quinta-feira, 5 de janeiro de 2006

Varanasi

O excesso humano inviabiliza a cidade, postada nas orelhas do Ganges. O rio, que já chega sujo à cidade, é insultado por tremenda carga de esgoto, e também acolhe os fumegantes ossos dos mortos cremados às suas margens.

A cerimônia. O morto, envolto em tecidos, é confiado a uma pira e coberto com madeira. Logo o fogo inicia seu antigo ofício. Os mortos ardem sem reclamar, normalmente, entregando serenamente alvos ossos. Em alguns casos, porém, uma perna pode se apresentar e o morto, atendendo a estranha convocação, parece dar um passo à frente. O decoro manda que seja contida, restituindo-se a militar perna a sua posição de conformada honra. Pode acontecer de o crânio, privado de seu costumeiro adorno, exibir massa encefálica, que brota dos muitos buracos da face.

De minha posição, num terraço visitado pelos fumos da morte, vi um pé, caído, ser reconduzido às ciumentas chamas. Após um tempo - que eu não saberia precisar - vi um sadhu, considerado homem santo, ser reposicionado nas chamas, e um seu braço se apoiou brevemente numa haste em brasa, enquanto crânio e torso bebiam, com volúpia, vívidas chamas purificadoras.

Um pouco mais de lenha pode ser acrescentado se, porventura, o falecido acusar frio ou falta de luz. Se, acaso, ele reclamar, pés fujões podem ser recapturados. Mesmo um morto muito precavido pode, naquele ardor, perder a cabeça, já amiga das chamas, obrigando redobrada vigília.

Consumado, o corpo emite luz. Alcança equilíbrio em sua entropia final. Nova Déli, 5 de janeiro de 2006.

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