Eu cometi o pior dos pecados possíveis a um homem. Não ter sido Feliz. (...) Minha mente aplicou-se às simétricas jornadas da arte, que entretece nonadas. Jorge Luis Borges, A moeda de ferro
Uma safra incomum de livros: Rápido e devagar (Daniel Kahneman), Cérebro imperfeito (Dean Buonomano), Who´s in Charge? (Gazzaniga), e a trilogia de Dan Ariely nos informa que está menos difícil entender o parque humano.
Concluo "O que nos faz felizes?", de Daniel Gilbert, psicólogo de Harvard. Não é livro de autoajuda, logo, não finge que vai mudar vidas. Gilbert se propõe explicar por que conhecemos tão pouco aqueles que iremos nos tornar. Com Kahneman, ele respeita a distinção entre o eu experiencial, destinatário de todas as sensações presentes e o eu recordativo, que amoeda eus parciais e projeta nosso ego: ao passado (conhecidas como recordações) e ao futuro (daí tantas saudades do futuro - daquele futuro planejado, trabalhado e baldado).
Por que o futuro é tão alheio ao projeto?
Por que, enquanto espera o ônibus onze horas da noite, em frente à escola, a pessoa tem certeza de que, quando entrar na faculdade, sua vida vai mudar? E por que, já na faculdade (que não era essas coisas, não) sonha em passar em concurso público, porque, aí sim, vai ser feliz? Quem sabe casar, ter filhos, viajar?
Projetamos felicidades superficiais em coisas e eventos; vemos felicidade no passado e no futuro, quase nunca no presente. Mas, se estávamos errados no passado, quando projetávamos felicidade, quem garante que não estamos agora, em qualquer das direções do tempo?
Atinemos com a polissêmica felicidade: não é nada mais que uma palavra que nós, inventores de palavras, podemos usar para designar o que quisermos. (...) as pessoas tendem a utilizá-la para designar uma quantidade imensa de coisas muito diferentes (...) felicidade emocional, felicidade moral e felicidade de julgamento. Como lembrou Kahneman, felicidade não tem significado simples, explicável em uma frase, e precisamos parar de agir como se tivesse.
E pra você, o que é? A minha não é igual à sua: Estados subjetivos são irredutíveis, ou seja, nada que possa apontar, comparar ou dizer sobre seus sustentáculos neurológicos os substituirá. Minha experiência do amarelo é diferente da sua, porque amarelo não é cor, é estado psicológico. É o que acontece quando humanos percebem uma onda de luz de 580 nanômetros de amplitude.
Toda afirmação de felicidade é feita a partir de um ponto de vista. Se passássemos por experiências cada vez mais felizes, todo dia seria a revogação do anterior, e perceberíamos incessantemente como vivíamos completamente iludidos, diz o autor.
- E aí, como vai a vida?
- Comparado a quê?
O poeta e diplomata português Luis Filipe de Castro Mendes arrisca:
"Ainda bem que pergunta. Realmente ninguém tem interesse em saber como eu me sinto (rabugento, irritado com as notícias, saudoso do futuro, esfíngico e fatal, com os pés frios, acabrunhado pela miséria do mundo, já com um bocado de sono, cheio de fome e de sede de infinito, tenebroso, belo, inconsolável, contribuinte sem dívidas ao fisco, um pouco blasé, príncipe de Aquitânia com a torre abolida, lúcido, merda, lúcido, com a televisão já desligada, caminhando radioso sobre a minha miséria, se quiserem continuo...). E é isto, só o Facebook quer saber como me sinto. Ninguém mais. Nem eu.”
2. Olhando para dentro.
Será que podemos nos enganar com relação à nossa experiência emocional? Desconhecer nossos próprios sentimentos? Acreditar sentir algo que não estamos sentindo?
Segundo Gilbert, nosso cérebro foi projetado para responder a "o que devo fazer?" antes de "o que é isso?". Com informação fragmentária e insuficiente, o cérebro decide se há ou não ameaça. De acordo com o estado da técnica, módulos mentais trabalham em paralelo e ao abrigo do escrutínio da consciência. Por isso podemos sentir alegria e tristeza, compaixão e ódio ao mesmo tempo, referidos ao mesmo fenômeno.
A coisa é estranha mesmo, mas pode piorar. Junte a essa noção os dois eus de Kahneman, e você estará com sérios problemas para sustentar a primazia da consciência, da racionalidade e mesmo a integridade anímica. Podemos deter e processar informação - e sentimentos - sem que a consciência saiba, aprove ou se importe.
Daniel Dennett, craque, postula que a diferença entre sentir dor e acreditar sentir dor pode ser mera questão de linguagem. Sim, podemos ser influenciados por coisas que nossa consciência ignora; e adotar condutas que nosso eu não abona. O laço entre consciência e experiência é mais tênue do que parece, e isso inclui as emoções. Podemos ter sentimentos à revelia da consciência; uma clivagem entre consciência e os estados internos que caracterizam nossa economia mental: é possível sentir-se feliz, triste, em pânico, amedrontado - e não saber disso (ou não ter meios morais de admiti-lo).
E mais: não há como saber, mesmo em princípio, se uma felicidade atual é diferente de uma no passado, ou mesmo se de fato é possível ter uma experiência da felicidade, enfatiza Gilbert. Sendo a consciência propriedade emergente de uma tumultuada reunião de módulos mentais, que podem ou não mutuar conteúdos entre si, estamos cada vez mais longe de chegar a um acordo sobre o ser humano, suas aflições. A tanta precariedade, às vezes penso que falar de felicidade chega a ser um insulto. Explica-se por que nos enganamos todo o tempo sobre o que nos fará felizes no futuro (e também sobre o que nos fez felizes no passado).
"Será a busca da felicidade no outro lado da morte menos irrisória que neste?" - perguntava Borges.
Não sabemos.
Como se fosse pouco, a mente tem pontos cegos. Ao lembrar, ela recompõe experiências, preenchendo com detalhes que não foram armazenados. Se esse preenchimento é inconsciente, temos uma boa medida de como podemos mentir para nós mesmos. Tal como faz com o ponto cego da visão, o cérebro inventa, tornando o mundo um artefato manufaturado de nossa mente. Estamos a um passo de declarar que a realidade é, de certa forma, uma convenção (Satyaprem).
Um mundo coerente (ou ao menos normalizado), assim como a visão tridimensional, não é inerente a um amontoadinho de neurônios. Nosso cérebro é um tecelão talentoso que faz a tapeçaria da memória e da percepção, cujos detalhes se impõem com tal força que sua falta de autenticidade raramente é percebida. (...) cada um de nós é um falsificador que imprime notas de papel e as aceita alegremente como forma de pagamento, desavisados do fato de que tanto o perpetrador quanto a vítima tocam uma bem orquestrada sinfonia de fraude. (pag. 81).
Quando imaginamos o futuro ou o passado distantes, fazemos aproximações grosseiras, e os detalhes omitidos podem mudar nossas conclusões por completo. O resultado é que eles ficam embaçados e informes, dada a liberdade indevida da imaginação (e suas fontes inconscientes). Ao preencher as lacunas, o cérebro tende a usar um material chamado hoje (nós, e nossas circunstâncias), o que explica uma coisa chamada habituação, para os psicólogos; declínio da margem de utilidade, para economistas; e casamento, para o resto de nós. Quando imaginamos o futuro, estamos em geral fornecendo uma resposta ao presente.
Sintetizando, nossos eus futuros de forma alguma enxergarão o mundo tal como o enxergamos hoje. Nossos eus do passado... bem, você sabe.
Tem outra coisa que preocupa: normalmente distinguimos objetos reais dos imaginários (esse o limiar da esquizofrenia), o que verdadeiramente não ocorre com a experiência emocional. Deixo aqui apenas uma sugestão de investigação, que o leitor pode empreender por sua conta e risco.
Como fazer comparações com felicidades passadas ou futuras, se o cérebro humano é sensível a magnitudes relativas de estímulo, não às absolutas? Qual a diferença entre ter um ou dois bilhões de dólares? Entre um ganho diário de R$ 1 e R$ 300? [Se fosse lícita uma analogia: não percebemos velocidade, mas somente aceleração ou desaceleração. Se considerarmos o status social e econômico, veremos que é a chegada a uma posição social de prestígio, ou sua perda, que são sentidas intensamente, não sua mera manutenção. Status social e econômico só fazem sentido em relação a referenciais].
3. Racionalização.
Por que não andamos por aí com um largo sorriso, (...) agradecendo a Deus por nossas hemorróidas, nossa sogra e nossos cunhados? Porque nossa mente pode ser ingênua, mas não é idiota. Nossa experiência (...) é a mistura da dura realidade com a reconfortante ilusão.
- Podemos acreditar em qualquer coisa que queiramos?
- você está insinuando que não?
Se não, como chegamos a ter uma visão positiva de nós mesmos e de nossas experiências? Gilbert responde, para nosso desgosto: porque manipulamos os fatos. O apoio de que precisamos para chegar às conclusões desejadas vem das palavras que nós mesmos colocamos na boca das pessoas que participam de nossas vidas por dizerem exatamente aquilo que queremos ouvir. Às vezes, o olho concorda em ver aquilo que o cérebro quer.
Não precisamos de muito para ficarmos convencidos de que somos saudáveis, bonitos e inteligentes, mas as opiniões contrárias são submetidas a impiedosos e perpétuos escrutínios.
Tendo tangenciado o problema, iludindo o leitor, apresento agora este susto: podemos enganar a nós mesmos?
A literatura dá como certa a hipótese, sem atentar para o intolerável da contradição. Para emitirmos um discurso falso, é preciso construí-lo, com um mínimo de coerência interna e certo ar veraz. Em nenhuma hipótese acreditaremos na mentira, exceto violação da integridade psíquica, muito além da mera dissonância cognitiva, não é mesmo? Afinal, quem elabora em falsidade: um outro eu, vizinho e concorrente do nosso?
Quero agora apresentar a hipótese do eu zoado. Não um eu avariado, subnormal, mas o familiar eu da conciliação consciente. Fragmentário, mas reconhecível.
Se manipularmos inconscientemente os fatos, emprestaremos credibilidade ao discurso resultante. Teremos enganado o que Gilbert chama de sistema imunológico psíquico. Só precisamos provar que: a) existem instâncias inconscientes e b) elas atuam com desenvoltura, independentes, entregando bens que adentram a economia mental.
Inconsciente, isso existe? Há uma maneira infalível de provar que sim: basta defini-lo como tudo que não ocupe o foco da consciência no momento. Todo o acervo de memórias (verdadeiras ou falsas) e sentimentos e processos mentais passam a inconsciente, de forma algo artificial e insatisfatória.
Existe inconsciente? Faço uma digressão, e depois retomo ao resumo, que periga. O pensamento ponderado, que Kahneman apelidou Sistema 2, reflexivo, custoso e rebarbativo, identifica-se com o eu consciente, instância proprietária de um discurso, história e modelos de futuro - uma teoria de mundo. A torrente de pensamentos, sensações e afetos alheios ao controle das estafantes faculdades críticas chamaremos provisoriamente de inconsciente, sem assumir qualquer responsabilidade sobre suas propriedades ou existência.
A pior técnica argumentativa é usar exemplos para exprimir idéias. Logo, inaceitável. Vou proceder por exemplos.
Os Estados Unidos, sob Baby Bush, invadiram o Iraque, ao pretexto de eliminar armas de destruição em massa (químicas e biológicas). O Iraque realmente as comprara, quando da guerra Irã-Iraque, como os americanos sabiam, porque tinham os recibos em mãos.
A guerra contra o Iraque foi mais ou menos assim: Bush forjou relatórios, mentiu e convenceu incautos de que tinha de invadir. A guerra passou por contratos multibilionários com empresas mercenárias geridas pelos "falcões" (Cheney, Rumsfeld, a direita raivosa americana). A indústria bélica ganha centenas de bilhões de dólares em contratos, e a certeza do lucro mais indecente, em toda guerra.
Além disso, haveria os contratos de exploração de petróleo, tão logo os combates cessassem. Assim, após fingir acreditar que era uma causa humanitária ("desconstruir" Sadam), o público americano teve provas irrefutáveis de que a invasão era apenas um grande negócio para as corporações americanas. Enquanto os soldadinhos e o povo iraquiano morriam. E isso é tudo.
"E daí? Sou acionista de várias dessas corporações, e o lucro delas não me é indiferente. A guerra foi um negócio meio nebuloso, mas a vida segue", parece dizer o público americano. A morte de milhares de soldados e civis, e a ruína de um país são abstraídas, em prol do conforto cognitivo. O público (inclusive quem é pobre demais para ter qualquer vínculo com as corporações genocidas) visivelmente manipula os fatos, mentindo para si mesmos que foi uma pequena inverdade, que a invasão foi um sucesso e mais uma nação é democrática, graças às tropas. Apóiem as tropas! E quando chegaram as eleições, Bush foi reeleito. Aí está, toda uma nação mentindo pra si própria, descaradamente.
A relação entre pais e filhos é outro exemplo válido: é quase impossível fazer uma mãe enxergar as travessuras, indignidades, ambigüidades morais ou mesmo delitos dos filhos, por mais evidentes.
Fecho a digressão concluindo que mentimos para nós mesmos, manipulando os fatos. Só não nos damos conta do quanto, até nos casos em que é essencial reconhecer o engodo. E não o fazemos para não deprimir nosso ego, que se magoa fácil... O mundo já oferece oportunidades demais de vulnerar nossos egos, de forma que não precisamos de mais uma fonte, interna.
Retomo ao sistema imunológico psíquico, proposto por Gilbert: quando experiências ruins deprimem nosso ego, ele manipula os fatos, desvia a culpa e nos fornece uma idéia mais positiva de nós mesmos, e da situação. A ameaça é afastada, ao custo de nos tornarmos "estranhos".
Só Deus sabe quanto somos "estranhos".
- te extraño...
- sabe que eu também te estranhava? Mas agora já tô quase acostumando!
A memória é um processo de reconstrução que usa cacos de imagens mentais disponíveis, num oceano de sentimentos atuais. Lembramos de sentir aquilo que acreditamos ter sentido. (...) Prospecções e retrospecções podem entrar num acordo perfeito, ainda que nenhuma das duas corresponda à nossa experiência real. A riqueza de nossos recuerdos acaba sendo inventada, e nada é mais ambíguo que nossa experiência emocional.
5. Felicidade.
As pessoas querem somente uma coisa - felicidade - daí as economias só florescem e prosperam se as pessoas forem iludidas com a crença de que, produzindo riqueza, serão felizes, diz Gilbert.
Dinheiro e filhos são mais bem descritos como ilusões do jogo da transmissão de crenças. Filhos representam "um serviço de doação monótono a pessoas que levarão décadas para, muito a contragosto, agradecerem minimamente pelo que foi feito por elas", diz o autor.
Não é a riqueza que importa, mas a utilidade, como pontuava o matemático suíço Daniel Bernoulli. Uma escolha sábia deve tentar maximizar nosso prazer, não nosso dinheiro. Devemos converter estimativas de riqueza em estimativas de prazer.
Continuaremos, é claro, "a trabalhar, casar e a nos surpreender quando não temos toda a felicidade que tão ingenuamente antecipamos". A imaginação falha em nos antecipar corretamente cenários de futuros emocionais.
Uma singela solução apontada pelo autor (p. 211) seria, em vez de tentar prever sentimentos futuros, ver como outras pessoas (em situações análogas) estão se sentindo no presente. Ter conversas realmente francas com pessoas casadas é muito melhor que tentar se imaginar casado(a).
Nossa capacidade de simular eus futuros, e as circunstâncias que lá encontraremos são toscas, já vimos. O autor faz um especial alerta para o tipo de pessoa que mais facilmente se engana: você. Não podemos abrir mão da realidade, mas também não podemos prescindir de um pouco de ilusão. Achamos, por exemplo, que nossa morte será rápida, indolor e coberta de glórias. Tomara que seja. Mas não tenho certeza.
Marcelo Coelho, ao ensejo de livro sobre pacientes terminais:
(...) A insatisfação existe porque o ego, afinal, é insaciável. Por mais que eu me dedique a ser feliz em cada momento, a ser sincero com meus desejos, a fugir das obrigações, sempre vou achar que não me dediquei o bastante a mim mesmo. A vida autocentrada será, desse modo, inevitavelmente frustrante. Mais que isso, vida e frustração se tornam sinônimos. Quando o paciente terminal reclama de não ter pensado mais em si mesmo, ele no fundo está reclamando apenas de não estar podendo viver mais.
Não digo, é claro, que seja fácil morrer em qualquer circunstância. Mas o problema dos pacientes de Bronnie Ware, e dos leitores de seu livro, não é a falta de autoajuda. É o excesso de autoajuda; quem só se preocupa em atender a si mesmo sempre se sentirá desatendido. (...) Seu livro tem um precedente respeitável na filosofia de Alain (1868-1951), para quem só as pessoas felizes podem ajudar plenamente o próximo. A felicidade não é um direito, dizia; é um dever.
Final.
Manipulamos inconscientemente os fatos, que acreditamos ter encontrado honestamente. Depois, aceitamos com alegria os resultados. Isto é mais dramático no caso das religiões, mas pode lastrear qualquer crença.
Como certamente não terá passado despercebido, bordejei meus limites argumentativos neste esforço, e algumas vezes os ultrapassei. A tentativa de trazer o inconsciente à boca do palco é incipiente, cheia de acidentes e surpresas. Não posso acrescentar detalhes outros, com o orçamento expositivo de que disponho. Se o leitor tem problemas com seu inconsciente, se está acreditando em mentiras, bem, não conte comigo. Tenho minhas próprias mentiras e mitos a acalentar, e não sei se teria tempo para as suas. Não seria mau ler a bibliografia sugerida, em geral imune aos erros que aqui vicejam.
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