Conforme
prometido, vou comentar algumas de minhas músicas prediletas,
de memória, por mera ociosidade. Tenho em mãos trabalhos de crítica
musical, que não vou consultar.
A Força que Nunca Seca. Vanessa da Mata nos conduz por um domínio musical despretensioso, intimista. O refrão ilê aiê é doce e aconchegante. Na intervenção final, acompanhada por um violão precioso, ficamos sabendo que estamos felizes.
Ao Crepúsculo. Custa-me falar dessa música. A Teresa, das intervenções raras, nos arrasa. Não posso colocar em palavras o que sinto com o refrão, um lamento tristonho, de uma beleza inaudita, que nos envia a contramundos chorosos, plenos de humanidade, em que um amor foi perdido, e não sabemos como, por quê. Os violões não fazem senão confirmar a genialidade da moça, conduzindo suavemente a melodia, sem interferir no argumento geral da canção. Quando vou dormir, escuto o gemido: uuuuuh, uuuuuuh, e me encolho todo. Parem tudo: um amor foi perdido. Urge um inquérito geral para determinar se o mundo comporta amores que se demorem uma vida; se o amor pode triunfar sobre a fátua mesquinharia.
A mesma Teresa, em Suave Tristeza, nos fala de um olhar cansado, que expende tristezas. A rima, a voz poderosa; a lealdade dos violões: tudo evidencia a felicidade dos dias da Madredeus, mais confirmada na Música Celta, outra realização de espírito. O Pregão convoca e consola, ao mesmo tempo.
Oxalá é
um fado das excelências, um corte profundo na alma portuguesa, no que ela nos é
mais fecunda.
Agora,
corte para a baianinha Mercury. Minas com Bahia é um axé
tristinho, com uma letra que nos toca na altura da última estrofe: sacudir
o mundo, procurar no fundo... Uma hora dessas, e você tão só, eu ficou com dó
eu só disse: oh, eu te quero muito bem... Tem um carinha que
acompanha. Quem será que é? Ora se não é o Samuel Rosa... Num show fica explicitado o
paradoxo de uma música tão envolvente, impossivelmente dançante, e uma letra
melancólica. Os bailarinos saltitam alegremente, e os tambores tuntunam,
concernem festas. Uma moça parece sopisar os Himalaias, sob a autoridade dos
tambores, e gira com a alegria de uma criança, num spinning sincronizado
com Daniela: lirismo, sensualidade, e certa generosidade baiana. Ela
ainda nos presenteia, no mesmo álbum, com Bandeira flor, um hino a
esse estado de coisas que é a Bahia. A música começa estranha, com metais em
tudo fake, quase mexicanos, mas logo evolui para refrões de pura
baianidade, com toda a irresponsabilidade que isso implica. Fortemente
dançante, com uma percussão de alta octana.
Corte
para uma mulata que admiro: Tina Turner. Não necessitamos de outro
herói. Nunca me dera conta da importância e necessidade desse refrão, até
saber da prática de nomear os militares norte-americanos com esse epíteto, por
mais improvável e surrealista... Tina demonstra um domínio absoluto do canto
quando, em definitivo, convoca: all the children say! e elas
cantam, lindamente.
Private
Dancer conta uma angústia, ainda que não nos atenhamos à letra, que
ignoro. Novamente, domínio absoluto, numa melodia que requer todos os poderes
da voz dessa mulher incomum. Help é um lento caminhar num
jardim musical aprazível, marcado por essa voz, de poderes. Em Two
People notamos o ritmo e a harmonia nos convidando para uma florida
aléia cheia de humanidade e decência.
E já
que, desautorizadamente, me permiti sentimentalismos, vou falar de uma música
sentimental, piegas talvez: Memory. Invoco uma recordação: Cats foi
minha primeira peça na Broadway. Uma orquestra aninhava-se no fosso. O musical se
desenvolve, com toda a gataiada pra lá e pra cá no palco. A certa altura
sobressaem uns acordes da mais fina e agradável guitarra, numa convergência
harmônica com a orquestra. Então, na altura em que algumas peças se tornam
cansativas, quando o desânimo tomara conta de gatos contemplativos, e quando
parecia que Memory não tinha mais a oferecer - ou pelo menos
surpreender - surge uma voz deliciosa, vigorosa, que ganha a lua, e
anuncia: Touch me, It´s to easy to leave me (...) If
you touch me, You´ll understand what happiness is... Estremece a
platéia. De enlevo, saio pela Broadway em meio às brumas de uma lua hiemal. Um
restaurante me acolhe. Acho que sou feliz.
Linda
Juventude. Sessão nostalgia. Com Planeta Sonho, sugere uma
trilha sonora para nossa juventude, com todo o seu vigor e tendência ao
sonho...
Céu é uma cantora de
difícil pesquisa, quase ignorada pela imprensa. A gente não sabe onde vive,
quem é. Sabemos apenas que viveu no exterior (ela tem sotaque), e sua música é
maravilhosa. Em Papa ela ensina a não se tomar tão a sério, e
conclui com uma gargalhada, demonstrando a lição. Ponteiro começa
séria, meio pesada. Aí ela pronuncia, quase angustiada, o refrão teeeempo com
uma gravidade, uma peremptoriedade que parecemos restar às portas de um
horizonte de eventos, o tempo derrapando em espaço, e vice-versa. Afinadíssima,
a moça demonstra virtudes em Bubuia, Rosa Menina e
muitas outras.
Elton
John. Suas músicas comovem, não sei explicar. Goodbye Yellow Brick, Sad
Songs e Skyline Pigeon nos ganham de primeira, o que
se explica pelas harmonias intensas, e pela afinação do back vocal,
quase excessiva. Ainda assim, Skyline é um ponto fora da
curva. O pianinho desenvolve toda uma argumentação através da tessitura
melódica, enquanto a voz de Elton, aveludada, bondosa, melíflua, conduz-nos por
paragens de fantasia e confortos.
Minha
banda de rock predileta segue sendo o Led. Para uma versão ligeiramente
apaixonada de D'yer Mak'er, com Sheryl Crown, clique aqui.
É
chegado o momento, contudo, de fazer uma séria ressalva, de caráter geral. Fiz
uma versão da letra de Skyline e fiquei ligeiramente
desapontado com a condução da temática e expressões usadas. Mas isso é nada
comparado com a versão de Lucky in Love, de Jagger. Ainda que eu
não seja a pessoa mais indicada para verter textos do inglês, foi
decepcionante. A letra é simplesmente tosca demais, além de conter expressões
próprias apenas a uma, digamos, minoria.
Não sou
desses que pretendem adequar letras de suas canções preferidas a seu estilo e
filosofia de vida (se é que isso existe): algumas das músicas de que mais gosto
têm letras descuidadas, ou obscenas, ou tolas, ou enviesadas, ou agressivas, ou
piegas - ou tudo isso junto. Um exemplo preocupante é Bob Dylan: poeta pop,
suas letras resvalam para um hermetismo bocó, com citações e paráfrases que vão
do tolo ao infantil, passando-se por coisas profundas, místicas etc. Pelo menos
as poucas que tentei verter. Um texto obscuro é, quase sempre, apenas isso
mesmo: um texto obscuro, mal redigido. Não há verdades ocultas, secretas,
inalcançáveis, mas apenas o cansaço, ou a pressa, que venceram o autor e zombam
da boa vontade do leitor. No caso de Dylan, talvez a coisa seja mais simples, e
se explique pelo abuso de heroína.
E já
que falei de letras problemáticas, considero Lucky in Love, Honky
Tonk Woman e Start me Up as melhores produções dos
Stones. Em Honky, os riffs são uma realização
de alto nível: a Strato Fender - metálica, quase desafinada, de tão poderosa -
urra como um leão despedaçado pelas flechas da perfídia. Lucky tem
um refrão esperto, com uma guitarra bem resolvida, que sabe o que quer e tem
meios de chegar lá.
Estabelecido
o problema com as letras, voltemos a atenção para quem as tem até demais: Zero.
Esquecida banda dos anos 80, nunca fez sucesso. Seus integrantes liam (e
parafraseiam) Karl Marx. Quimeras é uma canção emblemática: a letra
explicita um desengano; a melodia, em tom menor, é melancólica, sem ser
depressiva: anjos do bem vão te mostrar uma luz maior, capaz de
convencer que um mundo bem melhor existe em você... Eu não vou mais fugir de
mim... A Luta e o Prazer é outra composição de grande
cuidado estético na letra, com uma execução melódica simples: mas se o
amor chegar/ sem pedir licença/ nos brindar com sua presença... Você vai
lembrar de alguém/ que cantou há muito tempo essa canção... Agora
Eu Sei tem a letra mais incisiva e significativa. Parece leitura
ligeiramente marxista das relações humanas, num bom sentido: tem gente
boa que me fez sofrer, tem gente boa que me faz chorar. O refrão merece um
destaque: Quem vive mente mesmo sem querer, e fere o
outro não pelo prazer, mas pela evidente razão de sobreviver... Raramente
uma banda brasileira laborou tão bem, descontadas as paráfrases. Participação
especial de Paulo Ricardo, o que me lembra... Loiras Geladas e Olhar
43, do RPM, duas musiquinhas que são a cara dos anos 80.
Duran
Duran. A Matter of Feeling, que só fez sucesso no Brasil, tem uma
gostosa melodia. Um leve toque de inquietação é bem servido pelo colorido da
voz de Le Bon. No refrão final destaca-se uma harmonia suave, que também
marca American Science (esta acrescida de um baixo com riffs próprios,
muito a propósito...).
As
Bodas de Fígaro. É a melhor ópera de Mozart, junto com A Flauta
Mágica, e uma da melhores de todos os tempos. Cinque... Dieci... e Non
So Piu Cosa Son soam como exemplos do gênio em sua glória maior. Após
muitas tentativas, e mesmo no contexto da genialidade de Mozart, considero Voi Che Sapete uma
realidade autônoma inabordável. Trata-se de um banho de felicidade num mundo
que, por ora, não concluiu o inquérito para saber se o amor é possível, se é
tolerável. Mozart nos ensina que o espírito, em cultivos, pode transcender o
mar de mesquinharias da luta pela posse de objetos que nos induziram a desejar.
Somos inundados por uma generosidade ilimitada, uma música que liberta, renova,
pacifica.
Na Flauta
temos o mesmo mágico transporte a reinos risonhos, prevenidos das asperezas
e imperfeições do cotidiano. Ainda que alguns não aceitem o convite de Mozart -
por absoluta precariedade de espírito - os felizardos somos promovidos a
astros, a vogar por entre corpos celestes de harmonia e encanto. Sou outro no
retorno desses êxtases; que é meu dever transmitir esse lenitivo a um mundo
essencialmente insatisfatório.
Em
tempos escrevi, deslumbrado:
Vá
desculpando o leitor que nunca ouviu a Flauta Mágica, de Mozart, mas quando, no
Ato I, a Rainha da Noite começa seu longo solo (5º movimento), culminando
naquela inteiramente feliz vitória da voz feminina, a reivindicar todos os
poderes, sempre me emociono. Ou quando Pamina, no 8º movimento, inicia aquele sobrenatural
dueto, que sempre enternece e induz ao bem (e ao qual sempre volto). Em
todos esses movimentos, densa tessitura musical; escapamos de nossa ordinária
órbita e passeamos por regiões eternais.
Nem
mesmo a simbologia maçônica, que infesta a Flauta, é suficiente
para desmerecer a obra, advogo.
O
Barbeiro de Sevilha situa Rossini no mesmo patamar de Mozart, num gratificante
beneficiamento da alma. O autor usa as armas da ironia e do cômico para
transmitir uma mensagem estética poderosa e movimentada. Abstraída a letra -
uma historieta que não ignora pequenas perfídias, por vezes alheia ao grandioso
conjunto melódico - aprecia-se melhor a composição.
Pace e
Gioia Sia Con Voi. A música provê asas para nós, coisas lestas e cansadas. Um novo
mundo é convocado, com um novo céu e uma terra mais propícia, e seres,
magnificados, emitem auroras de si mesmos, dissolvendo tristezas e
mesquinharias. Tanto mais se lucra quanto se toma a saudação pace e gioia
sia con voi por seu valor de face, relevando o resto da letra.
All´idea Di Quell Metallo. A
certa altura nos percebemos às voltas com uma dupla sertaneja, num sentido
alheio a toda cafonice: as vozes se misturam e se afinam, num discurso de primores.
A 5'40" insistem as cordas numa exortação vigorosa, magnânima, que eu não
saberia descrever sem recorrer ao termo maravilhoso.
A
alegria de Largo al
Factotum contamina e bloqueia a chatice, a mesmice. Mesmo crianças
intuem, na hora, o burlesco e o fantasioso numa composição frenética,
extravagante em sua felicidade musical.
Una Voce
Poco Fa. A voz feminina em esplendores. O império da doçura, a favorecer
nossa edificação mais humana. Culminâncias que acionam festas em nós. A soprano
emite um poder que só posso atribuir ao amor, à vida.
Na
Sinfonia número 5 (Op. 107, "Reformation" Chorale: Ein' Feste Burg
Ist Unser Gott), Mendelssohn realiza todo um programa anímico, que nos projeta
por instâncias não locais, em direção ao eterno.
Por
mais que tente, eu não poderia ignorar O Coro dos Peregrinos, na
Tannhäuser, de Richard Wagner. Um coral majestoso, como uma cordilheira
altaneira, com seu alvo festão, eternecendo uma cidade. A certa altura as vozes
masculinas ganham o primeiro plano. Ao fundo as mulheres elaboram a mais veemente
defesa da beleza, sustentando uma grandiosidade própria de vastos agregados
anímicos, louvados em suprema bem-aventurança.
Carlos
Gomes, com O Guarani, coloca o Brasil no contexto das grandes
óperas. A introdução, abusada na horrenda Voz do Brasil, parece anunciar
que coisas horríveis são iminentes, um novo AI, talvez. Após dois minutos,
contudo, sai o velório e a leveza toma conta. A 5' a alegria desabrocha, numa
valsa deliciosa, cheia de carinho inaudito, como se fora uma criança que descobre
um jardim e dele se apossa. Esse tema é retomado e enriquece os atos Ic
[4'18"] e IV Coro. Turíbio Santos tem
uma interpretação maravilhosa da abertura, num violão de talento.
Pomp
and Circumstance, do inglês Edward Elgar: de um caráter marcial benigno, a melodia
comunica retumbantes vitórias, de batalhas que nem sabíamos que traváramos.
Toda vez que ouço, sinto que venci algum medo, alguma astuta perfídia. Sua
inserção no filme Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick, nos enche
de espanto.
Chariots of Fire, de
Vangelis, projeta uma robusta ponte entre o agora e um futuro de virtude,
honra, alegria e, quem sabe, amores. Concebo I Hear You Now como
um apelo à bondade, ao menos provisoriamente.
Roberto
Correa busca incessantemente a perfeição. Se, em Crisálida,
ele obtém um violão espantoso, em Uróboro somos
assaltados pela mais formidável viola de cocho que
já existiu. Exótica,
agradável, dificílima, numa execução que assombra. Sentimos que a perfeição,
sempre quimérica, sorriu para Correa. Várias vezes, seja a 300 km/h através da
Provença, seja ao contemplar o por do sol no convés de um barco que adentrava o
porto de Bora Bora, fui às lágrimas, sob a autoridade dessa viola, de
sentimentos.
Outro
violão de poderes é o de Villa-Lobos. No Estudo n. 4 tem-se um discurso
difícil, angustiado e nobre de um violão vitorioso. Na mesma obra, outros
estudos, prelúdios e choros evidenciam a realeza de Villa-Lobos.
Nos
mesmos domínios destaca-se o imprevisto Marcelo Loureiro, daqui mesmo, de nossa
planície pantaneira. Com um violão intenso e engajado, ele promove a releitura
de temas pantaneiros e da imensa tradição desse povo que se debruça sobre o
Paraguai-Prata, mas com tal sentimento e virtuose que percebemos estar diante
de um mestre indiscutível do violão, irado. Presenciei um Pássaro
Campana tão inacreditável e apaixonado que pôs em transe todo o
teatro Rubens Gil de Camillo. Marcelo nunca gravou esse delírio, o que nos
empobrece. Em Loureiro, toda a fortuna do violão caboclo, paraguaio,
correntino, andaluz: universal.
Concluindo.
O texto
concede algum caos, alguma bagunça; certas lambanças, prontamente confirmadas
por imprecisões e temeridades. Quem tiver necessidade de desatinos encontrará
seu texto definitivo.
Pode-se
reclamar de parágrafos saturados de adjetivos, do barroquismo de tentar esgotar
o tema, da angústia em transmitir tudo ao mesmo tempo, como se os motores de
busca fossem depressa ratear. A emissão de sentenças estéticas irrecorríveis
também aborrece, num contexto de irredimível opinionismo.
Quem
tem medo do opinionismo?
Procurei
um texto que pertencesse às impressões pessoais, refletindo nossa fortuna
musical. Os adjetivos, indefesos, abalaram pelos parágrafos como pontos
flutuantes num cálculo colossal. Já se sabe: a música é minha riqueza pessoal.
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