segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Revolução Francesa


O limitado Luis XVI e a vasta França, vítimas do encantamento mórbido da Revolução, enfrentam-se.

Após três votações da Convenção revolucionária, ele avança para a borda do cadafalso, com o rosto muito vermelho, dizendo: “Franceses, morro inocente: é do cadafalso e prestes a comparecer perante Deus, que vos digo isto.”

Atam-no à prancha. Numa página dramática, o Abbé Edgeworth profere esta imortalidade: “Filho de São Luís, sobe ao Céu”.

Cai o cutelo com um som áspero; e é cortada a vida dum rei. É segunda-feira, 21 de janeiro de 1793. Tinha trinta e oito anos.   

O imperador pagão pergunta à sua alma: Para que lugares vais partir? O rei católico deve responder: Para a barra do julgamento do Altíssimo Deus!

Morto o monarca, o país galopa em vertiginosa insensatez. 

1. Danton x Robespierre


Um Danton, um Robespierre, produtos principais duma revolução vitoriosa, chegavam agora à presença inadiável um do outro; têm de resolver como hão de viver juntos, governar juntos. Concebe-se facilmente a profunda incompatibilidade mútua que dividia os dois; com que terror de ódio feminino a pobre fórmula verde-marinho olhava para a monstruosa e colossal realidade, ficando mais verde ao contemplá-la (...)

Robespierre,

não um homem, com o coração dum homem, mas um pobre pedante espasmódico e incorrutível, com uma fórmula de lógica em vez de coração; de natureza jesuítica ou metodista; cheio de hipocrisia sincera, de incorrutibilidade, de virulência e poltronice; estéril como o vento do Leste! Dois produtos tais são demasiados para uma só revolução.

Incomodado com a rivalidade na liderança do Diretório ele alcança Danton.

Um amigo de Danton o desperta com a notícia de que um mandado estava feito contra ele. Em vão os amigos e a esposa tentam fazê-lo fugir para a segurança. “Não se atreverão”, ele diz, mas, na manhã seguinte, corre o boato da prisão do Titã da Revolução. Atreveram-se.

Ao Tribunal:

Faz doze meses que eu propus a criação desse mesmo Tribunal Revolucionário. Disso peço perdão a Deus e aos homens. São todos irmãos Cains; Brissot ter-me-ia mandado guilhotinar como Robespierre agora manda. Deixo tudo numa confusão tremenda; nenhum deles entende nada de governo. Robespierre seguir-me-á: eu arrasto Robespierre. Oh, preferível ser um pobre pescador a metermo-nos a governar os homens.  

Devido à eficácia revolucionária, Danton esteve apenas três dias na cadeia. Às perguntas de presidente do tribunal revolucionário – Tinville – respondeu:

Meu nome é Danton e minha residência será em breve no nada: mas viverei no Panteão da História.

Carlyle reserva-lhe estas palavras:

Apenas por uma questão dum fio de cabelo, pode haver uma reviravolta súbita, trocando de lugares réus e juízes, e ficando alterada a História da França! Porque em França, o único que pode tentar ainda governar (...) é este Danton. Ele é o único, (...) e talvez aquele outro indivíduo cor de azeitona, o oficial de artilharia de Toulon.

Não por nada esse indivíduo era Napoleão.

Nada de fraqueza, Danton! É o dia da grande morte: não há como os mortos, que não voltam.

A revolução ceifou outras cabeças. O químico Lavoisier foi também o Recebedor Geral Lavoisier e então se prendiam “todos os Recebedores Gerais”. Ele pediu quinze dias, para concluir umas experiências, mas “a república não necessita delas”.

O fugitivo Condorcet, denunciado quando saía, faminto, de uma floresta, é esquecido numa cela; desmaiara de fraqueza. No dia seguinte entram na cela. Condorcet jazia morto no chão. Todos os ci-devants são mandados mais cedo para a eternidade. Assassinar tornava-se contagioso.

Eliminado o inimigo (Danton), o caminho estava pavimentado para o clássico movimento ladeira abaixo: Robespierre, sem nada a temer, inventou uma religião. Isso mesmo: uma nova religião.

Estando o Catolicismo incendiado e o culto da Razão guilhotinado, não haverá necessidade de uma? O incorrutível Robespierre, à semelhança dos antigos, e como legislador de um povo livre, será agora também sacerdote e profeta. (...) É o presidente da Convenção; fez com que Convenção decretasse (...) a “existência do Ser Supremo”, e igualmente “ce principe consolateur da Imortalidade da Alma”. Foram decretados estes princípios consoladores, base da Religião Republicana Nacional; e aqui (...) vai decorrer o nosso primeiro ato e culto.

O pontífice verde-marinho pega numa tocha e declama alguns vocábulos de oratória espumosa. Emitem-se discursatas escabrosas e eis a Festa do Ser Supremo. A página mais ridícula dos anais humanos.

Ó profeta verde-marinho, o mais desgraçado dos sacos de vento quase a rebentar, a que louca quimera, no meio de realidades, tu queres dar forma!

Combustível para os fogos de artifício a consumir uma infernalizada França. 

Consumido no tornar-se deus, Robespierre inicia súbita curva descendente. Tudo começou com fortes, invencíveis murmúrios.

Diz-se que se estão cavando novas catacumbas para uma enorme e simultânea carnificina. A Convenção deve ser exterminada, até ao ponto necessário, pelo General Henriot e companhia, ficando a dominar a jacobina Câmara dos Lordes, com Robespierre por ditador. Existe, de fato, ou não existe de fato uma lista feita, a que o cabeleireiro deitou os olhos quando frisava o incorrutível. Toda a gente pergunta a si mesma, estarei lá eu?

Às vezes, de madrugada, sou acordado por esse mesmo rumor.

Houve um esplêndido jantar de solteirões na casa de Barrère, num dia quente. Todos despiram os jaquetões e Carnot, varejando o de Robespierre, teria encontrado uma lista de quarenta nomes, sem faltar o do indiscreto Carnot .

No Oito do Termidor, 26 de Julho de 1794, Robespierre sobe à tribuna da Convenção e irroga malversação do capital revolucionário, poltronices e perversões apóstatas contra todos. Por coincidência, só Robespierre é bom.

O murmúrio toma conta do plenário. Em vez da esperada aquiescência a mais um pretendido expurgo, alguém propõe o impensável: que o discurso seja “impresso e enviado aos departamentos”. Depois, que se demore a impressão e, por derradeiro, numa pressurosa demonstração de que as pessoas preferem suas cabeças sobre os ombros, a ordem de imprimir é revogada.

Robespierre comete um erro político: à tarde, com esse mesmo discurso, instiga a jacobina Câmara de Lordes contra a Convenção. Os jacobinos, em aberta revolta, aprestam-se. Espias correm toda a noite, em meia obscuridade ou invisíveis. Pelas nove da manhã reúne-se a Convenção, que não pregou olhos, temendo a purga.          

Apenas iniciada a leitura de um prometido relatório, um dos triúnviros, Saint-Just, é interrompido:

“Cidadãos, a noite passada nos jacobinos, temi pela república. Disse para mim próprio que se a Convenção não ousasse ferir o tirano, eu ousaria; e fá-lo-ei, com isto, se preciso for” termina ele, sacando de um punhal (...) após o que todos berram, brandem armas e gritam:

“Tirania! Ditadura! Triunvirato!”

Triúnviro? Robespierre luta para falar, mas Thuriot tine a campanhia contra ele, a sala ressoa contra ele. Sobe os degraus da tribuna e torna-os a descer, indo e vindo, quase a abafar de raiva, terror e desespero: a rebelião é a ordem do dia. 

“Presidente de assassinos” grita Robespierre, “pela última vez te peço a palavra!” Não pode ser concedida. (...) Os lábios espumantes de Robespierre tornam-se azuis; a sua língua, seca, prendendo-se ao céu da boca. “abafa-o o sangue de Danton” gritam eles. “Acusação! Decreto de Acusação!” Thuriot dá logo andamento a essa proposta. Pronto; aprova-se a acusação; o incorrutível Robespierre é acusado por decreto.
 
Começa um raro teatro, em cinco atos.

1.            O triunvirato e companhia (Robespierre, Couthon, Saint-Just e Lebas) são acusados e encerrados na sala do Comitê da Salut.

2.            O poderoso Henriot galopa, pelas 3 horas da tarde, em direção às Tulherias, para libertar Robespierre. Os gendarmes o prendem, metem Robespierre e companhia em carros e os enviam à Luxemburgo, masmorra do sistema do Terror.


3.            Enquanto os representantes estão a jantar o juiz Coffinhal galopa para libertar Henriot, e liberta-o. Ele salta para um cavalo e põe-se a caminho do Hôtel-de-Ville onde, com Robespierre e o triunvirato (na confusão de ordens e contra-ordens, o carro deles escapou do arresto) exercerão o sagrado direito à insurreição. Redigem proclamações, correspondem-se com as seções e a Sociedade Mãe. Não é isto um terceiro ato bastante bonito de um drama grego natural, com o desfecho mais incerto que nunca?

4.            Volta a Convenção a reunir-se. O presidente Collot: “Cidadãos, vilões armados entraram nas salas dos comitês e apoderaram-se deles. Chegou a hora de morrermos no nosso posto!” Não é fanfarronada revolucionária, dessa vez. Com a autoridade que lhe falecia rápido a Assembléia declarou Robespierre, Henriot e a Municipalidade (Câmara dos Lordes) rebeldes, foras da lei. Nessa noite, um fato prenhe de significados: Barras foi nomeado comandante da força armada “que se possa obter”. Os boatos cozinham Paris; as prisões prelibam a mudança de ciclo. O bairro Saint-Antoine, cansado das fornadas do Tribunal Revolucionário, rodeia as carroças da morte e diz que não deve ser. Ó Céus, por que é que devia ser? Henriot e os gendarmes, que percorrem as ruas por ali, berram, brandindo sabres, que deve ser.


5.            Uma clara noite de julho. Clangor e confusão em grande. Tropas a marchar. Legendre fecha as salas dos jacobinos: “Fechei-lhes a porta; só a Virtude a abrirá de novo”. Corrente oceânica em fúria, Paris colapsa sobre si mesma: a Convenção está em permanência, por um lado; a Municipalidade em mais permanência ainda, por outro. Pelas três da manhã convergem as forças armadas à Place Greve: canhão assestado contra canhão; Henriot versus Barras. Cidadãos! Grita a voz que Carlyle não identifica mas que tem de ser de Barras. Antes de chegardes ao derramamento de sangue, a interminável guerra civil, ouvi o decreto da Convenção: “Robespierre e todos os rebeldes fora da lei!” Ante essas palavras, e por motivos a mim obscuros, dispersam-se os cidadãos. Os artilheiros da Municipalidade, ansiosamente unânimes, passam para o lado da Convenção com aclamações. Henriot, bêbado, esperto o bastante para não estar na linha de frente, vai ver o que é, e encontra as bocas dos canhões viradas contra si.  Na volta, ao ouvirem as novidades, os jacobinos arremessam-no da janela, e ele foi cair numa fossa, agonizante. Augustin Robespierre, irmão de Robespierre, segue-o, com igual sorte. Saint-Just pede a Lebas que o mate, mas este se recusa. Ao entrarem naquele sinédrio de sedição, as forças da Convenção encontram o deus Robespierre sentado numa cadeira, com um tiro de pistola no maxilar inferior (a mão suicida tinha falhado). Deitam mão a esses conspiradores, e pescam Henriot e Augustin, ensangüentados e imundos. Antes do nascer do sol eles estavam seguros, debaixo de fechadura e chave. Com o queixo mutilado, atado com um pano ensangüentado, o minúsculo deus jazia numa mesa, com uma caixa de madeira por travesseiro. Apertava ainda a coronha da pistola convulsivamente na mão. Seus olhos ainda denotavam inteligência. Nunca mais disse uma palavra neste mundo. No 10 Termidor do ano 1794 marcha o monstro, para a morte. Robespierre, de queixo ligado com pano sujo, jaz estropiado, com seu irmão meio morto e o meio morto Henriot. Uma mulher, para Robespierre: “A tua morte enlouquece-me de alegria” e “Scelerat, vai para o inferno, com as maldições de todas as esposas e de todas as mães!” O verdugo arranca-lhe o jaquetão azul da festa do ser supremo; arranca-lhe a ligadura suja do queixo, que cai desamparado. Robespierre solta então um grito horrível.

Cai o pano. Terminava o Terror.


É isto uma revolução? “Sim”, dizem todos os manuais. “A mais festejada”. Não há um único patife que não lhe tenha entoado loas.


Pondé, a pretexto de desancar o que ele considera um culto à razão, anotou (Folha, 12.09.11):


A Revolução Francesa (1789-1799) é um fenômeno de marketing. Foi importante para medirmos a febre de um país sob um rei incompetente e não para nos ensinar a vida cotidiana em democracia.


Nada há na Revolução Francesa que tenha a ver com liberdade, igualdade e fraternidade. Essas palavras são apenas um slogan que faz inveja a qualquer redator publicitário.


Esse slogan, aliado ao que os revolucionários fizeram (mataram, roubaram, violentaram, enfim, ideologizaram a violência em grande escala), é uma piada.


É uma aula de marketing político: todo mundo cita a Revolução Francesa como ícone da liberdade.


Está visto, não precisamos de revoluções. 


A insondável contenda da França consigo própria deságua em Napoleão. Começava nova dança pírrica de guerra.

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