydney, que me rendeu uma foto. Uma mocinha linda, com um vestido clássico, longo, levou-nos por seus encantos. Tinha um sorriso em que me permiti ver Nicole Kidman: dentes alvos, pequenos e femininos, ainda que não arredondados. Ela tolerou meu gesto de fotografar a ópera, por dentro, mas a seguir passou sonora descompostura nos demais turistas, por idêntico delito. Depois da visita ela se deteve à saída. Contentei-me com uma troca de olhares. Linda australiana. Esther Esther de Graaf é uma holandesa atlética, farta. Ela trocou-se na nossa frente, tendo antes a prudência de mandar que todos os marmanjos olhassem “para o outro lado”. Surpreendentemente, esses marmanjos não olhamos para o outro lado. Quanto a mim, sinto-me justificado, já que ela falou em inglês, idioma que, desafortunadamente, não domino. Tampouco os gestos que ela usou foram claros, para mim (e pelo visto, também para os outros caras). Que delícia de holandesa. O chinês Na excursão por Kakadu Park, um chinês se notabilizou por pequenas brincadeiras, inclusive com Esther, que o espinafrou. Também chamava a atenção pela voracidade na hora dos lanches, e por tentar ser simpático. No grande barracão repleto de camas, que nos serviu de abrigo dentro do parque, por uma noite, Samy (ou seja lá o que for) lépido subiu para seu beliche. Se subiu lépido, desceu feito um raio: – something wrong! – ele disse, só porque a cama estava tomada de insetos e terra. Mas de onde ele tirou a idéia de que poderia dispensar um saco de dormir? O dormitório, coletivo, era dominado por ferozes ares-condicionados, que passaram a noite telefonando para a Sibéria. Naquela noite, dormi com Esther, cada um num extremo do recinto.
II. Conclusão. De que mais gostei? Das pessoas (das presentes e das ausentes, sua lembrança). De que menos gostei? Da comida na Austrália. Não confundir com a comida australiana. A segunda coisa de que mais gostei? Um punhado de água colhida a um regato na subida às Torres del Paine, e também do cordeiro patagônico, assado à moda crioula em espetos junto a um fogo de chão, servido no refúgio Grey após 6 horas de trekking montanha acima; e também da caminhada na chuva, às 6 da manhã no 1º do ano, do outro lado do mundo. A chuva fina, o clima agradável, a pacata cidade de Nelson (ilha sul da Nova Zelândia), o café da manhã compartido com cinco nações, a certeza de ser personagem total de minha própria história. Há certos encantos em Paine que não sei a que atribuir. Não são só torres de dois mil metros de granito matizado. Nem é o lago verde em sua base, onde grassam todas as patifarias e incontinências do vento. São muitas as felicidades da Patagônia, chilena e argentina, que não se reduzem a montanhas de alturas vertiginosas ou a gelos azuis de 700 anos que fazem amantes de uísque de todo o mundo suspirar. Passando os olhos nesses relatos, constato certas aventuras que originalmente não constavam da memória, e emergiram após um investimento em formas mais propícias. “O copioso estilo da realidade não é o único: há o da memória também”, ensinou Borges, estremando memória e realidade. Sou menos criterioso. Contenta-me o testemunho da memória, enriquecido pela imaginação. O programa forte do deserto australiano prodigaliza estrelas de brilhos desusados, e constrói noites febris, povoadas de amores poderosos.

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