Sempre que
passo em frente, entro. Não é nada, é só um cacoete. Os vendedores, temerosos,
perguntam, entre nervosos e maravilhados ante a visão de um pobre:
- Ppppois não?
Meu procedimento é
simples: inspeciono os relógios, dos mais simpáticos aos mais caros. Naturalmente
os vendedores tentam sonegar a linha safira, com seus azuis cobalto e ouros ditosos.
Exijo vê-los.
Aproveitando a
receptividade, e ao ensejo de um exame rigoroso, me ponho a funcionar:
- Quero água quero
água quero água.
Água depressa se
providencia, para abafar o escândalo. Relógios descem ao parecer mais judicioso.
- Chocolates, café,
chocolate, café, belgium chocolate,
biscoitos...
Enquanto águas, chocolates, chás e biscoitinhos vão deliciando, fiscalizo os relógios, sua relativa eficácia
em registrar as proezas do tempo.
Sobre não ser
linear, o tempo é trêmulo, torto e propenso a cantorias, ébrio elementar; roliço
e namorador, dá cambalhotas, estatela nas imediações da realidade, e dança. Não
gostaria de denunciar todas as iniquidades do tempo, nem acredito seja esse o propósito
do leitor mais sóbrio. Basta dizer, com Drummond, que o tempo é o mais cruel dos escultores, e trabalha no barro.
As múltiplas
dimensões espaciais, posto franquearem a existência de mundos paralelos, não são nada, comparado à quase inadmissível idéia de multiplicidade temporal. Com
apenas uma dimensão, posso me deslocar para o futuro ou para o passado;
devagar, ao longo do presente - que é maneira mais econômica de viajar - ou aos
saltos. Com duas ou mais possibilidades simultâneas de deslocamento ao longo do
tempo posso dar saltos pra frente, pra trás, para os lados e também para fora
do tempo, subtraindo-me à sua passagem e reaparecendo em qualquer ponto que me
agrade.
É uma idéia
poderosa, convenhamos, negociar os poderes do tempo, ponderar-lhe as
incidências.
Os vendedores, que
renunciaram à pobreza na admissão de suas funções, saciam a curiosidade: é um
pobre, diga o que disser a propaganda, ainda temos pobres no Brasil!
8 comentários:
Muito boa, Ex-Pobre!! Kkkkkkkkkkkk.
E aí, Julio, curtindo um friozinho, ou viajando? Nesta semana vou a Ouro Preto, passar uns dias.
Bacana que vcs acompanhem o blog...
Abração
O genial inventor do quase-neologismo "Ex-pobre" veio da mesma panela que nós. É homônimo do jogador de futebol Rivaldo.
Na época, dávamos longas gargalhadas ao fazer troça de nós mesmos diante dos pequenos - mas importantes - degraus econômicos recém-galgados. A expressão tinha conotação elogiosa, pois quem é "Ex" venceu a situação indesejável de outrora. E no nosso caso, o sucesso era alcançado merecidamente.
Mas sem dúvida é uma expressão dúbia, quando lida à distância e pelos meios telemáticos, pois pode ser jogada no mesmo caldeirão do termo "novo-rico". Não é dessa forma que a usamos, contudo.
O tom satírico do seu ótimo post extraiu de meus arquivos mentais o termo humorístico, que caía como uma luva no personagem descrito. Então, completei a piada com a dúbia saudação elogiosa, vendo apenas seu ângulo positivo, naquela ocasião.
O bom intérprete há que levar em conta que a superação deu-se em todas as dimensões: nascidos "do pó", nosso grupo superou por larga margem a nulidade cultural, artística, etc., com a qual fomos lançados no planeta. Mais que ex-pobres-financeiros, somos ex-pobres culturais, e talvez ex-pobres emocionais.
Melhor, ainda, pautamos a vida pela superação diária da pobreza em todos os nossos níveis intrasubjetivos e intrafamiliares. Para descarregar todo o estresse resultante, só mesmo com exercício do bom-humor.
Esse é um dos seus melhores posts, faz refletir sobre a infundada soberba desinformada de muitos.
Mas é claro que acompanhamos seu blog! Desde o advento da ditadura Dilma, temos empobrecido dramaticamente, e as viagens estão descartadas por um bom tempo.
Aliás, tem um pãozinho velho sobrando? rsrsrs
Um grande abraço.
Que frescura é essa, Júlio, tá me estranhando?
Eu só ficaria ofendedido se vc tivesse votado na Dilma.
Duas vezes.
Seus comentários são preciosos, a meu ver. É gratificante poder compartilhar ideias. Agora, precisamos marcar uma nova reunião, não acha?
abração
Grande Gerson,
Desculpe o ar de TPM meu. Não votei naquele Satanás nem por um infinitésimo de segundo!!!
Vamos marcar um convescote para depois do período de 11 a 15 de junho, pois tenho me engajado na preparação da Semana Ragional de Conciliação Trabalhista 2012, em paralelo com a Semana Nacional de Execução, em paralelo com o Leilão Nacional da Justiça do Trabalho.
(Tudo isso, é claro, sem odevido reajuste).
O colega Cido já manifestou interesse em ver fotos e ouvir sobre a Antártica. Vamos ver se levamos ele.
Passado esse período, vamos combinar!
Um grande abraço,
Combinado, Julio e, por favor, não trabalhe tanto! Dá até gastura, sei lá, uma coisa ruim...
Amei o texto, tio! Também descobri alguns rescunhos no pc, salvaram minha aula de Medicina legal. Eu e o Fernando rimos bastante na parte dos policiais alemães...
Abraço, Ester
Ester, você sabia que o texto foi inspirado numa conversa entre vc e sua mãe, qdo vc ainda era criança? E digo inspirado no melhor sentido possível. São comentários de grande riqueza...
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