O excesso humano inviabiliza a
cidade, postada nas orelhas do Ganges. O rio, que já chega sujo à cidade, é
insultado por tremenda carga de esgoto, e também acolhe os fumegantes ossos dos
mortos cremados às suas margens.
A cerimônia. O morto, envolto em tecidos, é
confiado a uma pira e coberto com madeira. Logo o fogo inicia seu antigo
ofício. Os mortos ardem sem reclamar, normalmente, entregando serenamente alvos
ossos. Em alguns casos, porém, uma perna pode se apresentar e o morto,
atendendo a estranha convocação, parece dar um passo à frente. O decoro manda
que seja contida, restituindo-se a militar perna a sua posição de conformada
honra. Pode acontecer de o crânio, privado de seu costumeiro adorno, exibir
massa encefálica, que brota dos muitos buracos da face.
De minha posição, num terraço visitado pelos fumos da morte, vi um pé, caído, ser reconduzido às ciumentas chamas. Após um tempo - que eu não saberia precisar - vi um sadhu, considerado homem santo, ser reposicionado nas chamas, e um seu braço se apoiou brevemente numa haste em brasa, enquanto crânio e torso bebiam, com volúpia, vívidas chamas purificadoras.
Um pouco mais de lenha pode ser
acrescentado se, porventura, o falecido acusar frio ou falta de luz. Se, acaso,
ele reclamar, pés fujões podem ser recapturados. Mesmo um morto muito precavido
pode, naquele ardor, perder a cabeça, já amiga das chamas, obrigando redobrada
vigília.
Consumado, o corpo emite luz. Alcança
equilíbrio em sua entropia final. Nova Déli, 5 de janeiro de
2006.
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